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24 de novembro de 2019

Ecos de Ecoporanga



Daqui, Ecoporanga é longe à beça. Muito além de onde o vento faz a curva. Município de grande extensão, encravado nos interiores do vizinho Minas Gerais, ou vice-versa. O distrito da sede tem seus encantos; o clima não é todo o tempo tórrido como se pode pensar.

Território de ocupação recente, recortado da serrania vigorosa que lhe domina o relevo, a economia é quase toda agrária. Lugar de camponeses, ocupantes de uma terra por quê tiveram de lutar renhidos. Os distritos – Imburana, Prata dos Baianos, Santa Luzia (antiga Patrimônio dos Pretos), Cotaxé, Muritiba, Joaçuba – todos pejados de história. E de histórias.

A propósito disso, diga-se que Ecoporanga é terra literária como poucas no Espírito Santo. Escritores pintaram a terra e as suas histórias em estilos diversos. Luzimar Nogueira Dias historiou a luta pela terra no jornalístico Massacre em Ecoporanga; Adilson Vilaça compôs páginas de ficção-mas-nem-tanto sobre tipos e fatos e ocorrências no já quase-clássico romance Cotaxé e nas crônicas ligeiras de A trilha do Centauro; fez ilações de cunho sociológico no ensaio Cotaxé: a reinvenção de Canudos, publicado pelo Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo em 2007. Mais recentemente, Saulo Ribeiro dá sentido à road-busca das personagens d’Os incontestáveis fazendo-os cruzar reminiscências do esquecido Estado União de Jeová, erguido naqueles rincões. Passagem essa estudada por André Luiz Gomes de Souza no História do Estado União de Jeová, publicado pelo Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo em 1998 e que gerou documentário de mesmo nome dirigido por Joel Zito Júnior, sob a supervisão de Vilaça.  

A saga do Cotaxé, passagem pouco conhecida da História do Espírito Santo, se revela ao interessado tão violenta quanto obscura. Época - nem tão distante assim - de disputa grande pela terra, envolvendo estados limítrofes. Tempos do contestado, daqui também, como o outro lá do Sul, entre o Paraná e Santa Catarina. O nosso durou anos e inspirou outros escritos ilustres – caso do Bangue Bangue do café, coleção de contos do jurista Ezequiel Ronchi Netto ambientado na Barra de São Francisco agreste dos primórdios.

Todo esse sertão do Espírito Santo é quase que desconhecido pelo litoral. Andando pelos interiores, a serviço do Tribunal de Justiça ou por conta de atividades culturais, me dou cada vez mais conta desse fato. 

Por isso aderi de imediato ao convite formulado pelo confrade Adilson Vilaça para ir a Ecoporanga, preparar terreno para a realização do I Festival da Memória do Município. Num sábado muito cedo saímos de Vitória, além de mim e do confrade Adilson, o confrade João Gualberto e mais o fotógrafo Apoena Medeiros. E fomos nós rumo norte, num dia chuvoso e movimentado.

Muitas horas de estrada depois Ecoporanga me foi aconchegante, nas circunstâncias. Acomodamo-nos no hotel, no centro da cidade, e logo partimos em demanda dos recantos e das histórias que fomos cercar. Adilson é conhecido feito vereador bom de voto, bem recebido onde quer que ande. Ou pare. E assim paramos e nos achegamos a vários endereços, de gente boa e hospitaleira. Em Imburana mastigamos excelente biscoito de polvilho em casa de dona Geralda Maciel. Soubemos reminiscências dos tempos da revolta camponesa e a participação da anfitriã.

Rumo ao Cotaxé, ao pé da Pedra da Viúva, de que ouvimos a explicação geográfica - a última montanha de uma série de ocorrências daquele relevo acidentado, a Serra dos Aimorés - e a popular - o casal de índios aldeados lá no cimo, de que o marido se finou primeiro, deixando a viúva saudosa. Cotaxé foi o centro administrativo do Estado União de Jeová, autoproclamado estado encravado nos anos 1950 entre terras disputadas pelo Espírito Santo e Minas Gerais, sob a liderança do baiano Udelino Alves de Matos. O povoado, ensimesmado, guarda aura de capital-de-história-surpreendente, que lhe desmentem o tamanho do território e a quantidade de viventes. 

Lá nos abancamos na pensão Primavera, de dona Nelci, bem na praça principal. Sabendo da procedência dos visitantes e do móvel da visita, trouxe de lá de dentro livros de autores a quem conheceu. Alguns, mesmo, tendo ido se hospedar lá com ela: Renato Pacheco e Luiz Guilherme Santos Neves, Luzimar Nogueira Dias, Adilson Vilaça, Saulo Ribeiro.

