26 de dezembro de 2019

Breves reflexões aeroportuárias


Antigamente quem viesse a Vitória pelo ar pousava na água, no cais do hidroavião, em Santo Antônio. Consta que até Saint-Exupéry o fez. Mas esta maneira que hoje se pode considerar bucólica de chegar durou pouco tempo: com o fim da Segunda Guerra os hidroaviões se tornaram obsoletos para transporte de passageiros. Sobreviveram muitos anos em operação na Amazônia, onde os Catalina em alguns lugares continuaram representando a única maneira de chegar.
Não era o caso de Vitória, onde havia necessidade de expandir a operação de voos comerciais. O local do campo de pouso foi escolhido por um engenheiro de uma empresa francesa no local onde desde a década de 30 funcionava o aeroclube da cidade. Integrando a lista de aeroportos que entraram no convênio firmado entre os governos brasileiro e norte-americano para cessão de aeródromos durante a Segunda Guerra Mundial, o projeto foi elaborado pelo Exército americano e executado pelo Ministério da Aeronáutica. Inaugurado em 1946, encampado pela Infraero em 1975, só em 2006 o Aeroporto de Vitória recebeu denominação oficial: Aeroporto Eurico de Aguiar Sales.
Vitoriense da gema, político e advogado, Eurico Sales (1910 – 1959) foi secretário de estado no Espírito Santo e ministro de estado no governo Juscelino Kubitscheck. Especialista em Direito Comercial, foi professor da Faculdade de Direito do Espírito Santo. Há um busto seu, em tamanho mínimo, num recanto do novo aeroporto, inaugurado recentemente e que realocou Vitória na rede aeroportuária brasileira. Ano passado propôs-se projeto de lei para mudar o nome do aeroporto para Augusto Ruschi.
Particularmente nada contra o naturalista, pelo contrário. Acadêmico da Academia Espírito-santense de Letras (segundo ocupante da cadeira 25), estudioso e militante, Ruschi é merecedor de qualquer homenagem que se lhe possa fazer. Mas sem dúvida essa proposta de alteração da denominação do aeroporto demonstra como a fama é volátil.
A fama nada mais é que a repetição do nome. Mas o que é válido, o que é relevante, para uma geração, não o será necessariamente para a próxima. Isto se dá em todos os campos da atividade humana, e os escritores sabemos bem disso. Para que a fama permaneça, devem a personagem e a obra resistir à releitura que lhes fazem uma geração após outra. Para tanto, é necessário que a figura e a obra sejam relembradas, ou não estejam esquecidas: senão em evidência, ao menos dela cuidem os ciosos pela memória ou os que influem na formação da opinião pública. A reflexão, então, é: será justo que pouco se saiba sobre um proeminente homem público do Espírito Santo como foi Eurico Sales? Convenhamos, nem tão pródigo assim é o Espírito Santo em matéria de Ministros de Estado...
Fato é que, já há algum tempo, o padrão “homem público” pouco diz ao público, a não ser em termos financeiros (visando à transparência, o salário consta logo após a menção do cargo em matérias de jornal). Importam ao público as realizações em outros campos, o que é normal que aconteça, ao sabor das flutuações da opinião pública. Em defesa de Eurico Sales, lembremos ter sido secretário de estado exatamente da Educação e Cultura, o que pode tornar mais palatável o seu perfil aos dias de hoje.
Talvez se possa resolver a questão dando o nome de um ao terminal de passageiros, do outro ao terminal de cargas. Não sei, trata-se de negócio público, dos afazeres de homens públicos. Para não destoar dos tempos que correm deve-se proceder à crítica sem necessariamente conhecer o assunto, já que a liberdade de expressão é sagrada e as redes sociais aí estão para isso mesmo.
Uma segunda reflexão diz respeito à interessante origem do aeroporto: como dito acima, deve-se a escolha do local a engenheiro francês, o projeto a engenheiros norte-americanos. Ambas as nações envolvidas nos primórdios da atividade aérea, não tivesse o voo tido por pioneiro de Alberto Santos Dumont acontecido na capital francesa, desafiando a fama do voo que na América fizeram os norte-americanos irmãos Wright.
Trata-se de discussão para muito mais de metro. Da qual, frequentador de redes sociais que sou, prefiro apegar-me a faceta secundária, que é a prática de qualificar Santos Dumont como “franco-brasileiro”. Creio que se assim fosse, a máquina de propaganda francesa já teria entrado na disputa pela hegemonia dos primórdios da aviação. Claro, fosse eu especialista, saberia que, na França, consta que Clement Ader já havia voado num mais-pesado-que-o-ar, em segredo militar, desde 1890... mais lenha na fogueira.  
Recorda-me uma vez ter passado a noite no Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, esperando a chegada do meu filho Miguel, que se daria por volta das cinco horas da manhã. O primeiro voo de Vitória chegaria lá depois do horário do desembarque e o miúdo teria de ser entregue a alguém na chegada. Um aborrecimento no dia, mas que, hoje vejo, me credencia como especialista para falar de aeroportos. Ao menos em redes sociais, para onde, com a permissão do destinatário original, pretendo remeter esta breve reflexão. 

(publicado no Escritos de Vitória, n.º  34: Aeroportos)