Numa sociedade organizada, há de haver a fiscalização da ação de seus integrantes que venham a atentar contra a ordem pública e a paz social. No Estado Democrático de Direito a organização policial é a responsável primeira pelo enfrentamento e pela investigação dessas ações indesejadas. Sendo assim, às organizações policiais o Estado concede o uso da força para coibir condutas que atentem contra a ordem pública e sejam danosas aos interesses comuns.
No entanto o Estado, que detém o monopólio da força, deve usá-la dentro de rígidos preceitos, evitando a causação de danos desnecessários ou, se inevitáveis, que sejam excessivos à sociedade. Não por outro motivo sua onipresença é limitada pela Constituição, sua ação é prescrita pelas leis. A ação estatal fora da lei é covarde, porque em última instância o cidadão conta exatamente com o Estado para garantir-lhe os direitos. O reconhecimento de uma gama de direitos inquestionáveis e inalienáveis à pessoa humana (considerada esta ainda antes do que como cidadão), é fato em todas as Cartas constitucionais ocidentais modernas. O direito à incolumidade física, por exemplo, é um desses, deve ser garantido pelo Estado. Que tem agentes para fazê-lo – no caso, os integrantes das organizações policiais.
Seja sob que prisma se enfocar a questão da organização estatal ao sabor das correntes ideológicas dominantes, o da supremacia do Estado ou o da supremacia do cidadão, a existência da instituição policial se justifica pela própria necessidade de manutenção da ordem pública e da paz social, em defesa do cidadão ou em defesa das instituições – responsáveis estas, em última análise, pela defesa daqueles.
Mas devendo o Estado proteger os cidadãos de ações indesejadas, estará agindo contra seus próprios integrantes, quando estes forem infratores da ordem pública e da paz social. Não existindo, na doutrina constitucional moderna, a possibilidade de restrição de direitos a estes últimos, a ação estatal de repressão deve ser legítima, pautada em preceitos legais específicos e em princípios de caráter geral, reconhecidos a toda a massa de cidadãos, indistintamente.
É fato que a atividade policial do Estado pode descambar para o excesso na ação de seus agentes. Descontados aí os casos de desvio deliberado de conduta, o esperado é que isto se dê pelas condicionantes psicológicas inerentes ao serviço policial: na atividade de repressão, pela alta dose de estresse integrado à ação, numa reação normal à exposição da pessoa ao risco iminente; na atividade de investigação, pela alta dose de ansiedade advinda do desejo da elucidação de um fato criminoso, com o mínimo de riscos pessoais.
Como a ação policial é pautada pela lei, há necessidade de fiscalização constante dessa atuação, o que é desempenhado pelas corregedorias das corporações policiais. Faltas disciplinares, que são o descumprimento dos preceitos regulamentares à atividade policial, podem ou não constituir crimes. No primeiro caso, merecerão investigação na esfera judicial; no segundo caso, a investigação se fará apenas internamente à corporação policial.
A atividade de repressão à perturbação da ordem pública é a ponta de lança de atuação do Estado junto a eventuais infratores. É desempenhada, no âmbito estadual, pela Polícia Militar. Esta é uma das espécies de força policial previstas na Constituição Federal (art.144), e é a única militarizada possível no âmbito dos estados-membros. Aliás, na forma como constituída a República brasileira, os estados-membros que se integraram à federação perderam o direito de manter exércitos; a força armada que lhes é possível manter é justamente a polícia militarizada, para manutenção da ordem interna em seu território - já que a manutenção da ordem externa é atribuição da União (art. 142). Não por outro motivo as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares estão definidos na Constituição Federal como forças auxiliares e reservas do Exército (art. 144, § 6.º), podendo ser convocados para integrá-lo no caso de guerra externa declarada.
O fato é que as tentativas de reforma das polícias militares não levam em conta a origem e a concepção doutrinária dessa espécie de força policial, focando-se tão somente no desempenho de sua função. Ao desempenhá-la, não há dúvida de que presta um serviço público, o serviço de segurança pública, que é atribuição do Estado (art. 144 da CF). Mas não há dúvida, também, que a extinção dessa polícia como concebida hoje, ou sua subordinação diretamente à União, constituiriam um atentado contra o princípio federativo. A matéria comporta uma maior elaboração doutrinária para se evitar inconstitucionalidades.
Exatamente esse dúplice caráter da Polícia Militar, não muito bem percebido por todos, gera dificuldades na elaboração de uma sua concepção moderna e faz da atividade de planejamento de sua atividade-fim, mas muito mais da atividade de planejamento da formação de seus integrantes, campo propício para embates doutrinários antagônicos: ora se prestigia a ideia de força estadual armada, ora a idéia de organização prestadora de serviço público. Mas de qualquer maneira, demandando uma formação militar do agente, tanto quanto seu treinamento para prestação do serviço.
Ora, enquanto a concepção de Polícia Militar se mantiver na forma como hoje consta da Constituição Federal (e são muitas as tentativas de alteração, servindo aos mais diversos interesses), a atuação do policial militar estará subordinada a regras de conduta, constantes dos Regulamentos Disciplinares (art. 18 do Dec. Lei 667/69), e também ao Código Penal Militar (art. 19, parágrafo único, do mesmo diploma). O Código Penal Militar (Dec. Lei 1001, de 21/10/69) é aplicado às Forças Armadas e às suas forças auxiliares para coibir a prática de crimes funcionais. Ou seja, os praticados no desempenho de ou em razão da função profissional do agente.