A conversa era boa. Lembranças, de fatos e de conhecidos, história local, casos – cuidávamos para não demorar demais. Próxima parada, distrito de Santa Luzia, antigo Patrimônio dos Pretos, que, esclareceu Adilson, nosso cicerone, tem capoeira famosa. Fato: na praça principal do povoado, um clube, local de prática da arte marcial, diz uma placa.

No outro dia pela manhã Prata dos Baianos, também distrito intimamente ligado à história do Estado União de Jeová, onde morador idoso visitado por nós, que conheceu Udelino, guarda o jeito do folguedo do Roubo da Bandeira. Boa prosa com o mestre e esposa, logo de manhã cedo de um dia fresco e de céu encoberto. Por último, uma ida à surpreendente Comunidade Veloso, entre Ecoporanga, Nova Venécia e Vila Pavão. 

Locais carregados de histórias, é de repetir. História de povo pobre - é jeito de ver a coisa -, mas também história de povo digno e trabalhador. Por isso mesmo, cioso de seus direitos e da sua importância no mundo.                       

Naquelas lonjuras do que se pode chamar sertões do Espírito Santo, uma comunidade diversa, tão afastada dos modos do litoral. Ficamos de voltar coisa de um mês depois, agora oficialmente, para festejar a todos. Infelizmente, foi-me impossível fazer o caminho de retorno.

Duas visões complementares me ficam dessas últimas visitas à cidade: na penúltima estive a trabalho, visitando os arquivos judiciários da Comarca, constatando-lhes a boa disposição e a funcionalidade. O que se faz necessário, num lugar de tamanho apelo histórico a pesquisadores e visitantes. Da última, o contato com a população, pessoas que no fim das contas têm parte das suas vidas documentadas nos autos dos processos que inspecionei.

Voltar lá é necessário. A essa porção do Espírito Santo integrada com sacrifícios, cujo modo-de-ser enriquece sobremaneira esta terra. Digam-no os que de lá tiraram - e continuam a tirar – registros que empolgam, contribuindo para integrar-lhe as riquezas ao imaginário da nossa gente.  

23 de junho de 2011

VIAGEM QUE SE FEZ NO MÊS DE JUNHO À FOZ DO RIO DOCE, NUM DIA DE MAR ALTO

Era a ideia inicial assistir ao encontro das bandas de congo em Regência; consta que se percebe ligeira diferença na batida, entre os grupos da Grande Vitória e a daqueles grupos de mais ao norte, como me informaram certa vez. Alem disso, a festa haveria de ser bonita de fato, naquele início de junho, no encerramento das comemorações em honra ao Caboclo Bernardo, salvador da tripulação do Cruzador Imperial Marinheiro, da Armada Imperial, em 7 de setembro de 1887.

Domingo, de sol, pela manhã, toca para a Vila de Regência, em Linhares. Distante trinta e oito quilômetros da BR-101, dos quais apenas aproximadamente dez são asfaltados, os buracos no caminho não conseguem estragar a graça da paisagem quase vespertina, de capinzais com vacas pastando e de raros coqueiros margeando a estrada. Na chegada à Vila, uns bons trinta ou quarenta minutos depois, o grosso do movimento de brincantes do congo parecia já ter-se dirigido para o local do encontro, ficando para trás uns raros retardatários: algumas meninas integrantes de bandas, com seus vestidos coloridos, entrando e saindo de um caminho que ia dar à pousada de Dona Mariquinha - organizadora da festa e responsável pela manutenção da memória do herói capixaba nativo do lugar.

À vista desse desencontro, restava ao viajante ver uma outra atração maior da Vila (para quem não faz muito bem o surf), que é a foz do Rio Doce. A famosa foz do Rio Doce, de tantas histórias sinistras para a navegação costeira do Espírito Santo e do Brasil. Cujos bancos de areia, traiçoeiros por se moverem com os ventos e com a maré, passam uma falsa impressão de segurança, mas desafiam sempre a perícia de pilotos e práticos daquela barra. Não por outro motivo contavam os antigos habitantes de Regência que na época companhias inescrupulosas, querendo se desfazer de velhos barcos condenados, mas devidamente segurados, mandavam-nos transpor aquelas águas perigosas...

