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7 de maio de 2022

De antiguidades judicantes

Sabemos que atingimos uma certa antiguidade na atividade a que nos dedicamos quando somos procurados para “prestar depoimento”. A minha primeira vez não deixou de ser um susto, mas logo me acostumei com a ideia e procurei colaborar. Minha interlocutora se tratava de uma repórter da Assessoria de Comunicação do meu Tribunal de Justiça, pelo que me dei conta de que o público para quem falava entenderia o que eu tinha a dizer.

Gravando a conversa no celular, um aperfeiçoamento do gravador digital, a pergunta que me lançou de cara é como eram os tempos do ofício no século passado, isto é, antes dos anos 2000. Ora, pensei eu, tanta gente ingressada na magistratura nos anos 90 ainda em atividade, e por que era eu o escolhido para o tal depoimento? Desconfiei que a barba que ando cultivando e me emoldura de branco o rosto deve contribuir para um ar mais retrô, a critério dela. O fato de eu me mostrar sempre acessível ao pessoal da Comunicação deve ter a ver também, vá lá. 

Mas então pus-me a matutar na pergunta, e a recordar fatos e pessoas que permearam minha trajetória de quase três decênios de trabalho judicante. Jurisdicionados também, que no final das contas casos e casos nos marcam de alguma maneira. Sim, quase três decênios de atividade judicante significam alguma coisa. Principalmente para quem, como minha interlocutora, não os tinha sequer de vida. 

Entretanto a moça me fitava e esperava que eu iniciasse a narrativa. O momento de silêncio, se gastava memória do aparelho, servia para ativar a minha. De fato, eu não cheguei a viver os tempos em que o juiz trazia de casa a minuta de sentença rascunhada à mão, que entregava ao escrivão para que alguém do cartório a datilografasse. Geralmente o próprio escrivão o fazia, já que era a pessoa de confiança dos juízes. Chegávamos ao interior e nos dirigíamos exatamente ao escrivão, o servidor que sabia de todo o serviço na Comarca. Por óbvio, passávamos juízes e promotores, ficavam as lides, os processos (não necessariamente as lides eram todas judicializadas naquele tempo, meios alternativos de solução de litígios eram aplicados, mesmo que não institucionalmente) e a vida da comunidade seguia seu curso.

Recordo-me da minha chegada à Vara militar para assumir a titularidade. Perguntei pelo escrivão, que me foi apontado. Sentado estava, sentado permaneceu. Disse-lhe que estava assumindo a titularidade, e que desejava conhecer as dependências da unidade judiciária. Olhou-me e perguntou meu nome, ao que lhe apresentei a carteira funcional. Conferiu o ato do presidente do Tribunal de Justiça determinando minha remoção, e então levantou-se e enquadrou-se como só um oficial PM “das antigas” é capaz de fazer. Foi o início de uma grande colaboração em matéria de serviço e de uma amizade que se manteve ao longo do tempo.

Deixando de lado a figura imprescindível dos escrivães (hoje chefes de secretaria), o fato é que eu particularmente não cheguei a levar minutas rascunhadas à mão para digitar no cartório: logo depois da posse adquiri um microcomputador, um avançado 386 - que nos meus tempos de curso de Engenharia no Rio de Janeiro eram usados na Faculdade pelos estudantes de mestrado. Nós, graduandos, virávamo-nos para os trabalhos obrigatórios com as perfuradoras de cartões – os cartões que traduziam em linguagem de máquina o nosso programa, e que deveriam ser entregues na ordem correta para inserção no cérebro eletrônico. Que avanço incrível, pensei na época, em menos de 10 anos aquelas maquininhas deixarem os laboratórios dos centros tecnológicos mais avançados para serem usadas ali da mesa do meu escritório! 

Devido à sedução que sobre nós exercem os avanços tecnológicos foi que resolvi levar para a sala de audiências um microcomputador, no intuito de facilitar os trabalhos. E levei um 286, que se prestaria muito bem ao serviço. Opinião que, logo percebi, não era partilhada pela escrevente que me fazia as audiências: em vias de ser avó, era-lhe exigido que trocasse por aquele aparelho a máquina de datilografia que a acompanhou em toda a carreira no serviço público! Não adiantou chamar-lhe a atenção para o fato de que os teclados de ambas as geringonças eram iguais: dias depois, a gentil senhora preferia passar a autuar processos no cartório a aprender a utilizar os recursos que a tecnologia passaria então, e inexoravelmente, a disponibilizar.  

A propalada explosão de litigância se deveu também às facilidades que a tecnologia introduziu nos vetustos serviços judiciários. Tantos recursos – memória para acessar os intermináveis repositórios de jurisprudência, um editor de texto que permitia deletar trechos inteiros sem borrar a folha com borracha ou corretor, comunicação pela rede mundial de computadores (algo que, se nos punha em contato com o mundo todo em segundos, imagine com o juiz ali da minha cidade) –, tudo num aparelho só, por certo chacoalhou a nossa visão de mundo. Por isso lembro com carinho da minha escrevente que não se adaptou aos novos tempos, e que felizmente para ela logo se livrava da maçada pelos braços afáveis da aposentadoria. 

Esse olhar sobre o que se passava à volta, e não apenas sobre o que ia nos autos, passou-se a exigir cada vez mais do juiz desde então. Ao “juiz técnico” dos anos 90, o craque em filigranas processuais civis, passava-se a exigir que adquirisse conhecimentos de gestão - de pessoas e de processos -, a fim de administrar uma massa processual que passou a se multiplicar exponencialmente. Por outro lado, a sociedade, alertada dos seus direitos e consciente da função desempenhada pelo Judiciário, passou a exigir respostas rápidas às demandas que se punham, algumas delas impensáveis na época das Olivetti cartorárias.

- Contado assim parece lamentação, sorri para a repórter -, e, no entanto, foi o que passamos todos nós que ingressamos no serviço judiciário no início dos anos 90. “Aqueles para quem as regras de aposentadoria se alteram tanto”, pensei, mas guardei comigo.

A vida das pessoas mudou, e muito. A relação do público com agentes e servidores públicos da mesma forma. Lembro-me, por exemplo, dos cartazes em repartições públicas reproduzindo o texto do art. 331 do Código Penal: desacatar funcionário público..., sobre que, hoje em dia, se veem debates, jurídicos e não, quanto à descriminalização da conduta.   

   Para os colegas que adentraram há pouco, a vida sem o processo judicial eletrônico parece impensável. Eficiência, presteza, esses adjetivos cuja perseguição diária é exigência inerente à função judicante, nem sempre foram percebidos da maneira como os percebemos hoje. De juízes do meu Tribunal de Justiça que em tempos recuados portaram armas por conta de disputas lindeiras envolvendo a sua Comarca a outros, que na calada da noite iam para a beira de rios coibir pesca ilegal, num prenúncio das lides ambientais que então ainda não se punham, esses “antepassados” eram também eficientes e prestos. Prontos a responder às demandas que a eles chegavam, na forma que a sociedade deles exigia à época.

