23 de junho de 2011

VIAGEM QUE SE FEZ NO MÊS DE JUNHO À FOZ DO RIO DOCE, NUM DIA DE MAR ALTO

Era a ideia inicial assistir ao encontro das bandas de congo em Regência; consta que se percebe ligeira diferença na batida, entre os grupos da Grande Vitória e a daqueles grupos de mais ao norte, como me informaram certa vez. Alem disso, a festa haveria de ser bonita de fato, naquele início de junho, no encerramento das comemorações em honra ao Caboclo Bernardo, salvador da tripulação do Cruzador Imperial Marinheiro, da Armada Imperial, em 7 de setembro de 1887.

Domingo, de sol, pela manhã, toca para a Vila de Regência, em Linhares. Distante trinta e oito quilômetros da BR-101, dos quais apenas aproximadamente dez são asfaltados, os buracos no caminho não conseguem estragar a graça da paisagem quase vespertina, de capinzais com vacas pastando e de raros coqueiros margeando a estrada. Na chegada à Vila, uns bons trinta ou quarenta minutos depois, o grosso do movimento de brincantes do congo parecia já ter-se dirigido para o local do encontro, ficando para trás uns raros retardatários: algumas meninas integrantes de bandas, com seus vestidos coloridos, entrando e saindo de um caminho que ia dar à pousada de Dona Mariquinha - organizadora da festa e responsável pela manutenção da memória do herói capixaba nativo do lugar.

À vista desse desencontro, restava ao viajante ver uma outra atração maior da Vila (para quem não faz muito bem o surf), que é a foz do Rio Doce. A famosa foz do Rio Doce, de tantas histórias sinistras para a navegação costeira do Espírito Santo e do Brasil. Cujos bancos de areia, traiçoeiros por se moverem com os ventos e com a maré, passam uma falsa impressão de segurança, mas desafiam sempre a perícia de pilotos e práticos daquela barra. Não por outro motivo contavam os antigos habitantes de Regência que na época companhias inescrupulosas, querendo se desfazer de velhos barcos condenados, mas devidamente segurados, mandavam-nos transpor aquelas águas perigosas...

Cruzador Imperial Marinheiro (Marc Ferrez)
A foz do Rio Doce é local de difícil navegação e por isto mesmo de naufrágios famosos. A primeira ocorrência de que se tem notícia se deu já em 1573, quando os padres jesuítas Luís da Grã e Inácio de Tolosa escaparam ali de um sinistro. Prosseguiram, então, em romaria, à ermida da Penha, em Vila Velha (fiz referência ao fato no texto “Nos Passos da Romaria, na Festa da Penha”).

O Acadêmico Norbertino Bahiense, em seu O Caboclo Bernardo e o Naufrágio do Imperial Marinheiro (2.ª ed, Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1971, p. 190/196), lista outras ocorrências da mesma espécie naquelas plagas: citando Basílio Daemon, refere-se a naufrágio ocorrido em 1837, de uma expedição vinda da Inglaterra, em que se perderam “todos os instrumentos e muitos objetos de valor”; coincidentemente a 7 de setembro de 1876, mesmo dia em que onze anos depois se daria o episódio do “Imperial Marinheiro”, naufragou a lancha “Vencedora”, com cinco pessoas a bordo, quando morreram quatro, inclusive o filho do proprietário. Junto ao Serviço de Documentação da Marinha, Bahiense, que também pertencia aos quadros do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, levantou dados sobre o naufrágio do vapor “Irene”, que se verificou a 1 de novembro de 1899, véspera do Dia de Todos os Santos, felizmente tendo-se salvo vidas e cargas, mas não a embarcação. Em 14 de setembro de 1905 naufragava no mesmo local o “Santa Cruz”, de que foram resgatados, no dia seguinte, todos os passageiros, depois de uma noite de tempestade e desespero, perecendo alguns tripulantes que tentaram alcançar a costa a nado.


Não fosse pelo solene da natureza, é local para se visitar com respeito, tantas foram as ocorrências náuticas funestas. Do centro da Vila de Regência vai-se a pé até a praia, forte, de mar aberto, como o Pontal do Ipiranga ali adiante e mais a norte a ilha de Guriri, em São Mateus: aliás quanto mais ao norte do Espírito Santo se vai, mais as praias deixam de se desmanchar em enseadas, como as de Guarapari, e se tornam cada vez mais retilíneas e a perder de vista, como acontece no litoral do nordeste. A caminhada, pela areia grossa da praia, batida pelos ventos, não deixa de ser puxada; mas procurando internar-se mais em direção ao continente, ao invés de seguir em linha reta o recorte costeiro, o viajante logo avista as águas do Rio Doce, abaixo do nível das dunas e envolvidas por uma moldura de vegetação nativa de restinga.


