Daqui,
Ecoporanga é longe à beça. Muito além de onde o vento faz a curva. Município de
grande extensão, encravado nos interiores do vizinho Minas Gerais, ou
vice-versa. O distrito da sede tem seus encantos; o clima não é todo o tempo
tórrido como se pode pensar.
Território
de ocupação recente, recortado da serrania vigorosa que lhe domina o relevo, a
economia é quase toda agrária. Lugar de camponeses, ocupantes de uma terra por
quê tiveram de lutar renhidos. Os distritos – Imburana, Prata dos Baianos,
Santa Luzia (antiga Patrimônio dos Pretos), Cotaxé, Muritiba, Joaçuba – todos pejados de história.
E de histórias.
A
propósito disso, diga-se que Ecoporanga é terra literária como poucas no Espírito
Santo. Escritores pintaram a terra e as suas histórias em estilos diversos.
Luzimar Nogueira Dias historiou a luta pela terra no jornalístico Massacre
em Ecoporanga; Adilson Vilaça compôs páginas de ficção-mas-nem-tanto sobre
tipos e fatos e ocorrências no já quase-clássico romance Cotaxé e nas
crônicas ligeiras de A trilha do Centauro; fez ilações de cunho
sociológico no ensaio Cotaxé: a reinvenção de Canudos, publicado pelo
Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo em 2007. Mais recentemente,
Saulo Ribeiro dá sentido à road-busca das personagens d’Os
incontestáveis fazendo-os cruzar reminiscências do esquecido Estado União
de Jeová, erguido naqueles rincões. Passagem essa estudada por André Luiz Gomes
de Souza no História do Estado União de Jeová, publicado pelo Instituto
Histórico e Geográfico do Espírito Santo em 1998 e que gerou documentário de
mesmo nome dirigido por Joel Zito Júnior, sob a supervisão de Vilaça.
A
saga do Cotaxé, passagem pouco conhecida da História do Espírito Santo, se revela ao
interessado tão violenta quanto obscura. Época - nem tão distante assim - de
disputa grande pela terra, envolvendo estados limítrofes. Tempos do contestado,
daqui também, como o outro lá do Sul, entre o Paraná e Santa Catarina. O nosso
durou anos e inspirou outros escritos ilustres – caso do Bangue Bangue do
café, coleção de contos do jurista Ezequiel Ronchi Netto ambientado na
Barra de São Francisco agreste dos primórdios.
Todo
esse sertão do Espírito Santo é quase que desconhecido pelo litoral. Andando
pelos interiores, a serviço do Tribunal de Justiça ou por conta de atividades
culturais, me dou cada vez mais conta desse fato.
Por
isso aderi de imediato ao convite formulado pelo confrade Adilson Vilaça para
ir a Ecoporanga, preparar terreno para a realização do I Festival da Memória do
Município. Num sábado muito cedo saímos de Vitória, além de mim e do confrade
Adilson, o confrade João Gualberto e mais o fotógrafo Apoena Medeiros. E fomos
nós rumo norte, num dia chuvoso e movimentado.
Muitas
horas de estrada depois Ecoporanga me foi aconchegante, nas circunstâncias.
Acomodamo-nos no hotel, no centro da cidade, e logo partimos em demanda dos
recantos e das histórias que fomos cercar. Adilson é conhecido feito vereador
bom de voto, bem recebido onde quer que ande. Ou pare. E assim paramos e nos
achegamos a vários endereços, de gente boa e hospitaleira. Em Imburana mastigamos
excelente biscoito de polvilho em casa de dona Geralda Maciel. Soubemos
reminiscências dos tempos da revolta camponesa e a participação da anfitriã.
Rumo
ao Cotaxé, ao pé da Pedra da Viúva, de que ouvimos a explicação geográfica - a
última montanha de uma série de ocorrências daquele relevo acidentado, a Serra
dos Aimorés - e a popular - o casal de índios aldeados lá no cimo, de que o
marido se finou primeiro, deixando a viúva saudosa. Cotaxé foi o centro
administrativo do Estado União de Jeová, autoproclamado estado encravado nos
anos 1950 entre terras disputadas pelo Espírito Santo e Minas Gerais, sob a
liderança do baiano Udelino Alves de Matos. O povoado, ensimesmado, guarda aura
de capital-de-história-surpreendente, que lhe desmentem o tamanho do território
e a quantidade de viventes.
Lá
nos abancamos na pensão Primavera, de dona Nelci, bem na praça principal. Sabendo
da procedência dos visitantes e do móvel da visita, trouxe de lá de dentro
livros de autores a quem conheceu. Alguns, mesmo, tendo ido se hospedar lá com
ela: Renato Pacheco e Luiz Guilherme Santos Neves, Luzimar Nogueira Dias,
Adilson Vilaça, Saulo Ribeiro.
A
conversa era boa. Lembranças, de fatos e de conhecidos, história local, casos –
cuidávamos para não demorar demais. Próxima parada, distrito de Santa Luzia,
antigo Patrimônio dos Pretos, que, esclareceu Adilson, nosso cicerone, tem
capoeira famosa. Fato: na praça principal do povoado, um clube, local de
prática da arte marcial, diz uma placa.
No
outro dia pela manhã Prata dos Baianos, também distrito intimamente ligado à
história do Estado União de Jeová, onde morador idoso visitado por nós, que
conheceu Udelino, guarda o jeito do folguedo do Roubo da Bandeira. Boa prosa
com o mestre e esposa, logo de manhã cedo de um dia fresco e de céu encoberto. Por último, uma ida à surpreendente Comunidade Veloso, entre Ecoporanga, Nova Venécia e Vila Pavão.
Locais
carregados de histórias, é de repetir. História de povo pobre - é jeito de ver
a coisa -, mas também história de povo digno e trabalhador. Por isso mesmo,
cioso de seus direitos e da sua importância no mundo.
Naquelas
lonjuras do que se pode chamar sertões do Espírito Santo, uma comunidade
diversa, tão afastada dos modos do litoral. Ficamos de voltar coisa de um mês
depois, agora oficialmente, para festejar a todos. Infelizmente, foi-me
impossível fazer o caminho de retorno.
Duas
visões complementares me ficam dessas últimas visitas à cidade: na penúltima
estive a trabalho, visitando os arquivos judiciários da Comarca, constatando-lhes
a boa disposição e a funcionalidade. O que se faz necessário, num lugar de tamanho
apelo histórico a pesquisadores e visitantes. Da última, o contato com a
população, pessoas que no fim das contas têm parte das suas vidas documentadas
nos autos dos processos que inspecionei.
Voltar lá é necessário. A essa
porção do Espírito Santo integrada com sacrifícios, cujo modo-de-ser enriquece sobremaneira
esta terra. Digam-no os que de lá tiraram - e continuam a tirar – registros que
empolgam, contribuindo para integrar-lhe as riquezas ao imaginário da nossa
gente.