É por isso que, ao acompanhar pela internet sessões de tribunais em que o julgador se faz acompanhar de um assistente que liga e desliga o microfone, penso comigo que aquele agente público viu o mundo mudar muitas vezes no espaço de tempo da sua carreira. Que o aperfeiçoamento constante não é acompanhado no mesmo ritmo por todos, e que as exigências que sobre ele recaem serão certamente supridas, como deve ter-se acostumado a fazer por todo o tempo em que vem desempenhando o serviço.

No caso da entrevista, creio que acabou bem. Não é que a repórter não sabia usar a plataforma na qual passei a realizar audiências diariamente desde a pandemia? Passei-lhe uns macetes para operar a sala. 

          Ou terá se tratado de simples delicadeza de parte dela? Será que o embranquecer da barba já começa a me atrair delicadezas? Vou começar a pensar nisso, mas em todo caso, fica aí o registro.          

12 de setembro de 2019

A ficção em cada processo



O bom escritor de ficção não passa de um colecionador de tipos, um anotador de idiossincrasias. Como a Terêncio, nada do que é humano lhe pode ser estranho. A vida humana, os tempos, os dias, os humores e o espírito do seu próprio tempo, tudo isso é matéria-prima com que constrói o edifício ficcional.

Pense-se, então, no cotidiano ofício de julgar: é o juiz, da mesma forma, um escritor, porquanto se trata de um lavrador de despachos e sentenças. Recorda-me certo colega, velho amigo, hoje atuante no segundo grau da Justiça Federal, que, convivendo em roda de literatos, dizia orgulhoso que todo ano publicava ao menos um livro – o livro de sentenças mandado encadernar pela secretaria da sua Unidade Judiciária.

Mas e quanto ao julgador que, paralelamente ao seu ofício, é escritor de ficção (que, sim, eles existem...)? 

A miséria humana em suas variadas formas se observa de detrás da mesa da sala de audiências. É certo que nem todos nos damos conta – afinal, há números a relatoriar, metas a cumprir, satisfações, enfim, a prestar. São esses, também, os ossos do nosso ofício. No entanto, confesso que às vezes me pego mais interessado numa história em investigação que o tido por suficiente pela boa técnica de interrogatório.  É que a sala de audiências é local riquíssimo se pomos olhos de ver (e ouvidos de ouvir), e nos deixamos livrar das “amarras” da lide. Não, não se perca de vista a razão do ato, a solenidade da forma, o ponto nodal da questão que haverá de ser decidida. Mas particularmente procuro não me deixar alhear de eventual colorido de expressão, de um possível “a mais” de detalhes, proporcionados por testemunha disposta a se mostrar colaborativa. É, como disse, matéria prima capaz de ser transformada em argamassa do edifício ficcional.

Uma vez, jovem juiz na Vara de Família, prestes a abrir audiência de separação do casal à minha frente, perguntei a ambos se já não havia possibilidade de reconciliação. A virago voltou o olhar ao seu contendor e então caiu em prantos, para desconcerto dele e dos advogados. De detrás da mesa de audiências fitava aquela mulher, e me peguei a indagar com meus botões qual seria a história dos dois, que um dia se encontraram, se julgaram almas gêmeas, se falaram, se envolveram, se amaram. Comovi-me, de fato. A audiência foi suspensa. Encerrava ali a pauta; dirigi-me ao gabinete.

No corredor, enquanto a virago se afastava sozinha (seu advogado exigido por outros compromissos), impaciente mulher mais jovem aguardava o varão. Posta a par do resultado (inexistente) da audiência, olhou-me sem conseguir conter expressão de raiva. Aliás, das primeiras expressões de raiva que me dirigiram ao longo da carreira. O que não deixa de constituir, também, ossos do nosso ofício. De qualquer maneira, quanta riqueza em poucos minutos de audiência! O drama humano, desta vez não diluído na insipidez do ato procedimental.

Não sei dizer, hoje em dia, em que autos de processo se localiza esta minha reminiscência. De fato, a encenação dos papéis reservado pela lei a cada interveniente no processo judicial se eterniza naquelas folhas lavradas pelo escrivão. Basta podermos recuperá-las, a esse emaranhado de folhas costuradas em autos, do emaranhado de autos findos que povoam os arquivos judiciários.

Quanto a escritores, nada impede que a vida lhes reserve o papel de intervenientes no seu próprio drama judiciário: há dias estive absorvido pela descrição dos autos do processo-crime em que Camilo Castelo Branco foi querelado por adultério. Autos ilustres: não fosse pelo réu famoso, também pela presidência do juiz José Maria de Almeida Teixeira de Queirós, o pai de Eça de Queirós. Os autos foram recuperados da massa documental arquivada no Tribunal da Relação do Porto, trazendo à tona os acontecimentos daqueles dias sombrios para o escritor e a corré, detidos por mais de ano até o desfecho do caso.

Nos processos judiciais desenrolam-se vidas inteiras, flashes de existências humanas nos seus momentos mais dramáticos. Se os arquivos judiciários são abertos a todos, a pesquisa no material não é fácil. Se o ofício de julgar é acessível a todos por concurso público, nem todos são talhados para a função. Ao que atenta, observa, percebe, o árduo da função judicante se esvai no dia-a-dia pelo simples renovar do interesse a cada audiência que se abre. Nestes vinte e cinco anos de carreira, perdi a conta de quantas abri. Sei é que incontáveis foram as histórias que ouvi, as vidas que tangenciei, destinos que, sempre sobraçando a lei, acabei por influenciar. Este é o ofício. Estas as condições, estes os resultados práticos.

Daí a vida no foro se prestar tão bem de matéria-prima a quem escreve: realidades vividas cujas narrativas, congeladas nas páginas processuais, são capazes de revelar toda a dimensão do humano. De que, por força do hábito profissional, nada nos pode realmente ser estranho.

13 de dezembro de 2016

O difícil diagnóstico judiciário


Sempre que profiro palestras sobre o tema, lembro a todos que juiz de direito não existe para ser popular, que jamais estaremos bem colocados nos rankings de aceitação pela opinião pública. Por exemplo, porque em metade dos julgamentos de ações judiciais há um perdedor. Para esse, o que é vencido na demanda, o juiz, que anos atrás era burro, hoje em dia é corrupto. Afinal, todos têm certeza de seu direito, e o retirar de uma parte para reconhece-lo à outra é, considera-se, uma espécie de afronta. O que é da natureza humana. Mas recordemos também que tempos atrás alguém sempre dava a última palavra, nem que fosse o bispo; hoje em dia, mesmo após o trânsito em julgado da decisão judicial, a parte, e quem lhe patrocina a causa, continuam a “ter razão”.

Já se notou, com razão, que no tempo de nossos avós a simples ameaça de judicializar questão era altamente ofensivo; valia a palavra dada, a avença entabulada, o acordo firmado. De uma certa altura para cá, a população foi influenciada a “buscar seus direitos”, de tal maneira que, a se dar crédito às campanhas de esclarecimento, o exercício da cidadania passa obrigatoriamente por se ter “ação na justiça”.