Tudo ali é impressionante, de fato. Amplidão; descampado. À frente o mar aberto, constantemente varrido pelos ventos, ventos estes que deviam ser propícios aos veleiros bem conduzidos de qualquer calado. Num dia de ressaca, as condições do mar remexido fazem imaginar as lamentáveis cenas de desespero das vítimas de todos aqueles sinistros. E fazem lembrar a coragem do pescador Bernardo José do Santos, que naquele dia por quatro vezes jogou-se ao mar, a nado, para tentar levar uma corda até o Cruzador da Marinha Imperial, só logrando êxito na quinta investida mar adentro. Por seus esforços, que se adivinham dali, é que Bernardo, já feito herói, dirigindo-se ao Rio de Janeiro para se avistar com a Princesa Imperial Regente, foi acolhido em Vitória, com préstito e honras, pelo Presidente da Província, como se lê da cobertura do jornal “Província do Espírito Santo” de 18 a 29 de setembro daquele ano de 1887.


Eis aí o final do curso do Rio Doce por terras de Minas Gerais e Espírito Santo, oitocentos e cinqüenta e três quilômetros desde a nascente, na Serra da Mantiqueira: a mais importante bacia hidrográfica localizada inteiramente na região sudeste. Toda a pujança do grande Rio desemboca numa área de aproximados 1,97 km² de foz, onde o encontro das águas doces e salgadas forma um espetáculo grandioso. Em certos dias a altura da maré determina a vantagem das águas marinhas e estas nesses dias sobrepujam sem esforço as águas do rio. Mas não sem se tingirem da coloração barrenta que vem suspensa nos sedimentos arrastados dos interiores do continente.


Passando algumas horas por ali, absorvido na observação da paisagem e na captação de imagens, com alguma sorte pode-se testemunhar mudança de tempo que vai a pouco e pouco tornando baço o ar, resultado da potente maresia soprada do mar alto. E não deixando, ao fazer descer uma cortina cinzenta sobre o espetáculo – que era inicialmente só fulgores de luz - de pintar reflexos e sombreados interessantes naquela amplidão de descampado. A trilha sonora à base do sopro forte do vento, levantando areia e assobiando à volta de tudo num crescendo, ajuda a compor nessas ocasiões um quadro quase terrível e, pela fúria do mar, chegando a se mostrar um tanto assustador. Mesmo para quem conhece o mar de outras paragens.


Com um pouco de sorte este clima pode ser atenuado, tendo-se a oportunidade de testemunhar em sua atividade a placidez de algumas aves aquáticas nativas do local. Contraste interessantíssimo: sem pressa, vão cuidando de alimentar-se, enquanto a maré não sobe e lhes tira a possibilidade de petiscarem a esmo pelos arroios formados nas poças e cursos d’água. Sítios fugazes estes, porque rapidamente preenchidos pelo volume líquido crescente que se espraia pela terra a dentro, represando e forçando a porção de água doce a retroceder e esperar melhor ocasião para se misturar ao oceano lá adiante, na boca da barra.


Esta, encapelada pelos ventos e pela ressaca, mostra-se em dias desses quase que invencível. Às vezes tem-se a possibilidade de observá-lo na prática: terra de lida da pesca e de pescadores, de que era exemplo o catraieiro Bernardo José dos Santos, não raro veem-se embarcações lançando àquela mistura de águas de sabores distintos suas redes de pesca - ou tentando fazê-lo, como é o caso nessas ocasiões. Ocasiões em que os homens do rio/mar preferem não se aventurar ao largo, não chegando a deixar os limites seguros da quase bacia que forma ali o grande curso d’água. Que, de uma forma ou de outra, os protegem das ondas que se arremessam furiosas contra ele mesmo, como a tentar fazê-lo retroceder às entranhas dos sertões que no final o conduzem ali, ao desaguadouro terrível. Em ocasiões dessas, vencidas pela barra formidável, as lanchas retrocedem à segurança de dentro da pequena baía de água doce, para se retirarem em seguida, momentaneamente vencidas, ao porto de onde saíram.

Já perto do fim do dia se conclui que não é este um espetáculo comum, não é este um lugar comum. As lembranças de tantos episódios de desespero é capaz de terem gestado histórias e tradições interessantes no lugar. O esplendor da natureza também. Não se consegue saber de umas e outras estando apenas de passagem, poucas horas, a captar imagens na região. Mas pressente-se no ar um certo riscado mágico e solene ao mesmo tempo, como a exigir daquele que se deixou impressionar pelo espetáculo que venha se aprofundar mais e mais nos mistérios do lugar. Um apelo quase que irresistível.