4 de abril de 2011

CONSELHO DE JUSTIÇA MILITAR: ÓRGÃO DO PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO





Dispõe o art. 101 da Constituição do Estado do Espírito Santo, com relação ao Poder Judiciário:

"Art. 101. São órgãos do Poder Judiciário:

I - o Tribunal de Justiça;
II - os Juízes de Direito;
III - os Tribunais do Júri;
IV - os Tribunais ou Juízes;
V - os Juizados Especiais;
VI - o Conselho de Justiça Militar."

De todos estes, o Conselho de Justiça Militar é o menos conhecido já que, no Espírito Santo, é órgão judicante que atua numa única Vara especializada da Justiça Comum estadual. É que, pelo contingente das forças militares estaduais (abaixo de vinte mil homens), não há permissivo constitucional para instalação de um Tribunal de Justiça Militar entre nós.

O Conselho de Justiça Militar é órgão judicante originário na Auditoria de Justiça Militar do Espírito Santo. Originário, porque desde a instalação da Justiça Militar estadual, em 1947, foi o juiz natural em toda a matéria penal militar. Esta situação foi alterada pela entrada em vigor da Emenda Constitucional n.º 45, de 2004, que instituiu, nas Auditorias de Justiça Militar estaduais, dois órgãos judicantes: O Conselho de Justiça Militar e o Juiz de Direito da Justiça Militar. Repita-se, apenas nas Auditorias de Justiça Militar estaduais, porque as federais, que julgam integrantes das Forças Armadas, não sofreram qualquer modificação.

Assim cumpre expor, de maneira rápida, a origem, composição e competências do Conselho de Justiça Militar e estabelecer diferenças, quanto a estas últimas, com relação ao Juiz de Direito da Justiça Militar.

O art. 125, § 3.º da Constituição Federal é que permite aos Estados a criação da sua própria Justiça Militar, mediante proposta do Tribunal de Justiça, composta pelos juízes de direito e Conselhos de Justiça Militar, em primeiro grau, e pelos Tribunais de Justiça Militar, onde o efetivo seja superior a vinte mil integrantes. Onde não for – caso do Espírito Santo – o órgão recursal é o próprio Tribunal de Justiça. Ou seja, julgando matéria militar, por suas câmaras cíveis e criminais, isoladas e reunidas, o Tribunal de Justiça do Espírito Santo atua como órgão da Justiça Militar estadual.

A competência da Justiça Militar estadual está estabelecida no § 4.º do mesmo art. 125:
“Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças”

Sendo dois os órgãos judicantes, o § 5.º estabelece a repartição de competências entre eles:

“Compete aos juízes de direito do juízo militar processar e julgar, singularmente, os crimes militares cometidos contra civis e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, cabendo ao Conselho de Justiça, sob a presidência de juiz de direito, processar e julgar os demais crimes militares.”

Se não formos buscar as origens mais remotas dos Conselhos de Justiça Militar, que remontam ao Direito Romano, podemos relacionar como antecedente mais próximo a nós o Conselho de Guerra em Portugal. Instalado em 1640, dez dias depois de restaurada a independência da Espanha, recebeu Regimento em 1643 para se ocupar de assuntos afetos à administração militar do Reino. Dentre essas atribuições, funcionava também como tribunal de primeira instância para as tropas estacionadas na Corte e como tribunal de apelação para as tropas sediadas no interior. Compunha-se de Conselheiros de Guerra, Conselheiros de Estado, um Juiz assessor, dos quadros do Desembargo do Paço, promotor de justiça e secretário – podendo nele atuar, também, o próprio Rei (ROQUE, 2000, p. 25/27). Assim, a composição já reunia togado e vogais, em forma de escabinato.

Transferida a Corte portuguesa para o Brasil, em 1808, a primeira jurisdição especializada a ser instalada no país foi a militar: o Conselho Supremo Militar e de Justiça foi criado por Alvará de 1.º de abril de 1808, com competência, dizia o Príncipe-Regente, para “todos os negócios em que, em Lisboa, entendiam os Conselhos de Guerra, do Almirantado e do Ultramar na parte militar somente, e todos os mais que eu houver por bem encarregar-lhe”.