Muitos se perguntaram ao longo da história republicana sobre a necessidade de se submeter em tempo de paz as forças militarizadas a um código de conduta específico. Seja ao sabor da maioria parlamentar dominante, seja como resultado da evolução das instituições, muitos ainda hoje o fazem. Não há dúvida de que, desempenhando uma atividade potencialmente lesiva, sendo os únicos agentes armados pelo Estado para o desempenho de sua função, os militares constituem segmento diferenciado de agentes estatais. A própria Constituição Federal introduz esta distinção, tratando o pessoal militar e civil em sedes distintas (militares estaduais no art. 42). Não há dúvida também de que, pela experiência histórica acumulada (e é sempre insensato desprezar a experiência histórica) até hoje não se concebeu forma mais eficaz de otimizar a atuação de um grupo de homens armados que prestigiar a hierarquia e a disciplina como pilares de organização da instituição.
Assim, permitindo aos estados-membros a manutenção de uma força militarizada em seu âmbito de atuação, a Constituição Federal lhes permitiu, também, a organização de uma justiça militar integrante de seu Poder Judiciário (art. 125, § 3.º), a exemplo do que ocorre no nível da União (art. 122). É esta justiça militar estadual o foro a que se submetem os militares estaduais para investigação criminal de sua conduta quando no desempenho de suas funções (art.19, parágrafo único, do Dec. Lei 667/69). Portanto, é na justiça militar estadual que se investigam também eventuais excessos cometidos pelo policial militar na atividade de policiamento.
Compreendendo essa complexidade na concepção doutrinária da força militarizada estadual, a Auditoria de Justiça Militar estadual não é lugar para ideologias. Deve nortear sua atuação o sentido de preservação da incolumidade da Corporação, que protege a incolumidade do cidadão. Mas não se podendo perder de vista que tanto a preservação da instituição como a proteção do cidadão são o móvel de atuação da justiça militar estadual, definir graus de importância de cada uma das vertentes, ou definir se uma se sobrepõe à outra, é meramente questão ideológica.
Deixando de lado argumentações teóricas e tomando de exemplo prático para ilustrar este ponto: modernamente a opinião pública se divide entre os que pensam que, sendo o abordado “bandido”, toda a ação policial está justificada, o que inclui eventuais excessos; por outro lado há os que pensam que, sendo o abordado “trabalhador”, ou não portando produto de crime, a própria abordagem policial é ilegítima. O fato é que uma e outra situação geram investigação da conduta do policial, seja por transgressão disciplinar seja por crime militar, desembocando esta última, obrigatoriamente, na Auditoria de Justiça Militar. Onde as ocorrências são tratadas da mesma forma: em última análise, a prestação defeituosa do serviço, já que não é lícito ao agente do Estado causar dano ao prestá-lo à sociedade.
Mas no desempenho de sua função presume-se que o agente público aja sempre amparado pela lei. Assim, a ação do policial militar em serviço, mesmo usando da força, considera-se amparada pelo estrito cumprimento de seu dever legal – o de prevenir e reprimir condutas lesivas à ordem pública. Havendo indícios de excessos deliberados de sua parte, ou descuidos na observância da técnica policial e/ou do seu dever de cuidado, ou omitindo-se quando tenha a obrigação legal de agir, responderá criminalmente pelo resultado, desde que a conduta seja tipificada no Código Penal Militar.
Responder a ação penal, por si só, causa transtornos ao policial militar, porque a situação de sub judice acarreta-lhe algumas conseqüências funcionais. Mas muitas vezes será absolvido ao final, seja porque sua conduta restará justificada penalmente, seja por falta de provas conclusivas para sua condenação. A contrário do senso comum, a maior parte das vezes a absolvição criminal vem na esteira de pedido neste sentido pelo Ministério Público Militar, o guardião dos direitos indisponíveis da sociedade nesta matéria: como constatado com relação à Auditoria de Justiça Militar do Espírito Santo, no período de 1999 a 2004, em 294 ações penais que foram a julgamento o MPM pediu absolvição em 47% dos casos (NEVES, Getúlio M. P. Uma Nova Justiça Militar Estadual. Revista In Limine, AMAGES, Vitória, Abr. 2005)
Ou seja, não é o simples fato de ser policial, ou de ser policial militar, ou de usar a força, ou de desempenhar o policiamento ostensivo e fardado, que deverá acarretar uma condenação criminal. É indiscutível que a fiscalização e o controle da atuação policial militar é, ou deveria ser, uma atividade ininterrupta - repita-se, pela sua potencial lesividade face aos direitos do cidadão. Mas se se consideram os pedidos de arquivamento em sede de inquéritos policiais militares e os pedidos de absolvição em alegações finais pelo MPM, pode-se dizer que tecnicamente a condenação criminal é uma situação muito menos corriqueira do que o público supõe seja necessário acontecer.