O professor Altair Malacarne, que foi meu professor de português, relembra numa crônica os seus tempos de funcionário do Banco do Brasil pelo interior do Espírito Santo, na época da acomodação de divisas entre os estados do Espírito Santo e Minas Gerais. E faz menção a meu pai, seu companheiro de viagem.
Publico a crônica aqui, com a gentil autorização do autor:
"Naquele dia, ao final de mais um
expediente bancário, naquela Colatina sempre senegalesca de 1965, o subgerente
me chamou, foi reto e peremptório: ‘amanhã de tarde você mais outro funcionário
vai fazer uma viagem para levar NUMERÁRIO na agência de Resplendor; não fala
nada com ninguém’. Fiquei com vergonha de perguntar o que era NUMERÁRIO;
afinal, eu dava aula de Português, mesmo enfrentando a má vontade do BB, que
desestimulava o magistério.
No dia seguinte de tarde, me
chamaram na tesouraria; nunca tinha entrado naquela casamata. Tinha u’a mala de
couro pesada no chão. Daí a pouco chegou o Dr. Gélice Neves, dizendo que era
meu companheiro; me disseram que não precisava pegar a mala: estava chegando um
táxi com carregador para transportar o volume até a estação da Vale; nos
entregaram algum dinheiro para a viagem e 2 revólveres carregados (o meu era um
‘COLT’ cavalinho); sentindo-me importante e seguro, rumamos para pegar o trem
da noite que subia o vale do rio Doce.
Colocada a mala no bagageiro do ‘noturno’, tomamos assento e
esperamos a partida do coletivo; foi quando perguntei ao Dr. Gélice:
-Você sabe o que tem dentro dessa mala?
- Numerário, dinheiro.
-Você sabe o que tem dentro dessa mala?
- Numerário, dinheiro.
Fiquei cálido e mudo; abri um caderno de anotações das aulas do prof. José Leão e cuidei de estudar atentamente os assuntos marcados pra prova de fim de mês na FAFIC; o Gélice abriu uma pasta e passou a ler os processos do serviço jurídico regional do BB que tinha acabado de assumir. Reclamou: ‘O Paulo Herkenhof largou tudo enrolado; é tem casos ‘cabeludos’, em terrenos que foram do Espírito Santo e hoje são de Minas Gerais; e tem ate financiamentos políticos, sem a mínima garantia, com devedores em lugar incerto e não-sabido. Vou ter de encarar tudo.’
Chegamos era umas 9 da noite;
arrumei um táxi que nos levou, e levou também a famigerada mala em busca da
agência; o subgerente e o gerente Átila Sarlo Maia estavam à espera; entregamos
o butim e o aviso de lançamento contábil. Procuramos logo um lugar para dormir
e não foi difícil achar; só que as camas eram encimadas por um cortinado
enorme: proteção contra o ataque de borrachudos, que já estavam voando em torno
de nossas cabeças, zunindo como aviões de caça em plena guerra.
Acordei no dia seguinte na maior
paz; o tênue véu foi um manto milagroso. Fui logo pra estação do trem e peguei
o rápido que vinha de Governador Valadares; o Gélice ficou; a apostilha foi
minha colega de retorno; aprendi bem as lições de Mestre Leão e o significado
de mais uma palavra: NUMERÁRIO
am/19.07.2012"