Cruzador Imperial Marinheiro (Marc Ferrez)
A foz do Rio Doce é local de difícil navegação e por isto mesmo de naufrágios famosos. A primeira ocorrência de que se tem notícia se deu já em 1573, quando os padres jesuítas Luís da Grã e Inácio de Tolosa escaparam ali de um sinistro. Prosseguiram, então, em romaria, à ermida da Penha, em Vila Velha (fiz referência ao fato no texto “Nos Passos da Romaria, na Festa da Penha”).

O Acadêmico Norbertino Bahiense, em seu O Caboclo Bernardo e o Naufrágio do Imperial Marinheiro (2.ª ed, Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1971, p. 190/196), lista outras ocorrências da mesma espécie naquelas plagas: citando Basílio Daemon, refere-se a naufrágio ocorrido em 1837, de uma expedição vinda da Inglaterra, em que se perderam “todos os instrumentos e muitos objetos de valor”; coincidentemente a 7 de setembro de 1876, mesmo dia em que onze anos depois se daria o episódio do “Imperial Marinheiro”, naufragou a lancha “Vencedora”, com cinco pessoas a bordo, quando morreram quatro, inclusive o filho do proprietário. Junto ao Serviço de Documentação da Marinha, Bahiense, que também pertencia aos quadros do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, levantou dados sobre o naufrágio do vapor “Irene”, que se verificou a 1 de novembro de 1899, véspera do Dia de Todos os Santos, felizmente tendo-se salvo vidas e cargas, mas não a embarcação. Em 14 de setembro de 1905 naufragava no mesmo local o “Santa Cruz”, de que foram resgatados, no dia seguinte, todos os passageiros, depois de uma noite de tempestade e desespero, perecendo alguns tripulantes que tentaram alcançar a costa a nado.


Não fosse pelo solene da natureza, é local para se visitar com respeito, tantas foram as ocorrências náuticas funestas. Do centro da Vila de Regência vai-se a pé até a praia, forte, de mar aberto, como o Pontal do Ipiranga ali adiante e mais a norte a ilha de Guriri, em São Mateus: aliás quanto mais ao norte do Espírito Santo se vai, mais as praias deixam de se desmanchar em enseadas, como as de Guarapari, e se tornam cada vez mais retilíneas e a perder de vista, como acontece no litoral do nordeste. A caminhada, pela areia grossa da praia, batida pelos ventos, não deixa de ser puxada; mas procurando internar-se mais em direção ao continente, ao invés de seguir em linha reta o recorte costeiro, o viajante logo avista as águas do Rio Doce, abaixo do nível das dunas e envolvidas por uma moldura de vegetação nativa de restinga.


Tudo ali é impressionante, de fato. Amplidão; descampado. À frente o mar aberto, constantemente varrido pelos ventos, ventos estes que deviam ser propícios aos veleiros bem conduzidos de qualquer calado. Num dia de ressaca, as condições do mar remexido fazem imaginar as lamentáveis cenas de desespero das vítimas de todos aqueles sinistros. E fazem lembrar a coragem do pescador Bernardo José do Santos, que naquele dia por quatro vezes jogou-se ao mar, a nado, para tentar levar uma corda até o Cruzador da Marinha Imperial, só logrando êxito na quinta investida mar adentro. Por seus esforços, que se adivinham dali, é que Bernardo, já feito herói, dirigindo-se ao Rio de Janeiro para se avistar com a Princesa Imperial Regente, foi acolhido em Vitória, com préstito e honras, pelo Presidente da Província, como se lê da cobertura do jornal “Província do Espírito Santo” de 18 a 29 de setembro daquele ano de 1887.


Eis aí o final do curso do Rio Doce por terras de Minas Gerais e Espírito Santo, oitocentos e cinqüenta e três quilômetros desde a nascente, na Serra da Mantiqueira: a mais importante bacia hidrográfica localizada inteiramente na região sudeste. Toda a pujança do grande Rio desemboca numa área de aproximados 1,97 km² de foz, onde o encontro das águas doces e salgadas forma um espetáculo grandioso. Em certos dias a altura da maré determina a vantagem das águas marinhas e estas nesses dias sobrepujam sem esforço as águas do rio. Mas não sem se tingirem da coloração barrenta que vem suspensa nos sedimentos arrastados dos interiores do continente.


Passando algumas horas por ali, absorvido na observação da paisagem e na captação de imagens, com alguma sorte pode-se testemunhar mudança de tempo que vai a pouco e pouco tornando baço o ar, resultado da potente maresia soprada do mar alto. E não deixando, ao fazer descer uma cortina cinzenta sobre o espetáculo – que era inicialmente só fulgores de luz - de pintar reflexos e sombreados interessantes naquela amplidão de descampado. A trilha sonora à base do sopro forte do vento, levantando areia e assobiando à volta de tudo num crescendo, ajuda a compor nessas ocasiões um quadro quase terrível e, pela fúria do mar, chegando a se mostrar um tanto assustador. Mesmo para quem conhece o mar de outras paragens.