Por outro lado, em 1835 era criado no Espírito Santo o Corpo Provincial de Polícia, debaixo de uma organização militarizada, como sucedâneo do Corpo de Guardas Municipais criado em 1831 na Corte e nas Províncias. Havendo necessidade de controle interno da atuação de seus integrantes, em 1838 era criado no Corpo policial estadual um Conselho de Investigação e um Conselho de Sentença (NEVES, 2009, p. 38). Em termos de Exército e Armada, a investigação e o julgamento, a cargo, respectivamente do Conselho de Investigação e do Conselho de Sentença, foi mantido no Regulamento Processual Penal Militar de 1895 (PEREIRA, 2002, p. 174).

Em 1923 o Espírito Santo aderia à proposta de militarização da polícia veiculada no Decreto 3.351, de 03 de outubro de 1917. Passou então a Corporação estadual a “Força Auxiliar do Exército de Primeira Linha”, e a partir daí os delitos praticados por seus integrantes passaram a ser punidos na forma da lei militar (NEVES, 2009, p. 38).

Assim, e por esse rápido bosquejo histórico, vê-se que é da tradição da atividade militar que os infratores sejam julgados por um Conselho, pelos seus pares. Desde que militarizada a força policial no Brasil, assim se fez. Tentativas de extinção da Justiça Militar estadual, de modificar-lhe a competência etc, quando têm algum respaldo jurídico e não puramente ideológico, não levam em conta o caráter militarizado da força estadual: esta, doutrinariamente, não se destina apenas à prestação do serviço de segurança pública (conforme constatei em “A Repercussão Criminal da conduta do Policial Militar em serviço”, disponível em http://gtneves.blogspot.com/2011/01/repercussao-criminal-da-conduta-do.html ).

Integrado, na Auditoria Militar estadual, pelo juiz de direito auditor e por quatro oficiais da força auxiliar a que pertence o réu (Polícia Militar, Corpo de Bombeiros Militar) o Conselho de Justiça Militar é presidido, desde o advento da Emenda Constitucional n.º 45/2004, pelo juiz de direito (art. 125, § 5.º da CF). Tratou-se de consagração legislativa do que já acontecia na prática, porque as questões referentes ao desempenho regular dos trabalhos eram, de fato, cometidos pelo presidente o Conselho de Justiça (então o oficial mais antigo) ao juiz auditor.

Este, aliás, entre suas funções, tem a de formar o Conselho, mediante sorteio em sessão pública, secretariado pelo Escrivão-secretário, a que estará presente o promotor de justiça (art. 20 da Lei 8.457/92, Lei de Organização Judiciária Militar da União). A recusa injustificada à prestação do serviço no Conselho de Justiça pelo oficial sorteado e convocado tipifica o delito militar do art. 340 do Código Penal Militar.

Nas sessões do Conselho de Justiça todos os juízes têm igualmente voz e voto; os juízes militares manifestam-se após tê-lo feito o juiz auditor, em ordem inversa de hierarquia (posto e antiguidade no posto – art. 400 do CPPM). Assim, na instrução de feitos podem inquirir o acusado, ofendido e testemunhas, dirigindo-se ao juiz auditor, que perguntará ao inquirido (art. 418 do CPPM).

Nas sessões de julgamento os juízes militares votam, da mesma forma, na ordem inversa de hierarquia (art. 435 do CPPM); tratando-se de juízes de fato e de direito, devem fundamentar, mesmo que faticamente, o voto proferido, na forma do art. 93, inciso IX, da CF. A votação faz-se de forma oral, e o resultado do julgamento é apurado por maioria simples, valendo os cinco votos igualmente na apuração. Cabem, neste ponto, algumas observações: a primeira é que quando, por diversidade de votos, não se constituir maioria para decidir, aplica-se a regra do parágrafo púnico do art. 435 do CPPM; a segunda é que, na forma do art. 437, alínea “a” do CPPM, o Conselho de Justiça poderá dar aos fatos definição jurídica diversa da que constar da denúncia, já que o réu se defende de fatos e não de tipificação, decidindo normalmente em caso de delito apenado com pena idêntica ou mais branda (Súmula n.º 5 do STM); se, no entanto, em conseqüência da nova definição tiver de aplicar pena mais grave, só poderá fazê-lo se o Ministério Público Militar tiver proposto a alteração em alegações finais; a terceira é que o Conselho de Justiça poderá proferir condenação mesmo se o Ministério Público Militar houver se manifestado pela absolvição em alegações finais, bem como reconhecer agravantes objetivas, mesmo não argüidas (art. 437, alínea “b”, do CPPM).