Certamente que a Constituição Federal de 1988 propiciou o acesso de todos à condição de cidadania plena, com a variada gama de direitos que reconheceu à população. O que é muito bom. Mas em que pese ao fato de tê-los enunciado e delineado, a implantação desses direitos deve ficar a cargo da legislação infraconstitucional. E o que acontece em caso de omissão do legislador infraconstitucional? Ou, no caso de, ainda que implantado por lei, a fruição do tal direito não seja disponibilizada por quem compete fazê-lo?

Esse é um dos pontos já diagnosticados sobre a verdadeira explosão de litigância que assolou o Poder Judiciário desde a edição do atual pacto constitucional. Em termos jocosos, pode-se dizer que onde Deus provia o Estado brasileiro passou a prover. E a maior parte das vezes, por intermédio dos Tribunais.

No entanto, a estrutura pensada para fazer frente à demanda judiciária de antes de 1988 mostrou-se insuficiente para fazer frente à demanda que se foi instalando a partir de então. Numa de suas revisões a carta constitucional cuidou da criação de órgão de cúpula do Judiciário que, vendido inicialmente à opinião pública como servindo para “punir juízes” (os que não conseguem ditar o indiscutível direito da parte no tempo da própria parte e os que, mesmo ante o indiscutível direito da parte, concedem-no à outra) mas com função, além de corregedora, também de orientar, otimizar e fiscalizar os serviços judiciários. E é por meio de iniciativas visando à otimização do funcionamento e à padronização de sua atuação que o Poder Judiciário procura adequar-se à demanda, já que gastos extras encontram limitação na Lei de Responsabilidade Fiscal.

Vira e mexe a imprensa repercute estudos que apontam o Poder Judiciário brasileiro como gastador e ineficiente, comparado com os de outros países. Não é caso de nos determos sobre o fato de que esse tipo de comparação, sem ter em conta peculiaridades de cada modelo comparado, leva a distorções no resultado e induz interpretações errôneas. Pinçando dados e os divulgando, o que fica para o leigo é o resultado em números absolutos, e estes são de fato grandiosos, como os de toda a máquina pública no Brasil. Afinal, e com relação ao Judiciário, para qualquer município no interior de qualquer estado brasileiro o fato de não contar com fórum é sinal de desprestígio político para suas “lideranças”. Que o fórum não conte com juiz titular para tocar os trabalhos é menos grave, mas também incomoda.

Se no primeiro caso (o fórum), a demanda, como posta pela sociedade, é voltada para o Executivo, no segundo (o juiz), é voltada para o Judiciário, já que, em última análise, trata-se de gestão de recursos. E aqui se põe questão prática, em meio a essa necessidade de melhor gestão de recursos: otimizar recursos da máquina por meio, por exemplo, de aglutinação de comarcas, ao sabor da fria lógica dos números absolutos do movimento judiciário, é providência legítima?

Para os pesquisadores do tema recursos x resultado, sem dúvida que sim; para a liderança política local não; para a população de um município desmembrado de outro que passará a ter que se dirigir àquele outro também não; para juízes, promotores de justiça e defensores púbicos designados para mais de uma comarca e que enfrentam estrada diariamente entre uma e outra para exercer suas funções, é no mínimo desgastante. Todas as posições são compreensíveis, mas ao final permanece a pressão orçamentária.

Fazer frente a demandas dessa espécie é o desafio aos gestores do Poder Judiciário, em todos os seus ramos. Não há resposta satisfatória, já que o corte de gastos puro e simples reflete na eficiência dos serviços, como organizados hoje em dia. “Reorganizemo-lo”!, é o brado recorrente. Não há dúvida de que é o que se persegue diariamente, não só nas instâncias de planejamento como nas de execução dos serviços. Não há dúvida, também, de que não há fórmula mágica para fazê-lo, ou já se o teria feito. Afinal, as campanhas difamatórias que de tempos em tempos vêm à público incomodam.

Por outro lado, continuamos numa fase de amplo, geral e irrestrito direito de acesso ao Judiciário, o que é bom. Até que a demanda pelo reconhecimento de direitos seja saciada, teremos, toda a sociedade, de conviver com a realidade, que felizmente passa também pelos esforços que estão sendo feitos para otimizar o sistema de justiça brasileiro.

Dentro dessa realidade, acostumemo-nos, os trabalhadores do Judiciário (mas sem nos deixarmos anestesiar), com a ira de ao menos uma parcela da população, a parte vencida numa ação judicial; a indiferença de outra, a vencedora, a quem nada mais se fez que assegurar direito que “já sabia” possuir; e, ainda, a animosidade de outra, que nunca tendo necessitado do Poder Judiciário, não consegue entender porque se gasta tanto com uma estrutura, para estes, hipertrofiada e supérflua.   
     

20 de março de 2013

Reflexões sobre Ética profissional para novos bacharéis em Direito



Como profissional do Direito, de uma família de profissionais do Direito, que vive o Direito no dia-a-dia e que dele, ou melhor, da sua prática, tira o seu sustento, procuro, inspirado nos exemplos mais próximos que tenho, pautar minha atuação pela ética, por acreditar nas boas normas de conduta, de convivência, como remédio para a maior parte dos dilemas que nos afligem nos nossos dias.

Paulo de Tarso, um dos pilares da civilização ocidental, diz na Primeira Epístola aos Coríntios que “tudo me é permitido, mas nem tudo me convém” (6; 12). Por que iniciar uma argumentação com citação que se pode considerar “religiosa” (já que retirada da Bíblia) em tempos que se diz serem laicos, racionalistas - e aqui deve-se fazer um parêntese - como se a religião, a contrário da fé, não fosse produto da razão?

Primeiro porque, sem dúvida, esta é uma verdade universal. Mas principalmente porque acredito que não temos, esta nossa geração, o direito de abrir mão da herança que nos foi legada em mais de dois mil anos de civilização. A dialética necessária à evolução da vida, dos costumes, o exercício das convicções que opõem liberais a conservadores, que para muitos é o motor da História, não pode ser confundido com a simples anomia, simplesmente porque a falta de regras de conduta, mínimas que sejam, instalaria a barbárie.

E, no entanto, o que vemos hoje? A tentativa de ridicularização da religião, a relativização da moral. Se retornarmos às páginas de Eugen Erlich, nos seus Fundamentos da Sociologia do Direito, veremos que o Direito Penal, este sistema penal como está erigido hoje em dia, foi concebido para atuar por amostragem. Ninguém pretendeu, ao vir sendo construído o sistema, que se punissem todos os delitos cometidos; pretendeu-se, como é cediço, que uma eventual punição servisse para dissuadir os demais da prática de delito semelhante.

O problema é que em tempos idos, quando o criminoso, o infrator, era mal visto por todos, a dissuasão ocorria, em grande parte, com base na reprovação social. O que hoje em dia não é assim, por conta justamente da falada relativização dos costumes. A dissuasão ocorria, em grande parte, com base na sanção em outras esferas de punição, por exemplo, a religiosa. O que hoje em dia não é assim, por conta da falada tentativa de ridicularização da religião.