Com um pouco de sorte este clima pode ser atenuado, tendo-se a oportunidade de testemunhar em sua atividade a placidez de algumas aves aquáticas nativas do local. Contraste interessantíssimo: sem pressa, vão cuidando de alimentar-se, enquanto a maré não sobe e lhes tira a possibilidade de petiscarem a esmo pelos arroios formados nas poças e cursos d’água. Sítios fugazes estes, porque rapidamente preenchidos pelo volume líquido crescente que se espraia pela terra a dentro, represando e forçando a porção de água doce a retroceder e esperar melhor ocasião para se misturar ao oceano lá adiante, na boca da barra.


Esta, encapelada pelos ventos e pela ressaca, mostra-se em dias desses quase que invencível. Às vezes tem-se a possibilidade de observá-lo na prática: terra de lida da pesca e de pescadores, de que era exemplo o catraieiro Bernardo José dos Santos, não raro veem-se embarcações lançando àquela mistura de águas de sabores distintos suas redes de pesca - ou tentando fazê-lo, como é o caso nessas ocasiões. Ocasiões em que os homens do rio/mar preferem não se aventurar ao largo, não chegando a deixar os limites seguros da quase bacia que forma ali o grande curso d’água. Que, de uma forma ou de outra, os protegem das ondas que se arremessam furiosas contra ele mesmo, como a tentar fazê-lo retroceder às entranhas dos sertões que no final o conduzem ali, ao desaguadouro terrível. Em ocasiões dessas, vencidas pela barra formidável, as lanchas retrocedem à segurança de dentro da pequena baía de água doce, para se retirarem em seguida, momentaneamente vencidas, ao porto de onde saíram.

Já perto do fim do dia se conclui que não é este um espetáculo comum, não é este um lugar comum. As lembranças de tantos episódios de desespero é capaz de terem gestado histórias e tradições interessantes no lugar. O esplendor da natureza também. Não se consegue saber de umas e outras estando apenas de passagem, poucas horas, a captar imagens na região. Mas pressente-se no ar um certo riscado mágico e solene ao mesmo tempo, como a exigir daquele que se deixou impressionar pelo espetáculo que venha se aprofundar mais e mais nos mistérios do lugar. Um apelo quase que irresistível.

19 de março de 2011

Rever Lisboa, no verão


Lisboa, assim como Roma, mas por muito menos tempo que esta, já foi o centro do mundo. Na época da exploração e levantamento de novas rotas comerciais que evitassem o concurso de muçulmanos e seus parceiros comerciais genoveses, por Lisboa circulavam pessoas, bens e produtos de todos os cantos do mundo conhecido – cujas fronteiras, aliás, a cada dia se alargavam mais, graças às naus portuguesas e espanholas que cortavam o Mar Oceano em todas as direções.

A cidade de Ulisses, de onde, consta, foi levado o campeão Aquiles por aquele comandante ao teatro de operações na famosa guerra de aqueus contra troianos, a verdade é que Lisboa, em localização privilegiada, é entreposto comercial antiqüíssimo. Toda obra de engenharia que se empreenda às margens do Tejo é arriscado se encontrar algum vestígio romano ou grego ou fenício ou árabe ou lusitano. Consta haver ruínas de uma terma romana por debaixo do calçamento da Rua Augusta.

A majestosa Rua Augusta, ladeada pelas ruas do Ouro e da Prata – por onde escoavam na época do esplendor comercial as mercadorias desembarcadas no porto junto ao atual Terreiro do Paço (praça que, sem dúvida, só impressiona menos que a de São Marcos, em Veneza e que foi o local de concentração das tropas que desencadearam a Revolução dos Cravos, repondo Portugal de volta no seio do mundo democrático). E que termina no Rossio, praça erguida sobre antiga região de alagados, o elegante passeio da cidade oitocentista, mas também local de flagelo de cristãos-novos e sede do Santo Ofício nos idos do século XVI.
Dom Afonso Henriques

Lisboa, a cidade que guarda as relíquias de São Vicente, seu padroeiro, trazidas do Algarve numa nau transportada por corvos. Reconquistada aos árabes no desenrolar de uma das primeiras Cruzadas da cristandade e cujo castelo, tomado por Afonso Henriques, conserva-se, eterno, sobranceiro à antiga vila, dominando-a até ao Tejo, ao impressionante Tejo, o motivo principal da urbe. Cidade natal de Santo Antônio, que acabou por passar à devoção popular como “de Pádua”, apenas por se tratar da cidade onde posteriormente viveu; da proteção de Nossa Senhora da Penha de França, senhora dos navegantes; cidade ocidental das sete colinas, e assim bem como Roma.

