13 de abril de 2020

O despercebido dos dias - reflexões de quarentena


Este é o não sei qual dia de quarentena para os que não precisam de sair de casa diariamente para trabalhar. Aprendi que perdemos a conta dos dias quando não temos compromissos na agenda. Home office significa “faça você mesmo sua agenda, desde que o trabalho renda”. Daí que, aproveitando o feriado e o silêncio que nos últimos dias tomou conta do apartamento vazio, aproveito para exercitar um pouco a escrita. Não que não a exercite diariamente: de minha parte, despachos e sentenças não rarearam nestes dias, pelo contrário. Atesta-o o painel de controle da minha Unidade Judiciária, visível a todos no ambiente da intranet. Mas a escrita não profissional sim, esta tem ficado prejudicada pela nova rotina, que teima em não assentar de jeito.

Sentado ao notebook e pondo-me a refletir, vou percebendo que os memes sobre o trajeto que o confinado faz dentro da própria residência são, sim, pertinentes. É que acabamos criando interesse por recantos antes pouco relevantes: cadeiras estrategicamente colocadas, uma poltrona mais confortável, de jeito a melhor nos receber para a leitura, uma pia pouco usada e que agora, pela obrigação de higienização, passamos a frequentar com mais frequência.

Daí porque uma espreguiçadeira com jeitão de peça decorativa adquire relevância até então insuspeitada na nossa vida. Foi o que aconteceu com a da minha varanda nesse feriado pascal. Daqui, espreguiçado nela, percebo o silêncio da rua, sempre movimentada – rota de passagem de grande quantidade de veículos e pedestres. Daqui miro uma nesga do mar da Praia da Costa, de cujas condições me inteiro ligeiro no dia-a-dia, e cujas mudanças de tonalidade venho acompanhando amiúde ultimamente. Imagino o mar da tonalidade que o pinta José de Alencar, os verdes mares bravios da terra natal de Iracema; ou os mistérios que lhe empresta Joseph Conrad, as plagas desconhecidas que nos põe a explorar no bojo da sua prosa vigorosa.

Se desvio os olhos do horizonte, espreguiçado aqui, acompanho na vidraça o esvoaçar ameaçador de uns maribondos que botaram ninho em alguma parte. Da sua presença esvoaçante-constante aqui em casa venho me dando conta nesses dias de observação forçada. O que me lembra o livro Canto de muro, de Câmara Cascudo, o seu olhar ressignificante para fatos e personagens tidos por ínfimos. Um romance inteiro em que atuam insetos e outros bichos, tendo por cenário um jardim. Livro, aliás, que me foi indicado por Luiz Guilherme Santos Neves, ele mesmo na sua escrita um hábil alinhavador de detalhes.

Vou espreitando e o silêncio vai me inspirando outras considerações. Não se pode falar em solidão, nas circunstâncias: vivendo em apartamento vive-se pegado à vizinhança, e a vizinhança se encontra em casa. Basta um bater de concha numa panela ou, melhor ainda, um músico que nos presenteie com acordes da sacada, para nos darmos conta de que estamos todos aí mesmo. Prontos para chegar à janela, manifestando nosso desejo de vida. Sim, a vida dita normal, que nos foi arrancada, nós a espreitamos de detrás das vidraças. Ou de detrás de simples alicerces, às vezes nus, porque o recolhimento é – ou deveria ser – para todos, sem distinção de endereço.

Mas não quero me meter pelo caminho das reflexões sociais, comportamentais ou mesmo futuristas; delas certos analistas entediados vêm enchendo as redes. Meu olhar (e continuo olhando da minha espreguiçadeira) está voltado para as coisas banais, para o até então irrisório, e que nestes dias anormais se tornou perceptível para quem atenta. A ponto de ganhar outra dimensão.

Banal parecia até hoje o raio de sol filtrado de entre nuvens carregadas, na ânsia de substituir os ultraleves que colorem o céu da Praia da Costa nos dias limpos. E o fato de que esse mesmo raio de sol toda tarde percorre o mesmo caminho, bordando em reflexos o piso da varanda. Em compensação, pela ausência de ruído ouvem-se pássaros, a qualquer momento que passareiem por aí afora. Ou atenta-se para as orquídeas ainda ontem viçosas e que já fenecem no cumprimento do seu ciclo vital. Banal é o fato de as condições do mar se alterarem regularmente, o litorâneo que é bom observador sabe disso. Mas quando a ressaca vem pouco nos detemos para ouvir as ondas querendo se precipitar além dos limites em que confinamos as praias.

Atingindo esse nível de abstração nos vamos dando conta de que um mundo de coisas simples acontece todos os dias, apesar de nós, ou da nossa indiferença: um ninho de maribondo não é urdido da noite para o dia, carece de trabalho de parte deles. O mar não sobe em ressaca de uma hora para outra, condições meteorológicas anunciam o fato. As coisas simplesmente são, e continuarão a ser quando a quarentena acabar.

De minha parte, de tudo quanto os analistas nos lançam à inteligência, que eu não perca a capacidade de reparar na simplicidade das engrenagens que movimentam as coisas. Elas permanecerão em movimento. Assim como (peço desculpas por banalizar), as engrenagens da minha cafeteira chegada há semanas, cujo funcionamento aprendi graças ao tempo sobrado da desnecessidade de me deslocar para o trabalho. Disso tudo concluo que para aquietar a alma não é preciso mais que uma espreguiçadeira, um conto de Conrad e uma medida de espresso tirada por nós mesmos, desde a moagem e mistura do pó.

Detenho-me neste ponto propondo um café a isto, aos irrisórios da vida, despercebidos por nós no dia-a-dia e que tão de súbito passaram a fazer parte dele.