19 de março de 2011

Rever Lisboa, no verão


Lisboa, assim como Roma, mas por muito menos tempo que esta, já foi o centro do mundo. Na época da exploração e levantamento de novas rotas comerciais que evitassem o concurso de muçulmanos e seus parceiros comerciais genoveses, por Lisboa circulavam pessoas, bens e produtos de todos os cantos do mundo conhecido – cujas fronteiras, aliás, a cada dia se alargavam mais, graças às naus portuguesas e espanholas que cortavam o Mar Oceano em todas as direções.

A cidade de Ulisses, de onde, consta, foi levado o campeão Aquiles por aquele comandante ao teatro de operações na famosa guerra de aqueus contra troianos, a verdade é que Lisboa, em localização privilegiada, é entreposto comercial antiqüíssimo. Toda obra de engenharia que se empreenda às margens do Tejo é arriscado se encontrar algum vestígio romano ou grego ou fenício ou árabe ou lusitano. Consta haver ruínas de uma terma romana por debaixo do calçamento da Rua Augusta.

A majestosa Rua Augusta, ladeada pelas ruas do Ouro e da Prata – por onde escoavam na época do esplendor comercial as mercadorias desembarcadas no porto junto ao atual Terreiro do Paço (praça que, sem dúvida, só impressiona menos que a de São Marcos, em Veneza e que foi o local de concentração das tropas que desencadearam a Revolução dos Cravos, repondo Portugal de volta no seio do mundo democrático). E que termina no Rossio, praça erguida sobre antiga região de alagados, o elegante passeio da cidade oitocentista, mas também local de flagelo de cristãos-novos e sede do Santo Ofício nos idos do século XVI.
Dom Afonso Henriques

Lisboa, a cidade que guarda as relíquias de São Vicente, seu padroeiro, trazidas do Algarve numa nau transportada por corvos. Reconquistada aos árabes no desenrolar de uma das primeiras Cruzadas da cristandade e cujo castelo, tomado por Afonso Henriques, conserva-se, eterno, sobranceiro à antiga vila, dominando-a até ao Tejo, ao impressionante Tejo, o motivo principal da urbe. Cidade natal de Santo Antônio, que acabou por passar à devoção popular como “de Pádua”, apenas por se tratar da cidade onde posteriormente viveu; da proteção de Nossa Senhora da Penha de França, senhora dos navegantes; cidade ocidental das sete colinas, e assim bem como Roma.

Melhor que procurar as atrações para turistas e às compras em regime de “tax free” é tentar penetrar a vida da cidade, o cotidiano das pessoas. E rever a cidade onde se morou, mas com que não se perde o vínculo, é rever-lhe os cantos que nos dizem qualquer coisa.

Como uma praça, em plena rua Pascoal de Melo, onde há “baloiços” para crianças, onde se reúnem nas tardes quentes mães e pais e babás para aguardar as brincadeiras dos “miúdos”. Senhores “reformados” num dos extremos, jogando cartas. Rapazes num outro extremo, tentando controlar uma bola. Vez por outra, uma jovem mãe ralhando com o filho que não se quer ir embora. A maior parte das vezes, jovem e bela mãe.

As portuguesas são tipos físicos variados, resultado da grande miscigenação do povo ao longo dos séculos: no norte as há loiras, clarinhas, e quanto mais se desce em direção ao sul mais se percebem os traços árabes, morenas e rijas. Se para mim as portuguesas mais bonitas estão em Braga, em Lisboa, cidade cosmopolita, se encontram mulheres de todos os tipos e matizes e belezas as mais variadas.

Bêbados, que os há em todos os lugares. Neste lugar, neste dia em especial, um simpático embriagado metia-se no parlamentar de um grupo de senhoras, que se poderiam chamar de “terceira idade”, e que falavam determinadas do general Jonas Savimbi, comandante da Unita que por anos passou Angola a ferro e fogo e foi morto no início de 2002 em confronto com o exército regular do país. Ouvindo disfarçadamente que estava, fiquei sabendo que a família do general está muito bem após sua morte, por conta dos bens que deixou. Concluíram as palestrantes se tratar de um homem mau.

Que interessante grupo de senhoras portuguesas, interessante sobretudo porque as senhoras se vestiam das cores mais vivas, em seus vestidos leves, próprios de verão. Não mais aquelas roupas negras e pesadas, das viúvas e mães sofridas das aldeias, estilo que por muito tempo “ditou moda” mesmo nas cidades. E falavam em recordações da terra de cada uma delas, que os portugueses das cidades só começam a ser numerosos a partir das gerações mais modernas. Todos são vindos de uma “terra”, uma aldeia ou herdade nos interiores profundos do país.

Mas se as roupas das senhoras já não são as mesmas, os costumes ainda se mantêm, em maior ou menor grau – e felizmente é assim em termos gastronômicos. O bom queijo de Azeitão, o bom vinho do Alentejo...

Lisboa no verão é muito, muito quente. Felizmente, quase a metade da população sai da cidade, em direção à “terra” ou em direção ao Algarve, onde o português disputa espaços aos alemães e ingleses. Atualmente a duas horas e tal, apenas, da Capital do país, o Algarve é o destino turístico mais procurado pelo lisboeta de bom poder aquisitivo. Este de bom grado cede os encantos de sua cidade aos turistas de todo o mundo, a lhe encherem as ruas e os trens do metro dos mais variados idiomas, de trás das inevitáveis mochilas de andarilhos, que levam os também inevitáveis mapa local e garrafa d’água. Os lisboetas que ficam envolvem-se, ao meio da temporada de verão - apaixonadamente como o sabem fazer os portugueses - na polêmica anual dos touros de morte na vila de Barrancos (desferir ou não na besta estocada fatal, em plena arena?) e na armação de Sporting e Benfica para a próxima temporada de futebol, a se iniciar ao fim da estação.

Enfim, uma concessão ao turístico: suba, amigo, devagar, pela Rua do Carmo, do Rossio até lá acima, ao Chiado. Sente-se ao café A Brasileira (se o conseguir) e tendo ao lado a companhia em bronze de Fernando Pessoa apenas observe as cenas da cidade, no verão. É confortador saber que a cidade de Eça e de Garret, de Salazar e de Amália, do Madredeus e um pouco minha também continua lá, e que mais adiante o castelo de São Jorge continuará - mesmo na minha ausência e apesar dela - a dominar a velha Sé e o casario-sobre-o-Tejo até a volta, desta vez, no inverno.

Praia da Costa, julho de 2002