Melhor que procurar as atrações para turistas e às compras em regime de “tax free” é tentar penetrar a vida da cidade, o cotidiano das pessoas. E rever a cidade onde se morou, mas com que não se perde o vínculo, é rever-lhe os cantos que nos dizem qualquer coisa.

Como uma praça, em plena rua Pascoal de Melo, onde há “baloiços” para crianças, onde se reúnem nas tardes quentes mães e pais e babás para aguardar as brincadeiras dos “miúdos”. Senhores “reformados” num dos extremos, jogando cartas. Rapazes num outro extremo, tentando controlar uma bola. Vez por outra, uma jovem mãe ralhando com o filho que não se quer ir embora. A maior parte das vezes, jovem e bela mãe.

As portuguesas são tipos físicos variados, resultado da grande miscigenação do povo ao longo dos séculos: no norte as há loiras, clarinhas, e quanto mais se desce em direção ao sul mais se percebem os traços árabes, morenas e rijas. Se para mim as portuguesas mais bonitas estão em Braga, em Lisboa, cidade cosmopolita, se encontram mulheres de todos os tipos e matizes e belezas as mais variadas.

Bêbados, que os há em todos os lugares. Neste lugar, neste dia em especial, um simpático embriagado metia-se no parlamentar de um grupo de senhoras, que se poderiam chamar de “terceira idade”, e que falavam determinadas do general Jonas Savimbi, comandante da Unita que por anos passou Angola a ferro e fogo e foi morto no início de 2002 em confronto com o exército regular do país. Ouvindo disfarçadamente que estava, fiquei sabendo que a família do general está muito bem após sua morte, por conta dos bens que deixou. Concluíram as palestrantes se tratar de um homem mau.

Que interessante grupo de senhoras portuguesas, interessante sobretudo porque as senhoras se vestiam das cores mais vivas, em seus vestidos leves, próprios de verão. Não mais aquelas roupas negras e pesadas, das viúvas e mães sofridas das aldeias, estilo que por muito tempo “ditou moda” mesmo nas cidades. E falavam em recordações da terra de cada uma delas, que os portugueses das cidades só começam a ser numerosos a partir das gerações mais modernas. Todos são vindos de uma “terra”, uma aldeia ou herdade nos interiores profundos do país.

Mas se as roupas das senhoras já não são as mesmas, os costumes ainda se mantêm, em maior ou menor grau – e felizmente é assim em termos gastronômicos. O bom queijo de Azeitão, o bom vinho do Alentejo...

Lisboa no verão é muito, muito quente. Felizmente, quase a metade da população sai da cidade, em direção à “terra” ou em direção ao Algarve, onde o português disputa espaços aos alemães e ingleses. Atualmente a duas horas e tal, apenas, da Capital do país, o Algarve é o destino turístico mais procurado pelo lisboeta de bom poder aquisitivo. Este de bom grado cede os encantos de sua cidade aos turistas de todo o mundo, a lhe encherem as ruas e os trens do metro dos mais variados idiomas, de trás das inevitáveis mochilas de andarilhos, que levam os também inevitáveis mapa local e garrafa d’água. Os lisboetas que ficam envolvem-se, ao meio da temporada de verão - apaixonadamente como o sabem fazer os portugueses - na polêmica anual dos touros de morte na vila de Barrancos (desferir ou não na besta estocada fatal, em plena arena?) e na armação de Sporting e Benfica para a próxima temporada de futebol, a se iniciar ao fim da estação.

Enfim, uma concessão ao turístico: suba, amigo, devagar, pela Rua do Carmo, do Rossio até lá acima, ao Chiado. Sente-se ao café A Brasileira (se o conseguir) e tendo ao lado a companhia em bronze de Fernando Pessoa apenas observe as cenas da cidade, no verão. É confortador saber que a cidade de Eça e de Garret, de Salazar e de Amália, do Madredeus e um pouco minha também continua lá, e que mais adiante o castelo de São Jorge continuará - mesmo na minha ausência e apesar dela - a dominar a velha Sé e o casario-sobre-o-Tejo até a volta, desta vez, no inverno.

Praia da Costa, julho de 2002