Mas de que estamos falando? Um exemplo prático, para que se possa entender melhor: como sabemos o servidor público, no exercício de suas funções, pode cometer um crime ou uma falta disciplinar, e assim pode vir a ser punido em duas esferas distintas. O servidor militar, por sua vez, tem mais uma: pode ser punido por crime comum, por falta disciplinar e também por crime militar, sendo julgado por este último num ramo especializado da Justiça, como determina a Constituição Federal. Mas o cidadão comum, que a princípio não tem nenhum vínculo com o Estado e assim não comete faltas disciplinares, cometia faltas, pode-se dizer assim, contra a sociedade, e essas faltas eram de caráter moral ou religioso. É justamente isso que vem deixando de acontecer ultimamente, por conta da relativização dos costumes. O que é ruim, no mínimo, porque a sociedade está acima do Estado organizado. O que se vê é que, neste sentido, a sociedade vem se demitindo dessa sua responsabilidade, dessa sua atribuição de exercer uma parcela do controle social, entregando-a toda nas mãos do Estado organizado. À polícia, aos Tribunais. Aos burocratas, em geral.

Será isto desejável? No mínimo, é problemático, porque o Estado de Direito não foi pensado para tutelar de perto o cidadão. Este é um outro tipo de Estado, que todos dizem não querer, mas que hoje em dia parece vir sendo construído no Brasil, na prática. E do jeito que as coisas vão, as alternativas infelizmente parecem ser ou isto ou, então, enfrentar as consequências de uma sociedade sem freios. A anomia. A barbárie.

Não é intenção, na argumentação, se fazer de arauto do Apocalipse. No entanto, não há dúvida de que a fiscalização de uma atuação ética em todos os níveis é dever da sociedade, um dever de que ela não se pode demitir.

Ora, sem dúvida um dos problemas maiores do nosso tempo é justamente definir o que é ético, porque a já aludida relativização da moral (ideia recorrente nestas linhas) faz com que surjam várias éticas por aí. A ética como marketing, a exemplo das expressões “cidadania” ou “inclusão social”. Felizmente, no caso de categorias profissionais como são as profissões jurídicas, os preceitos éticos constam da legislação positivada, o que impõe sua observância sob pena de sanção estatal. É assim o Código de Ética da Ordem dos Advogados, a Lei Orgânica do Ministério Público, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional.

Os que ingressam no serviço público devem ter em conta que a função primordial, o motivo de existirem essas categorias profissionais, é servir ao público. Ora, esses – os servidores e agentes públicos e políticos – têm toda uma legislação para balizar-lhes as condutas, os estatutos dos servidores de todas as categorias, onde, concluímos acima, incidem sanções estatais para coibir-lhes as faltas. Mas há também aqueles que se dedicam ao Direito como inciativa privada - o advogado que mantém escritório e é, sob vários aspectos, o baluarte do sistema da Justiça – e esses em muito maior número.

Ainda que, no caso dos profissionais do Direito, os tempos sejam outros, que litigar em Juízo tenha sido erigido, não se sabe por quem, a condição sine qua non para ser “cidadão” no Brasil, ainda que a propagandeadíssima judicialização da questão não seja a única forma de resolver um conflito de interesses, ainda assim os profissionais não se podem omitir. Não pode negar assistência jurídica o advogado a quem dela necessite, por imperativo ético, da mesma forma que não pode negar jurisdição o juiz a quem a procura, por imperativo constitucional.

Tenha-se em mente que escolher uma profissão jurídica é abraçar, como projeto de vida, o encanecer ajudando o Estado a fazer justiça. O que vale dizer, a amparar o órfão e a viúva, que é o mesmo propósito milenar de Hamurabi; a, muitas vezes, como o Prometeu Acorrentado, dar ao jurisdicionado não mais que uma esperança infinita no futuro, como único remédio contra o desespero.

A Justiça, sob muitos aspectos, se assemelha a um titã acorrentado, como o Prometeu da tragédia de Ésquilo, a se bater, muitas vezes, contra desígnios maiores, e isso é deveras frustrante. Fazer justiça, chegar o mais próximo dela quanto humanamente possível, é um ideal tão simples como pode ser formulado em “dar a cada um o que é seu”. Mas tão difícil, pesado, sombrio, como pode ser – e é, na prática - o viver o dia-a-dia da profissão. A ética, como repositório de princípios que levam ao Bem, é um paliativo para as frustrações da caminhada do profissional, que delas também se faz a caminhada do profissional do Direito, do que encanece nessa lida diuturna.

Deve-se, então, estudar a ética profissional, praticá-la. Vivenciá-la. O cidadão que procura o profissional do Direito - clientes, jurisdicionados, seja que função no sistema de justiça o profissional exerça - a princípio esse cidadão só terá a que se apegar a crença de que, por viverem as agruras, as belezas, as alegrias e tristezas do dia-a-dia da profissão jurídica, só por isto deve ele estar diante de um profissional do Bem. Assim é que o profissional deve ser, para cada um cidadão que o procurar, no mínimo uma esperança infinita no futuro.

Talvez a resposta a todas as questões éticas que se põem no exercício da profissão jurídica, como de resto no das outras profissões, seja procurar praticar o Bem na caminhada profissional, de molde a dar aos que o procuram, no mínimo, uma esperança, que seja, com sua atuação profissional. E lá na frente, já encanecido neste sistema de justiça tão cobrado hoje em dia, poder concluir que valeu a pena.

(Reflexões retiradas do discurso de paraninfo das turmas de Direito da Faculdade Castelo Branco de Colatina, em 14 de dezembro de 2012)

18 de outubro de 2010

A MINISTRA E A ÉTICA NO JUDICIÁRIO

A edição de 29 de setembro da Revista Veja traz entrevista da Ministra Eliana Calmon, nova corregedora nacional de justiça, que teve grande repercussão interna no Poder Judiciário brasileiro.

Abaixo, a íntegra da referida entrevista, seguida da íntegra da nota emitida em resposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros.


"Por que nos últimos anos pipocaram tantas denúncias de corrupção no Judiciário?

Durante anos, ninguém tomou conta dos juízes, pouco se fiscalizou, corrupção começa embaixo. Não é incomum um desembargador corrupto usar o juiz de primeira instância como escudo para suas ações. Ele telefona para o juiz e lhe pede uma liminar, um habeas corpus ou uma sentença. Os juizes que se sujeitam a isso são candidatos naturais a futuras promoções. Os que se negam a fazer esse tipo de coisa, os corretos, ficam onde estão.

A senhora quer dizer que a ascensão funcional na magistratura depende dessa troca de favores?

O ideal é que as promoções acontecessem por mérito. Hoje é a política que define o preenchimento de vagas nos tribunais superiores, por exemplo. Os piores magistrados terminam sendo os mais louvados. O ignorante, o despreparado, não cria problema com ninguém porque sabe que num embate ele levará a pior. Esse chegará ao topo do Judiciário.

Esse problema atinge também os tribunais superiores, onde as nomeações são feitas pelo presidente da República?

