15 de outubro de 2019

Primeiro dia de aula



Minha vida pública a comecei lecionando. Lecionei Instituições de Direito Público na então Faculdade de Ciências Econômicas, de Colatina, no tempo em que era funcionário do Tribunal de Justiça do Espírito Santo. Dita faculdade viria a fundir-se à Faculdade de Filosofia de Colatina, a mais antiga instituição de ensino superior do interior do Espírito Santo, para formar as Faculdades Integradas Castelo Branco, centro de ensino de reconhecida importância no norte do Estado. De minha parte atuei ali quatro anos letivos completos, e neste curto período tive o prazer de paraninfar uma turma. Deixei o magistério em 1994, por conta da aprovação no concurso para a magistratura de carreira.
O início se deu assim: vinha eu substituindo na matéria de Legislação do Trabalho por ocasião de impedimentos do professor titular, até que “herdei” a cadeira de Instituições de Direito Público deixada pelo professor Manoel Alves Rabelo, que ia às vésperas de ser promovido a desembargador do nosso Tribunal de Justiça.
O fato é que, ao assumir a cadeira, tinha pouco conhecimento de didática superior, que estudei por minha conta. Com a ajuda de minha mãe, Mestra em Educação, montei um planejamento de aulas e do desenrolar do próprio curso, cuja grade curricular me fora passada. Assim, por ocasião das primeiras reuniões de professores, não estaria tão “cru”, como de fato.
Era uma experiência nova que aceitei sem pestanejar, com a coragem inconsequente dos vinte e quatro anos: é que sendo meu pai, à época, diretor da Faculdade, este fato me parecia uma faca de dois gumes, tanto podendo me granjear simpatia como antipatia de parte dos alunos. Mas eu contava com um trunfo: paralelamente às atividades profissionais, era na época guitarrista da banda Urublues, já bastante conhecida por conta das aparições numa mídia em sua maioria simpática à nossa presença no cenário cultural capixaba. O que me garantiu, à partida, uma até certo ponto surpreendente boa vontade por parte do corpo discente. Havia, ainda, um outro fator, para que, a princípio, não atentei: era eu o professor mais jovem das turmas de Administração e Ciências Contábeis.
Este fato acabaria me trazendo uma maior facilidade na comunicação com as turmas (quatro turmas dos segundos anos), compostas em sua maioria por alunos na faixa dos dezenove, vinte anos de idade. A proximidade de ideias era maior entre nós que entre eles e os demais professores, todos profissionais consagrados e calejados nas respectivas ocupações. Tanto que, a certa altura, servi como “intermediário” entre as turmas e a direção, a da Faculdade e a da entidade mantenedora, a Fundação Educacional Presidente Castelo Branco. Tudo isso me veio a cogitação aos poucos, mas o impacto que causaria nos alunos a presença de um professor tão próximo a eles em idade me foi escancarada já no primeiro contato com uma turma.
Era a primeira aula na primeira turma que me fora confiada. Tinha preparado uma explanação sobre o Direito Público, do que se tratava e como pretendia transmitir o conteúdo. Falei-lhes da minha didática, dos recursos didáticos que empregaríamos, dos critérios de avaliação que adotaria, copiei no quadro a ementa da matéria e a bibliografia indicada e uma vez mais olhei para a turma. A sala cheia, o calor das noites de verão em Colatina abalado levemente pelos ventiladores de teto. A turma impassível, os olhos pregados em mim. Nada quebrava o gelo, apesar do calor. Na primeira fila as meninas, que deviam ser as estudiosas da sala, ao fundo os rapazes, também eles em silêncio e numa estranha atenção, talvez aguardando no que iria dar aquilo tudo. Mais tarde eu aprenderia a não me meter com essas meninas da primeira fila, que trocavam cochichos e bilhetinhos entre elas em meio a risinhos. Falei sobre isso com um professor mais velho, de como esses bilhetinhos passando de mão em mão às vezes me incomodavam, tirando a concentração, e dele aprendi: “melhor nem ficar sabendo o que elas escrevem nesses bilhetinhos. Geralmente é sobre professores; pode até não ser nada, mas duvide”. Conselho este que sempre segui.
Mas nesta ocasião não houve cochichos, não houve bilhetinhos passados de mão em mão. A classe impassível, nenhuma interrupção. Olho para o relógio e estávamos no final do tempo, tinha falado por quase duas horas. Finalmente, dando a explanação por encerrada, perguntei se estava tudo entendido. Silêncio. “Alguém tem alguma pergunta?”, insisti. Em meio ao silêncio, uma moça na primeira fila ergue lentamente a mão. Encorajei-a: “Pois não, minha filha, qual é a dúvida”? Ao que ela sapecou: “O senhor é casado”? 
A gritaria que se seguiu nos tornou logo bons amigos, ao desmontar (eu diria, espancar) aquele gelo inicial de parte a parte.
Era o início do que se augurava uma promissora carreira docente...      

P.S. a foto, da época, é da querida amiga e ex-aluna Nete Schimith. E a propósito, não foi ela que fez a pergunta...