Como
profissional do Direito, de uma família de profissionais do Direito, que vive o
Direito no dia-a-dia e que dele, ou melhor, da sua prática, tira o seu
sustento, procuro, inspirado nos exemplos mais próximos que tenho, pautar minha
atuação pela ética, por acreditar nas boas normas de conduta, de convivência,
como remédio para a maior parte dos dilemas que nos afligem nos nossos dias.
Paulo
de Tarso, um dos pilares da civilização ocidental, diz na Primeira Epístola aos
Coríntios que “tudo me é permitido, mas nem tudo me convém” (6; 12). Por que iniciar
uma argumentação com citação que se pode considerar “religiosa” (já que
retirada da Bíblia) em tempos que se diz serem laicos, racionalistas - e aqui
deve-se fazer um parêntese - como se a religião, a contrário da fé, não fosse
produto da razão?
Primeiro
porque, sem dúvida, esta é uma verdade universal. Mas principalmente porque
acredito que não temos, esta nossa geração, o direito de abrir mão da herança que
nos foi legada em mais de dois mil anos de civilização. A dialética necessária
à evolução da vida, dos costumes, o exercício das convicções que opõem liberais a
conservadores, que para muitos é o motor da História, não pode ser confundido
com a simples anomia, simplesmente porque a falta de regras de conduta, mínimas
que sejam, instalaria a barbárie.
E,
no entanto, o que vemos hoje? A tentativa de ridicularização da religião, a
relativização da moral. Se retornarmos às páginas de Eugen Erlich, nos seus Fundamentos da Sociologia do Direito,
veremos que o Direito Penal, este sistema penal como está erigido hoje em dia,
foi concebido para atuar por amostragem. Ninguém pretendeu, ao vir sendo
construído o sistema, que se punissem todos os delitos cometidos; pretendeu-se,
como é cediço, que uma eventual punição servisse para dissuadir os demais da
prática de delito semelhante.
O
problema é que em tempos idos, quando o criminoso, o infrator, era mal visto
por todos, a dissuasão ocorria, em grande parte, com base na reprovação social.
O que hoje em dia não é assim, por conta justamente da falada relativização dos
costumes. A dissuasão ocorria, em grande parte, com base na sanção em outras
esferas de punição, por exemplo, a religiosa. O que hoje em dia não é assim,
por conta da falada tentativa de ridicularização da religião.
Mas
de que estamos falando? Um exemplo prático, para que se possa entender melhor: como
sabemos o servidor público, no exercício de suas funções, pode cometer um crime
ou uma falta disciplinar, e assim pode vir a ser punido em duas esferas
distintas. O servidor militar, por sua vez, tem mais uma: pode ser punido por
crime comum, por falta disciplinar e também por crime militar, sendo julgado
por este último num ramo especializado da Justiça, como determina a
Constituição Federal. Mas o cidadão comum, que a princípio não tem nenhum vínculo
com o Estado e assim não comete faltas disciplinares, cometia faltas, pode-se
dizer assim, contra a sociedade, e essas faltas eram de caráter moral ou
religioso. É justamente isso que vem deixando de acontecer ultimamente, por
conta da relativização dos costumes. O que é ruim, no mínimo, porque a
sociedade está acima do Estado organizado. O que se vê é que, neste sentido, a sociedade
vem se demitindo dessa sua responsabilidade, dessa sua atribuição de exercer
uma parcela do controle social, entregando-a toda nas mãos do Estado organizado.
À polícia, aos Tribunais. Aos burocratas, em geral.
Será
isto desejável? No mínimo, é problemático, porque o Estado de Direito não foi
pensado para tutelar de perto o cidadão. Este é um outro tipo de Estado, que
todos dizem não querer, mas que hoje em dia parece vir sendo construído no
Brasil, na prática. E do jeito que as coisas vão, as alternativas infelizmente
parecem ser ou isto ou, então, enfrentar as consequências de uma sociedade sem
freios. A anomia. A barbárie.
Não
é intenção, na argumentação, se fazer de arauto do Apocalipse. No entanto, não
há dúvida de que a fiscalização de uma atuação ética em todos os níveis é dever
da sociedade, um dever de que ela não se pode demitir.
