Antigamente
quem viesse a Vitória pelo ar pousava na água, no cais do hidroavião, em Santo
Antônio. Consta que até Saint-Exupéry o fez. Mas esta maneira que hoje se pode
considerar bucólica de chegar durou pouco tempo: com o fim da Segunda Guerra os
hidroaviões se tornaram obsoletos para transporte de passageiros. Sobreviveram
muitos anos em operação na Amazônia, onde os Catalina em alguns lugares continuaram
representando a única maneira de chegar.
Não
era o caso de Vitória, onde havia necessidade de expandir a operação de voos
comerciais. O local do campo de pouso foi escolhido por um engenheiro de uma
empresa francesa no local onde desde a década de 30 funcionava o aeroclube da
cidade. Integrando a lista de aeroportos que entraram no convênio firmado entre
os governos brasileiro e norte-americano para cessão de aeródromos durante a
Segunda Guerra Mundial, o projeto foi elaborado pelo Exército americano e
executado pelo Ministério da Aeronáutica. Inaugurado em 1946, encampado pela
Infraero em 1975, só em 2006 o Aeroporto de Vitória recebeu denominação oficial:
Aeroporto Eurico de Aguiar Sales.
Vitoriense
da gema, político e advogado, Eurico Sales (1910 – 1959) foi secretário de
estado no Espírito Santo e ministro de estado no governo Juscelino Kubitscheck.
Especialista em Direito Comercial, foi professor da Faculdade de Direito do
Espírito Santo. Há um busto seu, em tamanho mínimo, num recanto do novo
aeroporto, inaugurado recentemente e que realocou Vitória na rede aeroportuária
brasileira. Ano passado propôs-se projeto de lei para mudar o nome do aeroporto
para Augusto Ruschi.
Particularmente
nada contra o naturalista, pelo contrário. Acadêmico da Academia
Espírito-santense de Letras (segundo ocupante da cadeira 25), estudioso e
militante, Ruschi é merecedor de qualquer homenagem que se lhe possa fazer. Mas
sem dúvida essa proposta de alteração da denominação do aeroporto demonstra
como a fama é volátil.
A
fama nada mais é que a repetição do nome. Mas o que é válido, o que é
relevante, para uma geração, não o será necessariamente para a próxima. Isto se
dá em todos os campos da atividade humana, e os escritores sabemos bem disso.
Para que a fama permaneça, devem a personagem e a obra resistir à releitura que
lhes fazem uma geração após outra. Para tanto, é necessário que a figura e a
obra sejam relembradas, ou não estejam esquecidas: senão em evidência, ao menos
dela cuidem os ciosos pela memória ou os que influem na formação da opinião
pública. A reflexão, então, é: será justo que pouco se saiba sobre um
proeminente homem público do Espírito Santo como foi Eurico Sales? Convenhamos,
nem tão pródigo assim é o Espírito Santo em matéria de Ministros de Estado...
Fato
é que, já há algum tempo, o padrão “homem público” pouco diz ao público, a não
ser em termos financeiros (visando à transparência, o salário consta logo após
a menção do cargo em matérias de jornal). Importam ao público as realizações em
outros campos, o que é normal que aconteça, ao sabor das flutuações da opinião
pública. Em defesa de Eurico Sales, lembremos ter sido secretário de estado
exatamente da Educação e Cultura, o que pode tornar mais palatável o seu perfil
aos dias de hoje.
Talvez
se possa resolver a questão dando o nome de um ao terminal de passageiros, do
outro ao terminal de cargas. Não sei, trata-se de negócio público, dos afazeres
de homens públicos. Para não destoar dos tempos que correm deve-se proceder à
crítica sem necessariamente conhecer o assunto, já que a liberdade de expressão
é sagrada e as redes sociais aí estão para isso mesmo.
Uma
segunda reflexão diz respeito à interessante origem do aeroporto: como dito
acima, deve-se a escolha do local a engenheiro francês, o projeto a engenheiros
norte-americanos. Ambas as nações envolvidas nos primórdios da atividade aérea,
não tivesse o voo tido por pioneiro de Alberto Santos Dumont acontecido na
capital francesa, desafiando a fama do voo que na América fizeram os
norte-americanos irmãos Wright.
Trata-se
de discussão para muito mais de metro. Da qual, frequentador de redes sociais
que sou, prefiro apegar-me a faceta secundária, que é a prática de qualificar
Santos Dumont como “franco-brasileiro”. Creio que se assim fosse, a máquina de
propaganda francesa já teria entrado na disputa pela hegemonia dos primórdios
da aviação. Claro, fosse eu especialista, saberia que, na França, consta que
Clement Ader já havia voado num mais-pesado-que-o-ar, em segredo militar, desde
1890... mais lenha na fogueira.
Recorda-me
uma vez ter passado a noite no Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro,
esperando a chegada do meu filho Miguel, que se daria por volta das cinco horas
da manhã. O primeiro voo de Vitória chegaria lá depois do horário do
desembarque e o miúdo teria de ser entregue a alguém na chegada. Um
aborrecimento no dia, mas que, hoje vejo, me credencia como especialista para
falar de aeroportos. Ao menos em redes sociais, para onde, com a permissão do
destinatário original, pretendo remeter esta breve reflexão.
(publicado no Escritos de Vitória, n.º 34: Aeroportos)