Este
é o não sei qual dia de quarentena para os que não precisam de sair de casa diariamente para trabalhar. Aprendi que perdemos a conta dos dias quando não temos compromissos
na agenda. Home office significa “faça você mesmo sua agenda, desde que o
trabalho renda”. Daí que, aproveitando o feriado e o silêncio que nos últimos dias
tomou conta do apartamento vazio, aproveito para exercitar um pouco a escrita.
Não que não a exercite diariamente: de minha parte, despachos e sentenças não rarearam
nestes dias, pelo contrário. Atesta-o o painel de controle da minha Unidade
Judiciária, visível a todos no ambiente da intranet. Mas a escrita não profissional
sim, esta tem ficado prejudicada pela nova rotina, que teima em não assentar
de jeito.
Sentado
ao notebook e pondo-me a refletir, vou percebendo que os memes sobre o trajeto
que o confinado faz dentro da própria residência são, sim, pertinentes. É que acabamos
criando interesse por recantos antes pouco relevantes: cadeiras
estrategicamente colocadas, uma poltrona mais confortável, de jeito a melhor nos
receber para a leitura, uma pia pouco usada e que agora, pela obrigação de
higienização, passamos a frequentar com mais frequência.
Daí
porque uma espreguiçadeira com jeitão de peça decorativa adquire relevância até
então insuspeitada na nossa vida. Foi o que aconteceu com a da minha varanda
nesse feriado pascal. Daqui, espreguiçado nela, percebo o silêncio da rua, sempre
movimentada – rota de passagem de grande quantidade de veículos e pedestres.
Daqui miro uma nesga do mar da Praia da Costa, de cujas condições me inteiro ligeiro
no dia-a-dia, e cujas mudanças de tonalidade venho acompanhando amiúde
ultimamente. Imagino o mar da tonalidade que o pinta José de Alencar, os verdes
mares bravios da terra natal de Iracema; ou os mistérios que lhe empresta
Joseph Conrad, as plagas desconhecidas que nos põe a explorar no bojo da sua prosa
vigorosa.
Se
desvio os olhos do horizonte, espreguiçado aqui, acompanho na vidraça o
esvoaçar ameaçador de uns maribondos que botaram ninho em alguma parte. Da sua presença
esvoaçante-constante aqui em casa venho me dando conta nesses dias de
observação forçada. O que me lembra o livro Canto de muro, de Câmara Cascudo,
o seu olhar ressignificante para fatos e personagens tidos por ínfimos. Um
romance inteiro em que atuam insetos e outros bichos, tendo por cenário um
jardim. Livro, aliás, que me foi indicado por Luiz Guilherme Santos Neves, ele
mesmo na sua escrita um hábil alinhavador de detalhes.
Vou
espreitando e o silêncio vai me inspirando outras considerações. Não se pode falar
em solidão, nas circunstâncias: vivendo em apartamento vive-se pegado à vizinhança,
e a vizinhança se encontra em casa. Basta um bater de concha numa panela ou,
melhor ainda, um músico que nos presenteie com acordes da sacada, para nos darmos conta de
que estamos todos aí mesmo. Prontos para chegar à janela, manifestando nosso desejo
de vida. Sim, a vida dita normal, que nos foi arrancada, nós a espreitamos de
detrás das vidraças. Ou de detrás de simples alicerces, às vezes nus, porque o
recolhimento é – ou deveria ser – para todos, sem distinção de endereço.
Mas
não quero me meter pelo caminho das reflexões sociais, comportamentais ou mesmo
futuristas; delas certos analistas entediados vêm enchendo as redes. Meu olhar
(e continuo olhando da minha espreguiçadeira) está voltado para as coisas
banais, para o até então irrisório, e que nestes dias anormais se tornou perceptível
para quem atenta. A ponto de ganhar outra dimensão.
Banal
parecia até hoje o raio de sol filtrado de entre nuvens carregadas, na ânsia de
substituir os ultraleves que colorem o céu da Praia da Costa nos dias limpos. E
o fato de que esse mesmo raio de sol toda tarde percorre o mesmo caminho, bordando
em reflexos o piso da varanda. Em compensação, pela ausência de ruído ouvem-se
pássaros, a qualquer momento que passareiem por aí afora. Ou atenta-se para as
orquídeas ainda ontem viçosas e que já fenecem no cumprimento do seu ciclo
vital. Banal é o fato de as condições do mar se alterarem regularmente, o litorâneo
que é bom observador sabe disso. Mas quando a ressaca vem pouco nos detemos
para ouvir as ondas querendo se precipitar além dos limites em que confinamos
as praias.
Atingindo
esse nível de abstração nos vamos dando conta de que um mundo de coisas simples
acontece todos os dias, apesar de nós, ou da nossa indiferença: um ninho de maribondo
não é urdido da noite para o dia, carece de trabalho de parte deles. O mar não sobe
em ressaca de uma hora para outra, condições meteorológicas anunciam o fato. As
coisas simplesmente são, e continuarão a ser quando a quarentena acabar.
De
minha parte, de tudo quanto os analistas nos lançam à inteligência, que
eu não perca a capacidade de reparar na simplicidade das engrenagens que movimentam
as coisas. Elas permanecerão em movimento. Assim como (peço desculpas por
banalizar), as engrenagens da minha cafeteira chegada há semanas, cujo funcionamento
aprendi graças ao tempo sobrado da desnecessidade de me deslocar para o trabalho.
Disso tudo concluo que para aquietar a alma não é preciso mais que uma
espreguiçadeira, um conto de Conrad e uma medida de espresso tirada por nós
mesmos, desde a moagem e mistura do pó.
Detenho-me
neste ponto propondo um café a isto, aos irrisórios da vida, despercebidos por
nós no dia-a-dia e que tão de súbito passaram a fazer parte dele.