Estamos falando de outra questão muito séria. É como o braço político se infiltra no Poder Judiciário. Recentemente, para atender a um pedido político, o STJ chegou à conclusão de que denúncia anônima não pode ser considerada pelo tribunal.

A tese que a senhora critica foi usada pelo ministro César Asfor Rocha para trancar a Operação Castelo de Areia, que investigou pagamentos da empreiteira Camargo Corrêa a vários políticos.

É uma tese equivocada, que serve muito bem a interesses políticos. O STJ chegou à conclusão de que denúncia anônima não pode ser considerada pelo tribunal. De fato, uma simples carta apócrifa não deve ser considerada. Mas, se a Polícia Federal recebe a denúncia, investiga e vê que é verdadeira, e a investigação chega ao tribunal com todas as provas, você vai desconsiderar? Tem cabimento isso? Não tem. A denúncia anônima só vale quando o denunciado é um traficante? Há uma mistura e uma intimidade indecente com o poder.

Existe essa relação de subserviência da Justiça ao mundo da política?

Para ascender na carreira, o juiz precisa dos políticos. Nos tribunais superiores, o critério é única e exclusivamente político.

Mas a senhora, como todos os demais ministros, chegou ao STJ por meio desse mecanismo.

Certa vez me perguntaram se eu tinha padrinhos políticos. Eu disse: ´Claro, se não tivesse, não estaria aqui´. Eu sou fruto de um sistema. Para entrar num tribunal como o STJ, seu nome tem de primeiro passar pelo crivo dos ministros, depois do presidente da República e ainda do Senado. O ministro escolhido sai devendo a todo mundo.

No caso da senhora, alguém já tentou cobrar a fatura depois?

Nunca. Eles têm medo desse meu jeito. Eu não sou a única rebelde nesse sistema, mas sou uma rebelde que fala. Colegas que, quando chegam para montar o gabinete, não têm o direito de escolher um assessor sequer, porque já está tudo preenchido por indicacão política.

Há um assunto tabu na Justiça que é a atuação de advogados que também são filhos ou parentes de ministros. Como a senhora observa essa prática?

Infelizmente, é uma realidade, que inclusive já denunciei no STJ. Mas a gente sabe que continua e não tem regra para coibir. É um problema muito sério. Eles vendem a imagem dos ministros. Dizem que têm trânsito na corte e exibem isso a seus clientes.

E como resolver esse problema?

Não há lei que resolva isso. É falta de caráter. Esses filhos de ministros tinham de ter estofo moral para saber disso. Normalmente, eles nem sequer fazem uma sustentação oral no tribunal. De modo geral, eles não botam procuração nos autos, não escrevem. Na hora do julgamento, aparecem para entregar memoriais que eles nem sequer escreveram. Quase sempre é só lobby.

Como corregedora, o que a senhora pretende fazer?

Nós, magistrados, temos tendência a ficar prepotentes e vaidosos. Isso faz com que o juiz se ache um super-homem decidindo a vida alheia. Nossa roupa tem renda, botão, cinturão, fivela, uma mangona, uma camisa por dentro com gola de ponta virada. Não pode. Essas togas, essas vestes talares, essa prática de entrar em fila indiana, tudo isso faz com que a gente fique cada vez mais inflado. Precisamos ter cuidado para ter práticas de humildade dentro do Judiciário. É preciso acabar com essa doença que é a ´juizite´.”

Íntegra da resposta da Associação dos Magistrados Brasileiros à entrevista:


"Sobre a entrevista A Corte dos Padrinhos, com Eliana Calmon e publicada na edição de 29 de setembro de Veja, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), entidade que congrega mais de 14 mil juízes, discorda do tom genérico das declarações da ministra que deixa transparecer que toda a magistratura se submete a interferências externas em suas decisões. Não se pode ignorar que existam irregularidades e desvios de condutas, como os afirmados pela ministra, mas lembramos que estes casos são uma minoria no Poder Judiciário, que em seu conjunto é formado por profissionais sérios e comprometidos, como é a própria Eliana Calmon.

A credibilidade do Judiciário é uma das bandeiras defendidas pela AMB, e a magistratura entende que o atual sistema de indicações, ou recrutamento, não atende aos princípios republicanos. Com essa preocupação a AMB, por meio do deputado Vieira da Cunha (PDT-RS), apresentou a emenda à Constituição (PEC 434/2009) que atualmente encontra-se na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, e que visa estabelecer critérios objetivos para o acesso ao Supremo Tribunal Federal, diminuindo as intervenções políticas nas escolhas. A generalização de denúncias tão graves, como as que foram citadas pela corregedora, ofende os que levam rigorosamente a sério os princípios constitucionais, especialmente os que norteiam o exercício da magistratura.

Mozart Valadares Pires

Presidente da AMB."


A Ministra não disse nada demais, em termos genéricos. Disse, apenas, que existem magistrados corruptos, o que é investigado diariamente pelos próprios Tribunais e pelo CNJ, com ampla e requintada cobertura pela imprensa; que nos Tribunais também se usa valorizar os carreiristas, aliás como em todas as épocas e em todas as ocupações; que o desconhecimento da Ética hoje, no Brasil, como regra de conduta mas também como matéria de cogitação, é geral.

O Poder Judiciário, como de resto o Legislativo (integrados, na forma da Consttituição Federal, por brasileiros natos), não pode deixar de refletir o caráter do povo, porque é integrado pelo povo. Urge a adoção de providências práticas como as que estão sendo propostas pela AMB no tocante à composição dos Tribunais superiores e pelo CNJ no tocante a critérios objetivos para ascenção na carreira da magistratura. Como é necessário, também, a elevação do nível cultural, moral e ético da população.

Mas é óbvio que o caminho é longo e entre nós começa pela determinação sobre se a Ética é um proceder de caráter absoluto ou pode ser relativizada ao sabor de ideologias dominantes e/ou momentos históricos. 

7 de agosto de 2010

A PROPÓSITO DAS ELEIÇÕES PARA A AMAGES

Recentemente o Poder Judiciário do Espírito Santo enfrentou o pior momento de sua história de muitos momentos ruins, a exemplo do rompimento público entre componentes da mesa diretora do TJ, o assassinato de um juiz de direito e o uso posterior que se fez desse trágico episódio, os ataques à magistratura estadual vindos de todos os lados, independente de autoridade moral para fazê-lo. A chamada “Operação Naufrágio” foi o ponto mais baixo na trajetória de cento e vinte anos do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, e seus desdobramentos ainda se fazem sentir amargamente, principalmente na perda de prestígio e de autoridade da magistratura estadual.

Como integrante do conselho deliberativo de uma associação nacional de magistrados – e sou um dos dois magistrados do Espírito Santo que atualmente integram a diretoria de uma associação nacional de magistrados – tenho que viajar por todo o país, e até para fora do país, e sinto-me, no mínimo, desconfortável por dizer que venho do Espírito Santo. Em Madri, em 2009, um deputado federal do PT me perguntou se eu era do Estado onde só um deputado estadual fazia oposição ao governador. Em São Paulo um juiz do Tribunal de Justiça Militar perguntou se o TJES tinha problemas com a Imprensa, porque não podia crer que o que era noticiado nos jornais acontecesse de fato por aqui. A propósito, aos que se sentirem melindrados, adianto que, mesmo incomodado, continuo e continuarei trabalhando, porque sou juiz de direito.