Ora,
sem dúvida um dos problemas maiores do nosso tempo é justamente definir o que é
ético, porque a já aludida relativização da moral (ideia recorrente nestas
linhas) faz com que surjam várias éticas por aí. A ética como marketing, a
exemplo das expressões “cidadania” ou “inclusão social”. Felizmente, no caso de
categorias profissionais como são as profissões jurídicas, os preceitos éticos
constam da legislação positivada, o que impõe sua observância sob pena de
sanção estatal. É assim o Código de Ética da Ordem dos Advogados, a Lei Orgânica
do Ministério Público, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional.
Os
que ingressam no serviço público devem ter em conta que a função primordial, o
motivo de existirem essas categorias profissionais, é servir ao público. Ora, esses
– os servidores e agentes públicos e políticos – têm toda uma legislação para
balizar-lhes as condutas, os estatutos dos servidores de todas as categorias, onde,
concluímos acima, incidem sanções estatais para coibir-lhes as faltas. Mas há
também aqueles que se dedicam ao Direito como inciativa privada - o advogado que
mantém escritório e é, sob vários aspectos, o baluarte do sistema da Justiça – e
esses em muito maior número.
Ainda
que, no caso dos profissionais do Direito, os tempos sejam outros, que litigar
em Juízo tenha sido erigido, não se sabe por quem, a condição sine qua non para ser “cidadão” no
Brasil, ainda que a propagandeadíssima judicialização da questão não seja a
única forma de resolver um conflito de interesses, ainda assim os profissionais
não se podem omitir. Não pode negar assistência jurídica o advogado a quem dela
necessite, por imperativo ético, da mesma forma que não pode negar jurisdição o
juiz a quem a procura, por imperativo constitucional.
Tenha-se
em mente que escolher uma profissão jurídica é abraçar, como projeto de vida, o
encanecer ajudando o Estado a fazer justiça. O que vale dizer, a amparar o
órfão e a viúva, que é o mesmo propósito milenar de Hamurabi; a, muitas vezes,
como o Prometeu Acorrentado, dar ao jurisdicionado não mais que uma esperança
infinita no futuro, como único remédio contra o desespero.
A
Justiça, sob muitos aspectos, se assemelha a um titã acorrentado, como o
Prometeu da tragédia de Ésquilo, a se bater, muitas vezes, contra desígnios
maiores, e isso é deveras frustrante. Fazer justiça, chegar o mais próximo dela
quanto humanamente possível, é um ideal tão simples como pode ser formulado em
“dar a cada um o que é seu”. Mas tão difícil, pesado, sombrio, como pode ser –
e é, na prática - o viver o dia-a-dia da profissão. A ética, como repositório
de princípios que levam ao Bem, é um paliativo para as frustrações da caminhada
do profissional, que delas também se faz a caminhada do profissional do Direito,
do que encanece nessa lida diuturna.
Deve-se,
então, estudar a ética profissional, praticá-la. Vivenciá-la. O cidadão que procura
o profissional do Direito - clientes, jurisdicionados, seja que função no sistema
de justiça o profissional exerça - a princípio esse cidadão só terá a que se
apegar a crença de que, por viverem as agruras, as belezas, as alegrias e
tristezas do dia-a-dia da profissão jurídica, só por isto deve ele estar diante de um
profissional do Bem. Assim é que o profissional deve ser, para cada um cidadão
que o procurar, no mínimo uma esperança infinita no futuro.
Talvez
a resposta a todas as questões éticas que se põem no exercício da profissão jurídica,
como de resto no das outras profissões, seja procurar praticar o Bem na
caminhada profissional, de molde a dar aos que o procuram, no mínimo, uma
esperança, que seja, com sua atuação profissional. E lá na frente, já
encanecido neste sistema de justiça tão cobrado hoje em dia, poder concluir que
valeu a pena.
(Reflexões retiradas do discurso de paraninfo das turmas de Direito da Faculdade Castelo Branco de Colatina, em 14 de dezembro de 2012)