Nessa época do ano lembra-me meu pai chamando-me “medieval”, porque saía de casa para me juntar à Romaria dos Homens, na Festa da Penha. Já lá se vão quinze anos, quando da primeira vez.
De fato, procissões e romarias, por motivos religiosos, acompanhando santos e andores, não deixam de ser a ilustração de costumes muito antigos, se pensarmos nos tempos que se convencionou chamar históricos. Mas há evidências de serem ainda mais antigos os tais costumes. Imemoriais. O ponto alto dessas práticas piedosas foi o período histórico chamado Idade Média, por convenção, e meu pai o sabia. Época em que a decadência da força ordenante do mundo até então, o Império Romano, determinou a ascensão de uma outra força ordenante tão poderosa quanto, a Igreja Católica.
Não importa. Fé religiosa é tradição do povo – não é demais repetir, esta constatação independe de opiniões, teológicas ou ideológicas, de quem porventura possa vir a ler-me. Da mesma forma, quem se junta à romaria da Penha o faz por motivos os mais diversos, que independem de opiniões alheias. O mais das vezes, o faz por fé. Quem não a tem não entende e não tem paciência para tentar entender. O que não era o caso de meu pai, que apenas me fazia um chiste.
Capela do Convento |
Não é sobre a minha fé que escrevo. Talvez esta de fato se tenha ido consolidando ao longo dos anos de romaria: sinto que o ponto alto do meu envolvimento sempre foi, durante o calendário anual, a Festa da Penha. O que independe de sua importância histórica, do fato de se comemorar a devoção mariana consolidada por Pedro Palácios nestas terras do Espírito Santo, terras de Nossa Senhora da Vitória, há exatos quatrocentos e cinqüenta e três anos.
Para a tradição católica a mãe de Jesus Cristo é a nossa intercessora privilegiada. A devoção a Maria, dizem alguns, difundiu-se na Alta Idade Média, num período de expansão da fé católica, que para triunfar teve que adaptar-se às tradições imemoriais já implantadas nos territórios em que penetrava. Em Portugal a veneração à figura feminina, também ali invocada para favorecer a fecundidade, é pré-românica. Por todos, Rodney Gallop, o grande estudioso do folclore lusitano, já o registrou, com foros de historicidade, em Portugal: a book of folkways. Infelizmente, não me recordo de edição brasileira da obra, e a sua falta, se realmente se verifica, é que deve dificultar sobremaneira o acesso dos nossos estudiosos a fontes insuspeitas. - Ora, estes poderiam se servir de José Leite de Vasconcelos, o notável etnógrafo português, autor da Etnografia Portuguesa em vários volumes - dirão alguns, mais versados. Qual o que, Leite de Vasconcelos escreveu no final do século XIX, nos primórdios das ciências da sociedade, e assim seu labor não merece crédito aos nossos cientistas sociais...
Continuemos pela Etnografia portuguesa, a fonte onde sem dúvida nenhuma se deve ir buscar os costumes referentes à matriz da religiosidade brasileira. Teófilo Braga (cujo busto se encontra, em companhia de outros tão notáveis quanto, no hall da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa), no segundo volume do seu O Povo Português nos seus costumes, crenças e tradições (1994, p. 49-52) registra no capítulo II o sentido mágico emprestado pelo povo aos montes e penedos, sentido este que em Portugal não passava de sobrevivência de tradições semitas e célticas. Simplificadamente (pois de outro modo não se ultrapassa este ponto), a crença nos seres mágicos das formações rochosas - das montanhas, das penhas - seres como as mouras encantadas, tão “aparecidas” em Portugal, acabaram por condicionar a veneração das aparições santas (vejam, não mais mágicas, com o advento do Cristianismo) nesses locais. Num parênteses, uma justificativa que dou para a necessidade aludida acima de simplificar a prosa (não se vá pensar se dever a preguiça de argumentar): Teófilo Braga, no mesmo sítio, transcreve dispositivo das Constituições do Bispado de Lamego, de 1563, proibindo que as procissões fossem ter a outeiros ou penedos, somente a igrejas...
Entre nós este problema particularmente não se pôs: no alto da penha, o lugar mágico das palmeiras que Pedro Palácios vira em sonhos, erguia-se uma ermida, aliás iniciada por ele próprio. E assim as procissões de devotos para lá se dirigiram - até porque o Bispo de Lamego nunca teve jurisdição nestas partes do Reino de Portugal. Partes estas sujeitas isto sim, nos idos de 1558, já à autoridade do Bispado do Brasil, com sede em Salvador, recém elevado do Bispado do Funchal, na Ilha da Madeira.
À penha por várias vezes dirigiu-se, na tradição popular - talvez incentivada por Pedro Palácios, por ser a montanha o lugar mágico que é – a imagem da Senhora das Alegrias, da invocação venerada pelos franciscanos desde 1422, introduzida pela piedade de um noviço de que não se guardou o nome. Para venerar a Senhora da Penha, personificada na imagem trazida de Portugal, os fieis se dirigiam à ermida para celebrar a festa “na segunda-feira depois da Dominga in Albis, dia consagrado pela Igreja aos seus [de Nossa Senhora] Prazeres [hoje, Alegrias]” (PIEDADE, 1728, p. 501). Este trecho da obra de Frei Antônio da Piedade transcrevi e o Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo o publicou em 2002, como o segundo número da série “Memórias da Ilha de Vitória”.