A “Operação Naufrágio” foi resultado de uma série de fatores e principalmente de práticas muito antigas e que atualmente não teem mais razão de ser. Nem podem mais ser, porque os tempos são outros, os mecanismos de fiscalização e controle sobre a magistratura existem e estão atuando. E o desvio de conduta de um ou outro joga lama indistintamente sobre todos, porque a chamada “opinião pública” nos coloca a todos no mesmo barco.

A renovação paulatina de um grande número de cadeiras do Tribunal de Justiça e a última eleição para a diretoria da AMAGES devem representar, para cada um de nós, independente de posições pessoais sobre políticas internas do Poder, um estímulo para retemperar forças, para repensarmos posturas e atitudes. Cobrar explicações não significa se indispor, reivindicar condições não significa ser rebelde, nem xiita, nem “inimigo anônimo” ou verme de intestino de cavalo de madeira. O patrimônio de todos nós não são só as sedes sociais da AMAGES; é, principalmente, o conceito de que goza a magistratura do Espírito Santo. O que depende da postura, pessoal e profissional, de cada um de nós.

Não são palavras de cunho político: mais uma vez declinei, agradecido, participar de chapa para eleição da diretoria da AMAGES. Minha participação em todo esse processo – e ela acontece - não é por aí, e não importa me estender sobre qual seja. Particularmente o que desejo (e isso é problema pessoal meu) é, no mínimo, voltar a ter prazer em freqüentar a AMAGES, o que não sinto e por isto não faço há bastante tempo.

Aos que interpretam mal o que leem, esclareço que não estou a atacar administração de clube social, minhas ressalvas estão muito acima disso. Desejo, sim, que nossos clubes sociais continuem a ser bem administrados, como vêem sendo, e independente de quem os administre. Mas desejo também que os nossos magistrados sejam respeitados. E que, para isso, o exercício da judicatura não se baseie numa falsa suposição de prestígio, de que já não gozamos, mas sim numa autoridade que só iremos reconquistar se retemperarmos diariamente a postura que esperam de nós na vergonha pelas nossas mazelas.

Desse último processo eleitoral, tão importante por ter acontecido no momento histórico em que aconteceu, ficam para mim dois registros, pinçados das palavras dos dois candidatos: que a magistratura deve ser unida – mas não existindo para si mesma, só sobreviverá como estamento se se unir em torno do que é ético; e que juiz acuado pode não ser juiz - mas revestido, tanto quanto os outros, de função judicante, judica, em última análise, contra a democracia.

21 de maio de 2010

FORMAÇÃO CONTINUADA DE JUÍZES E GESTÃO CARTORÁRIA

Vista de Brasilia/DF, sede da Escola Nacional da Magstratura


Interessante a rápida evolução que no Brasil teve, de algumas décadas para cá, a idéia de treinamento contínuo para magistrados. O escopo das Escolas da Magistratura – hoje com sede na Constituição Federal, no inciso IV do art. 93, que se refere a uma escola nacional de formação e aperfeiçoamento de magistrados.

Como gênese deste movimento hoje firmemente constitucionalizado, na década de 60 do século passado o festejado processualista Egas Moniz de Aragão fez uma correlação entre o aperfeiçoamento da Magistratura e a melhoria da prestação jurisdicional no estudo Formação e Aperfeiçoamento de Juízes, publicado na extinta Revista de Direito Processual Civil, do Prof. Alfredo Buzaid.

Atento ao tema, aqui no Espírito Santo propunha o juiz de direito Renato José Costa Pacheco, em discurso proferido por ocasião da instalação e posse solene dos órgãos de administração da Associação dos Magistrados do Espírito Santo, em 1966, a “criação de cursos de aperfeiçoamento de magistrados, num sadio movimento de retorno à escola, para aprimoramento profissional, em época de tão intensa mudança em que os menos apercebidos perecem; assim como [...] existência de cursos de especialização para futuros juízes”.

A proposição pioneira de Renato Pacheco foi rejeitada pela comunidade judiciária por duas vezes, no I Encontro Nacional de Magistrados, realizado em Vitória, em 1973, e no II Encontro, realizado no ano seguinte, em Petrópolis, sob o argumento famoso de que “juiz não precisava de escola.”

No entanto, após “Diagnóstico” do Poder Judiciário realizado pelo Supremo Tribunal Federal, em 1975, e que apontou os males que atingiam, à época, o organismo judicial, suas causas e soluções, a Emenda n. 07 à Constituição Federal de 1967, promulgada dez anos depois do texto da Carta, já falava em “freqüência e aprovação em curso ministrado em escola de aperfeiçoamento de magistrados” como possível condição para promoção de juízes nos degraus da carreira.

Com a edição da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, em 1979, e a menção, nos seus art. 78 e 87, respectivamente, a “habilitação à carreira por meio de curso oficial para preparação à Magistratura” e a “promoção na carreira por meio de freqüência e aprovação em curso ministrado por escola oficial de aproveitamento de magistrados”, o Estado do Rio Grande do Sul acabou por sair na frente na criação e instalação de sua Escola.

Já a Escola da Magistratura do Espírito Santo foi criada em 1985, sendo Presidente do Tribunal de Justiça o desembargador Sebastião Teixeira Sobreira. Foi finalmente instalada em 1986, mediante convênio celebrado pelo então presidente da Corte, desembargador Hélio Gualberto Vasconcellos, e o presidente da Associação dos Magistrados do Espírito Santo, desembargador Renato de Mattos.

Cumprindo a determinação inserida no texto constitucional pela EC 45/2004, hoje a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - ENFAM - é uma realidade. Instalada em abril de 2007 e vinculada ao Superior Tribunal de Justiça, é presidida por um ministro daquela Corte, e de seu Conselho faz parte o Diretor da Escola Nacional da Magistratura, da Associação dos Magistrados Brasileiros.

Tudo isso a propósito de recente Curso de Capacitação em Poder Judiciário que pude frequentar no corrente mês de maio, oferecido pela Escola Nacional da Magistratura. Fomos por volta de trinta juízes de direito, representantes dos diversos segmentos da magistratura e oriundos dos diversos cantos do País.

Em uma semana na sede da ENM, em Brasília, debaixo de carga horária rígida, foram passadas noções aprofundadas de Macroeconomia, de Orçamento, de gestão de serventias judiciais, de Ética na atividade judicante, de Direito Privado e novas tecnologias. Mas houve também a possibilidade de criar novos relacionamentos, com a consequente troca de experiências e o conhecimento de realidades distintas em que se presta o serviço judicante por esse país a fora. E a infalível visita à sede do Supremo Tribunal Federal. A confraternização na melhor churrascaria da cidade numa daquelas noites nem era para ser comentada aqui...