Das sessões do Conselho lavar-se-á ata circunstanciada, onde constarão todos os incidentes ocorridos (art. 395 do CPPM). Quanto a esses possíveis incidentes, se se tratarem de questões de ordem, cabe ao juiz auditor, que preside o Conselho de Justiça, submetê-las ao colegiado, após a oitiva do Ministério Público (art. 29, VI, da Lei 8.457/92). Incidentes propriamente processuais serão processados na forma dos arts. 128 e seguintes do CPPM.

A repartição de competência entre o Conselho de Justiça Militar e o Juiz de Direito da Justiça Militar (juízo singular) não traria maiores dificuldades, porque a disposição constitucional é clara: “Compete aos juízes de direito do juízo militar processar e julgar, singularmente, os crimes militares cometidos contra civil [...]” (art. 125, § 5.º da CF). Assim, havendo vítima civil, seja ela sujeito passivo imediato ou mediato do delito, a competência para conhecer dos fatos é do juízo singular: onde a Constituição não distingue...

No entanto foi estabelecido inicialmente por uma parte da doutrina que a intenção do legislador era simplesmente retirar dos Conselhos de Justiça o julgamento das lesões corporais cometidas pelo policial militar em serviço, para evitar espírito de corpo etc etc, na esteira do que se fizera no homicídio contra vítima civil. Assim, e lastreada nessa consideração, surgiu a interpretação de que os crimes cometidos propriamente contra a Administração Militar (Título VII do Livro I da Parte Especial do CPM – arts. 298 a 339 do CPM) são todos julgados pelos Conselhos de Justiça - inclusive os de concussão, excesso de exação, corrupção ativa e passiva, que a maior parte das vezes envolvem civis. Ou seja, utilizando-se de critério infraconstitucional – classificação dos delitos quanto ao sujeito passivo – essa interpretação, na prática, impede um maior esvaziamento da competência dos Conselhos de Justiça, já privados do julgamento dos delitos de lesões corporais (sem dúvida o tipo penal de maior incidência estatística, ao menos na AJMES).

Esta posição, que parece ir logrando maioria hoje, afigura-se-nos em desacordo com a clareza da disposição constitucional, data vênia: se não existe, no Código Penal Militar, Título ou Capítulo que se refira a “crimes contra civis”, o dispositivo constitucional está a referir-se simplesmente à vítima, independente de classificações doutrinárias. Urge que a questão chegue o quanto antes ao Supremo Tribunal Federal: competência do Juízo é matéria de ordem pública e ocorrendo diariamente pelo país afora julgamentos proferidos nesta espécie de delitos por um e outro órgão judicante, sem dúvida haverá sentenças anuladas. O que acarretará transtornos à prestação jurisdicional e também à manutenção da disciplina na tropa, sentido maior da jurisdição penal militar.


REFERÊNCIAS:

NEVES, Getúlio Marcos Pereira. Dados Históricos da Justiça Militar do Espírito Santo. In Revista Preleção: Assuntos de Segurança Pública, PMES, Vitória, Ano III, n.º 05, Abril/2009, p. 37/45;

PEREIRA, Viviane Freitas. Concretizações judiciais realizadas pelos Conselhos de Justiça da Justiça Militar: alguns aspectos hermenêuticos. In Direito Militar: História e Doutrina. Getulio Corrêa (org). Florianópolis: AMAJME, 2002, p. 171/180;

ROQUE, Mauro. A Justiça Penal Militar em Portugal. Linhó: Atena, 2000

(publicado na Revista In Limine, n.º1, jan-mar 2011, p. 29/31)