Maria Stella de Novaes (1958, p. 49) registra a romaria ilustre dos padres jesuítas Inácio de Tolosa, Luís da Grã e outros companheiros à Penha, em 1573, em agradecimento por terem sobrevivido a um naufrágio na barra do Rio Doce. Fernão Cardim registra, no Tratados da Terra e Gente do Brasil, a romaria feita por padres jesuítas à Penha em 1584, no dia de Santo André, 30 de novembro (1997, p. 262). Aliás, o padre Fernão Cardim merece menção também porque reconheceu semelhanças entre a Nossa Senhora da Penha do Espírito Santo e a Senhora da Pena de Sintra, nos arredores de Lisboa (idem), onde D. Manuel mandou construir em 1511 o Convento de Nossa Senhora para os frades jerônimos (SERRÃO, 1989, p. 45). Tivessem dado mais atenção a Fernão Cardim e muito mais tinta de impressão teria corrido nesse assunto da identidade da Senhora da Penha do Espírito Santo...
Para que possamos passar a nos ocupar da romaria, propriamente, recordemos dados básicos de nossa história eclesiástica, que pertinem ao objeto de que nos ocupamos: desde 1630 Nossa Senhora da Penha é protetora da Capitania do Espírito Santo, por bula papal de Urbano VIII. Consagrando a tradição da festa mais que bicentenária, a Lei provincial n.º 07, de 12/11/1844, estabeleceu a Festa da Penha como feriado religioso provincial. Em 1897 - logo após, portanto, a criação do Bispado do Espírito Santo, em 1895 - Dom João Batista Correia Néri reavivou o oitavário e o costume dos festejos, até que, a pedido de Dom Fernando de Souza Monteiro, o Papa São Pio X reconfirmou a Virgem Maria, sob o título popular de Nossa Senhora da Penha, como “Padroeira de todo o Estado do Espírito Santo”, em 1912.
“... fundamentalmente celebrações religiosas em honra de qualquer santo ou invocação divina, patronos de uma localidade ou de um santuário, compreendendo missa de festa com sermão e prática, e, as mais das vezes, procissão [...], que tem lugar no seu dia e nesse santuário, duplicadas de uma festa profana característica, em que coexistem elementos de todas as espécies, religiosos e profanos, cristãos e mágicos, cerimoniais e festivos, num caleidoscópio extremamente variado e complexo.”
A festividade consagrada à Padroeira conheceu altos e baixos ao sabor dos tempos. Nos moldes atuais dos festejos, a Romaria dos Homens, da praça da Catedral de Vitória até o Convento da Penha (hoje, até a Prainha, onde é dita missa para receber os romeiros) foi instituída em 1955, por Dom José Joaquim Gonçalves: na época era diurna e frequentada por homens e mulheres (CARNIELLI, 2006, p. 124). Em 1958, sob o governo diocesano de Dom João Batista da Mota e Albuquerque, passou a ser noturna, no sábado que antecede a Festa, somente para homens (idem). Costume este, de só incluir homens, que acabou mitigado ultimamente.
Dizem não se saber o que leva tantos milhares de pessoas a seguir por quatorze quilômetros em procissão, das ruas de Vitória até aos pés do Convento da Penha, para comemorar o dia da Padroeira. Ou talvez se saiba, muito bem, que isso se deve à fé dos que enfrentam o caminho. Como um obstáculo que cada um tem que vencer, um sacrifício que cada um tem a fazer, como numa metáfora de sua própria vida. Nas horas e horas de caminhada o desconforto do esforço físico leva-nos a pensar em outras coisas, para não senti-lo. E pensa-se, então, tambem no que faz levar tantas pessoas a seguirem juntas, ordeiramente, na mesma direção. E a sensação que se tem é de partilha de um objetivo comum.
Chegar, por si só, não é o que importa. Acompanhar simplesmente a imagem de Nossa Senhora da Penha, por si só, não parece ser o móvel dos romeiros. Espaço de meditação e de oração, as pessoas com quem converso costumam lembrar-se dos pensamentos que lhes passaram pela cabeça nas várias edições da romaria, reflexões sobre suas vidas e sobre a das pessoas que lhes são caras, inspiradas por aqueles momentos. Vencer os percalços do caminho com paciência para não se desgarrar, com tenacidade para não desistir, é o mais importante enquanto se cumprem, um a um, os quatorze quilômetros, em procissão.
chegada à Prainha |
Até que se chega ali à Prainha e a multidão comovida aplaude a chegada da imagem. A imagem que personifica a devoção do povo; numa figura batida, o símbolo da fé que faz daquela multidão uma comunidade. Como passamos a ser, mesmo sem o saber, a partir de 1558. Porque todos ali comungam, há mais de quatrocentos e cinqüenta anos, de uma idéia comum. Ideia que nos une, aos capixabas, mesmo os que ali não se encontram, mesmo os que não creem, na certeza de nosso destino comum. Ali aos pés da Penha, que nos fundou.
REFERÊNCIAS:
BRAGA, Teófilo. O Povo Português nos seus Costumes, Crenças e Tradições. Vol II. Lisboa: Dom Quixote, 1994.
CARDIM, Fernão. Tratados da Terra e Gente do Brasil. Lisboa: CNCDP, 1997;
CARNIELLI, Adwalter Antonio. História da Igreja Católica no Espírito Santo: 1535-2000. 2.ª Ed. Vila Velha: Comunicação Impressa, 2006;
NOVAES, Maria Stella de. Relicário de um Povo: O Santuário de Nossa Senhora da Penha. 2.ª ed. Vitória: DIO, 1958;
OLIVEIRA, Ernesto Veiga. Festividades Cíclicas em Portugal. Lisboa: Dom Quixote, 1995.
PIEDADE, Antônio da. Espelho dos Penitentes e Chronica da Província de Santa Maria da Arrábida. Lisboa: Oficinas de José Antonio da Silva, 1728.
SERRÃO, Vítor. Sintra. Lisboa: Presença, 1989.
VASCONCELOS, José Leite de. Etnografia Portuguesa. vol. VIII. Lisboa: INCM, 1997.