Já há alguns anos o Curso de Capacitação em Poder Judiciário vem sendo oferecido pela ENM, em parceria com a Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas. A propósito, vindo ao encontro da orientação do Conselho Nacional de Justiça no sentido da necessidade de treinamento de juízes de direito em gestão de suas unidades judiciárias. Hoje, pode-se dizer, talvez o foco principal dessa formação continuada dos quadros da magistratura.

A muitos profissionais essa orientação pode parecer descabida, sob o argumento de que cada vez mais o juiz de direito se afasta de sua função judicante. A esses pondere-se que a gestão de pessoas e de processos, desejável no mínimo para que o fluxo procedimental deságue regularmente no gabinete do julgador, é atribuição que nem de longe pode o juiz de direito entregar a terceiros. Pela componente de ingerência externa que uma tal delegação oporia à autonomia na administração e fiscalização cartorária a ele concedida pela Lei Orgânica da Magistratura Nacional.

As boas práticas de gestão no Poder Judiciário estão cada vez mais visíveis. De sua necessidade, não há mais dúvida nenhuma a esta altura. Nada obsta a que a formação continuada determinada na Constitutição Federal contemple também essa vertente da atividade judiciária. Tomada, aqui, como atividade-meio que possibilite chegar de maneira satisfatória à atividade-fim, a decisão judicial.

30 de abril de 2010

O SUPREMO TRIBUNAL E A HISTÓRIA DESTE PAÍS

No desenrolar da marcha cotidiana do Brasil na busca pela democracia plena era inevitável que, quando da chegada ao poder da facção ideológica vencida sistematicamente pelo voto e pelas armas ao longo do século XX, a democracia que construímos nos últimos vinte e cinco anos se defrontasse com seu passado, com a história de sua construção.

A lei 6683/79, cujo § 1.º do art. 1.º era tachado de inconstitucional pela Ordem dos Advogados do Brasil na ADPF 153, foi declarada pelo Supremo Tribunal Federal, neste 29 de abril, conforme à ordem constitucional inaugurada pela Constituição Federal de 1988.

Existem inegáveis dúvidas, em termos de técnica jurídica, quanto à postulação. Seja o discutível interesse de agir, seja a discutível possibilidade jurídica do pedido. De fato, os delitos de sequestro a mão armada, assalto (em linguagem leiga), homicídio, já se encontram fulminados pela prescrição da pretensão punitiva estatal, ao menos trinta anos depois das condutas tachadas de criminosas. Os efeitos da lei que incrimina a tortura, n.º 9.455/97, não podem retroagir para alcançar o período 1961/1979. Tratados internacionais não têm validade automática entre nós. Tipos penais assim definidos devem ser positivados na ordem jurídica nacional para atendimento do princípio da tipicidade. Da mesma forma não podem retroagir a datas pretéritas. Por conta disso os ministros Marco Aurélio e Cesar Peluso entenderam faltar sentido prático à postulação. Por outro lado, um ato jurídico perfeito sob ordem constitucional anterior não poderia ser revisto à luz de uma nova ordem constitucional, ainda que sob a invocação de princípios ditos onipresentes.

Mas a fundamentação maior do pedido não era jurídico, sim político-ideológico - sem qualquer conotação negativa. Era antes uma tentativa de acerto de contas com o passado. Pleiteava-se a revisão do ato jurídico perfeito que concedeu anistia a criminosos de ambos os lados da disputa contemporânea pelo poder. Pleiteava-se a revogação da anistia, uma das maiores expressões de soberania do Estado, comparando o documento legislativo que a corporificou com as instituições de uma nova ordem nacional, numa nova quadra da História nacional. Muito distinta daquela em que foi editado, pela própria necessidade do desenrolar da história dos povos e das nações.

Obviamente a decisão será vendida à população como "Supremo é contra punição de torturadores", ou coisa parecida. Porque a notícia é lançada à população na forma das demandas contemporâneas e apreensíveis por esta, e assim tanto ajuda a moldar essas demandas na população como tem sua cobertura pautada por elas. O quanto ou como ocorre essa interação não é o que importa aqui.

Importa é que o julgamento da ADPF 153 declara expressamente – e nesse sentido essa decisão tem uma inegável matiz declaratória, inclusive no sentido jurídico da expressão – que o Brasil não tem oito anos de História. Ainda que não se possa deixar de reconhecer o protagonismo cada vez maior do povo na História nesses últimos oito anos. O que é mérito inegável da tendência ideológica atualmente no poder e da mesma forma passa a ser demanda irreversível a partir dele. Mas esta é apenas uma quadra da história da relação Estado/povo neste país; a análise histórica se faz de largos períodos de tempo, para assim lhe captar tendências e orientações cientificamente relevantes.

O Supremo Tribunal Federal trouxe a conhecimento da população que as novas demandas, que esse inédito protagonismo popular, só se tornou possível porque num momento definido da História do Brasil costurou-se um acordo entre forças sociais ideologicamente distintas e que se opunham. E que, fazendo concessões mútuas, como assinalou a Ministra Ellen Gracie no seu voto, resolveram construir as bases sobre que se fundaria o futuro. O que permitiu a construção do futuro que hoje é o nosso presente, com as demandas que nele cultivamos, e que não são necessariamente as mesmas que as de outros povos e outras nações.

É inegável o papel da OAB na construção desse pacto pelo futuro. A ação de seus representantes naquela quadra, que se revelava como uma encruzilhada medonha na História do país e onde seus protagonistas não tinham o direito de errar, foi relembrada e honrada na maioria dos votos, com as honras que lhe reservam nossa História recente. Alguns votos negaram mesmo à instituição a possibilidade de renunciar a isto tudo e mudar o que está escrito na sua história, trinta anos depois de escrita.

A História está escrita, não pode ser negada. Pode, sim, ser esquecida, mas não é o que no Supremo Tribunal se deseja. O ministro Celso de Mello invocou precedente contido no RMS 23036 – RJ para lembrar a todos o direito inegável à colheita de dados constantes de órgãos públicos para efeito de pesquisa histórica. Ninguém quer esquecer o passado, ninguém deseja apagá-lo. Pelo contrário, a melhor forma de avançar para o futuro é não repetindo erros um dia já cometidos.

Mas ao declarar que, sim, o passado existe, que por meio de um processo dialético o passado de alguma forma é parte do presente, ao reconhecer que a Lei 6683/79 é o marco fundante da nova ordem que desaguou na convocação da Assembléia Nacional Constituinte (como assinalou o ministro Eros Grau, ele mesmo vítima da repressão, o que legitima seu veredito) o Supremo Tribunal Federal obrigou a democracia brasileira a confrontar-se com a sua própria gênese. Ao afastar de vez o receio do passado pela negação jurídica da possibilidade do acerto de contas, privilegiando, assim, a prestação de contas, deu também o impulso inicial na busca dos fundamentos históricos que permitam reconciliar a nossa democracia com os alicerces políticos de sua construção.

