Nesta época opiniões contrárias ao carnaval, veiculadas nos meios de comunicação, são muito comuns. E pelos mais diversos motivos: religiosos, morais, econômicos e alguns outros. Isto porque os alegados excessos, a “pornografia”, o ócio por quase uma semana, seriam prejudiciais, a juízo de alguns, à economia e aos bons costumes.
Na verdade o costume de festejar o entrudo, a terça-feira gorda de carnaval, é resultado do acúmulo de tradições ancestrais e foi trazido para o Brasil pelo colonizador português. Só por isso, por este pecado original, deveria ser banido sem dó dos nossos costumes, na busca da pureza africana primordial que preconizam os nossos intelectuais nesta quadra de nossa História. Mas a contrário do que poderiam vaticinar os estudiosos das coisas da mãe África, o fato é que o interesse dos descendentes de africanos, escravos ou forros, também era despertado para os festejos porque – não fora o clima que contagiava a população - as Sociedades Carnavalescas, uma das espécies de agremiações precursoras da festa atual no Rio de Janeiro, faziam durante os préstitos campanhas humanitárias para arrecadar fundos para feridos de guerra (a do Paraguai) e para providenciar a alforria de escravos.
Inúmeros são os registros sobre essas iniciativas nas primeiras agremiações surgidas na Corte: o Sumidades Carnavalescas, a mais antiga, de 1855, que contava entre os seus sócios com José de Alencar; a Tenentes do Diabo, que contava entre os seus sócios com Quintino Bocaiúva e José do Patrocínio; e mais os Fenianos e os Democráticos. Ou seja, grandes lutadores da causa da Abolição brincavam o carnaval e ainda se serviam dele para divulgar o movimento. Aliás, e a propósito disto, reproduzo versos distribuídos pela sociedade Fenianos no carnaval de 1889, apud COSTA, Haroldo. 100 Anos de Carnaval no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Irmãos Vitale, 2001, p. 22:
"Venceu-se finalmente a tremenda campanhaMaio, o divino mês, deu-nos a abolição!A luz de um novo sol detrai a nódoa estranhaQue há três séculos manchava o nosso pavilhão!
A Pátria ressurgiu de um morno alentoNa vitória final que honrou a HumanidadeSomos um povo livre! Olhai! Neste momentoCobre esta grande terra o Sol da Liberdade!"
Essa sociedade dos Fenianos tinha esse nome por causa dos soldados fenianos, irlandeses católicos que de 1865 a 1869 lutaram para se libertar do jugo inglês, como esclarece o pesquisador na mesma sede. Conjunção de registros, aliás, que o leva a exclamar a determinada altura: “curiosa cidade a nossa [o Rio de Janeiro] que transformou o carnaval num bastião da luta pela liberdade e os direitos humanos.” É fato.
Resgatada essa faceta de luta/resistência dos festejos carnavalescos que originaram o formato atual da folia, justificado, assim, o tema, aos olhos rigorosos da academia, tenho a impressão – pessoal - de que os festejos de carnaval são de fato mais apreciados onde mais acentuada é a influência portuguesa: não considerando aqui as regiões do interior de Minas Gerais, falemos no Rio de Janeiro, que abrigou a Corte; Salvador, a primeira sede administrativa da Colônia; Olinda/Recife, onde se manteve uma nobreza agrária bastante ciosa de seus usos e costumes maternos. Todas as três regiões, aliás, com linguagem própria para embalar a festa: o samba, a chamada axé music e o frevo, respectivamente.
Procurando robustecer esta minha opinião, acrescento que à brincadeira do carnaval incorpora-se também a do Zé-Pereira (o sábado de carnaval é o sábado do Zé Pereira). Para esta difundiu-se, entre os estudiosos do carnaval no Brasil, uma origem histórica bem definida: atribui-se ao sapateiro lusitano José Nogueira de Azevedo Paredes a introdução do folguedo em terras brasileiras, mais especificamente no Rio de Janeiro. Razão assiste ao citado Haroldo Costa: trata-se, o Zé Pereira, de tradição antiqüíssima em Portugal, de romarias e procissões da região do Minho. Nosso heróico José Nogueira, saudoso das tradições da terra, ao sair à rua no carnaval de 1846, acompanhado de patrícios em zabumbas e tambores, apenas cuidou de fazer, aqui, o que se costumava fazer por lá.