17 de abril de 2010

"NUNCA ANTES NA HISTÓRIA DESTE PAÍS"II


A PEC 89/2003 repristina velhas eras da História do republicanismo no Brasil. A contrário do que pensam os atuais pensadores da ordem pública brasileira, as prerrogativas da magistratura (os "privilégios", na linguagem dos "formadores de opinião") já foram amplamente debatidos, quando da mudança de regime no país. Em especial a vitaliciedade (garantia maior da imparcialidade dos magistrados, que por conta disso não ficam coagidos a atender em suas sentenças interesses de quem os possa demitir) era considerada uma afronta ao princípio do igualitarismo inaugurado pela ordem republicana, extintos que foram privilégios de nascimento e de classe na Carta de 1891.

Grandes teóricos, a exemplo de Hamilton, um dos construtores do federalismo norte-americano, de Rui Barbosa, um dos delineadores do Direito Público brasileiro, demonstraram o contrário, e puseram em relevo a necessidade de garantir decisões que, proferidas por homens, pudessem utlizar-se de outros parâmetros decisórios que não o medo de desagradar quem os pudesse demitir, privando-os de seu sustento.
Assim, e aceita essa alta ponderação em favor do interesse maior na ocasião, a imparcialidade nas decisões judiciais, tal garantia passou a integrar a ordem constitucional brasileira, desde a primeira ordem republicana: art. 57 da Constituição de 1891; art. 64, alínea "a", da Constituição de 1934; art. 91, alínea "a", da Constituição de 1937; art. 95, inciso I, da Constituição de 1946; art. 108, inciso I, da Constituição de 1967; art. 113, inciso I, da Emenda Constitucional n.º 01/69 e finalmente art. 95, inciso I, da Constituição de 1988.

Voltando o debate político à situação em que estava nas vésperas da República (agora sob o argumento de "impunidade dos juízes"), outros os valores perseguidos hoje, onde a existência de uma margem esperada de desvio de conduta pretende-se expurgada já na esfera administrativa (em detrimento de todos os outros interesses ponderáveis e desprestigiando a "sentença judicial", única que há 120 anos desinveste o magistrado da função pública), não se perde de vista que o interesse, aí, é, concorrentemente, deslocar a decisão sobre perda do cargo para um eixo central - leia-se o CNJ - obstaculizando, assim, possíveis manifestações do "espírito de corpo" dos tribunais locais.

Mas não há dúvida de que o preço a pagar é muito mais alto do que se o vende à opinião popular de maneira superficial. Aqui relembro palavras de um daqueles jurisconsultos que trabalharam no desenvolvimento das idéias publicistas que moldaram as instituições brasileiras: o capixaba Afonso Cláudio de Freitas Rosa, egresso da Faculdade de Direito do Recife, primeiro presidente republicano do Espírito Santo e primeiro presidente do Tribunal de Justiça do Espírito Santo após sua reinstalação, em 1891, respondendo a consulta sobre irredutibilidade de vencimentos de magistrados (in Consultas e Pareceres.Vitória: Artes Graphicas da Victoria, 1918, p. 82/96):

"A vitaliciedade é um estímulo ao serventuário [em geral], que assegurando-lhe os meios materiais de existência, incita-o a especializar-se com esmero, dedicação e inteligência no desempenho do mister em que foi provido. [...]a independência dos atos, a imparcialidade e justiça nos julgamentos, a circunspecção na conduta social, seriam descabidas se a magistratura não tivesse o amparo da vitaliciedade [...]

Nem se pode compreender que incumbindo ao Poder Judiciário a atribuição de se pronunciar e decidir sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade dos atos emanados dos poderes legislativo e executivo, declarando-os válidos ou não, pudesse exercê-la com independência, se livre fora aos governos destituir os magistrados de suas funções, sempre que as decisões não lhes agradassem.

De nada mais precisaríamos para a completa subversão no país do regime legal"

Há 90 anos. Mas outros os tempos, outros os problemas, outras as soluções. Só não se justifica a repetição caprichosa do passado, simplesmente porque se perde tempo no caminho em direção ao futuro.


11 de abril de 2010

"NUNCA ANTES NA HISTÓRIA DESTE PAÍS"

O estudo da História se faz no mínimo para se evitar a repetição de erros do passado, visando a facilitar o avanço para o futuro. O estudo da desprezada vertente da História cultural, ou das idéias, é bastante útil porque no Brasil se fundam "novas ordens" com certa regularidade, com consequentes trabalhos de remodelagem (leia-se "modernização") das instituições - instituições essas que veem sendo pensadas ao longo de muito tempo. Não se justifica, portanto, nesse trabalho, o repetir-se erros do passado, o repetir-se, sob os mesmos fundamentos, debates já debatidos.
Há, hoje, uma "nova ordem", em que se estabeleceu que o Poder Judiciário deve "descer da sua Torre de Marfim", "parar de olhar para o próprio umbigo", "servir ao povo", "fazer-se necessário" etc etc.
Nessa busca incessante pela modernização das nossas instituições republicanas, volta à baila a questão do acatamento às decisões superiores como exteriorização da "disciplina judiciária do magistrado " (art. 10, parágrafo único da Resolução n.º 106 do CNJ).
No número de 1938 da Revista Espírito Santo Judiciário o advogado Nuno Santos Neves, conselheiro da OAB/ES, discutia no artigo "A Justiça local não está adstricta a seguir a jurisprudencia da Côrte Suprema" a obrigatoriedade de seguir-se no Tribunal local a orientação dos julgados do Supremo Tribunal. Vale a pena transcrever a introdução do artigo (deixando de lado a argumentação jurídica do corpo do trabalho, que dizia respeito às esferas federal e estadual de atuação do Poder Judiciário), como uma simples contribuição para que possamos retomar a discussão desse ponto, para onde parece termos retornado, 70 anos depois:

"Juizes e advogados reportaram-se, perante a justiça local, á jurisprudencia da Côrte Suprema, como se devesse ser obrigatoriamente seguida, obedecida, muito embora pensando, confessadamente, o julgador, em contrario ás razões de decidir daquella Egregia e Veneranda Côrte. O causidico, ante uma citação adversa de um ou dois julgados da nossa Côrte Maior, abandona a doutrina, despreza a exegese da lei, esquece a jurisprudencia dos Tribunaes locaes, e como que attingido fatalmente pelo vaticinio aziago de um oraculo, só descança quando obtem a sua remissão, encontrando um qualquer accordão daquella mesma Egregia Côrte, no sentido do direito que defende.
Parece-nos inteiramente desvirtuosa essa orientação e pratica.
Não somos, nem nunca fomos, irreverente e iconoclasta. Admiramos na Côrte Suprema a maior expressão das letras juridicas do Paiz; o nosso mais douto collegio onde se reunem os proceres da nossa sciencia do direito. Mas ficamos aqui. Não lhe atribuimos virtudes oraculares. Não citamos a sua jurisprudencia como os antigos escolasticos a Aristoteles: magister dixit, e tanto basta.
Não ha duvida que em direito, como em relação a qualquer outra disciplina, é sempre commodo e mesmo util estar-se magni nominus umbra, mas para a justiça, o que deve pesar é a autoridade do argumento e não tão somente o argumento da autoridade."