Que as práticas relacionadas à brincadeira do entrudo eram meio selvagens depreende-se, por exemplo, de sua proibição expressa por meio de edital do chefe de polícia da Corte em 1857. Talvez por isso mesmo à brincadeira – e há registros do gosto que por ela tiveram os dois Imperadores do Brasil – quiseram os intelectuais (opa, elites) dar uma feição mais refinada, introduzindo na festa as práticas das mascaradas italianas. O mesmo José de Alencar, ensaísta, romancista, deputado que chegou à Pasta da Justiça, publicava, em 14 de janeiro de 1855, uma crônica na Gazeta Mercantil, adiantando a programação dos festejos daquele ano e alertando para que “na tarde de segunda-feira, em vez do passeio pelas ruas da cidade, os máscaras se reunirão no Passeio Público, e aí passarão a tarde como se passa uma tarde de carnaval na Itália, distribuindo flores, confete e intrigando conhecidos e amigos”.
Hoje os festejos de rua estão limitados a blocos, no Rio de Janeiro como aqui em Vitória. As Escolas de Samba parecem monopolizar os festejos, ao menos em termos de visibilidade, em ambas as cidades. A tradição de desfile dos blocos e agremiações tem um ingrediente original em Salvador, que a diferencia dos demais lugares: o trio elétrico. Incorporado, aliás, ao auto-intitulado “maior bloco da terra”, o Galo da Madrugada, do Recife. Em ambos os casos, ou em ambas as sedes carnavalescas, pela necessidade de amplificação do som que conduz os foliões.
É interessante como em Olinda/Recife o carnaval é uma preocupação séria. Meio como que nas Escolas de Samba, onde se reverencia a “velha guarda” da comunidade, fundar lá um grupo carnavalesco qualquer rende reverência e homenagens ao fundador (a diferença é que as primeiras, as Escolas de Samba do Rio de Janeiro, são atualmente uma espécie de ONG, organizadas e funcionando de forma empresarial. Já os maracatus - de baque solto ou baque virado - elefantes, cordões, troças carnavalescas, ursos, bois, caboclos, blocos, as múltiplas formas de se brincar a folia em Pernambuco, tem organização muito menos ambiciosa). Cito, como exemplo, o caso famoso do garçon Isaías Pereira da Silva, o Batata, imortalizado no bloco que fundou em 1962 e que continua a desfilar na quarta-feira de cinzas pelas ruas e ladeiras de Olinda, anos depois de sua morte. Aliás, inúmeros são os blocos que sobem e descem as ladeiras de Olinda nos dias de carnaval. A impressão que colho de tantos anos de observação in loco é que, nessa época, mais de duas pessoas em Olinda seguindo juntas na mesma direção vira bloco.
Brincar o carnaval é resistir (não contra a Igreja Católica, que os excessos são purgados na Quaresma). Já exemplifico, para me fazer entender: mais ou menos na mesma linha do que fizera o chefe de polícia da Corte cinqüenta anos antes, o prefeito Pereira Passos deflagrou em 1904, nas escolas do Rio de Janeiro, uma campanha anti-entrudo. Não adiantou, como vemos hoje. Maracatus, rurais e urbanos (de baque solto ou virado, respectivamente) são cada vez mais estudados como formas de luta/resistência – tão ao gosto dos pesquisadores atuais - dos trabalhadores nos canaviais, seja em seus habitat de origem, seja deslocados para as periferias das grandes cidades de Pernambuco. As Escolas de Samba do Rio de Janeiro divulgam para o mundo todo valores e elementos da cultura afro-brasileira. As de Vitória, saudadas pela Secretaria de Cultura como a maior festa popular do Estado, divulgam à população fatos históricos e tradições locais, desempenhando um serviço que pode, sim, ser considerado como de utilidade pública contra o pouco caso para com a nossa História. Tudo isso se faz brincando, e cuidando de manter viva uma tradição inquestionável do povo brasileiro. Apesar das ideologias e dos revisionismos históricos.
Se o que se pode recriminar individualmente na festa são os excessos, a falta de medida do que se deixa levar por falsas impressões, o simples fato de brincar o carnaval não é pecado nem atenta contra os bons costumes. Não é pouco apropriado nem depõe contra ninguém. Hoje como ontem. Ou as reputações de José de Alencar, Quintino Bocaiúva, José do Patrocínio e tantos outros saíram alguma vez arranhadas dos préstitos e desfiles do seu tempo?