12 de setembro de 2019

A ficção em cada processo



O bom escritor de ficção não passa de um colecionador de tipos, um anotador de idiossincrasias. Como a Terêncio, nada do que é humano lhe pode ser estranho. A vida humana, os tempos, os dias, os humores e o espírito do seu próprio tempo, tudo isso é matéria-prima com que constrói o edifício ficcional.

Pense-se, então, no cotidiano ofício de julgar: é o juiz, da mesma forma, um escritor, porquanto se trata de um lavrador de despachos e sentenças. Recorda-me certo colega, velho amigo, hoje atuante no segundo grau da Justiça Federal, que, convivendo em roda de literatos, dizia orgulhoso que todo ano publicava ao menos um livro – o livro de sentenças mandado encadernar pela secretaria da sua Unidade Judiciária.

Mas e quanto ao julgador que, paralelamente ao seu ofício, é escritor de ficção (que, sim, eles existem...)? 

A miséria humana em suas variadas formas se observa de detrás da mesa da sala de audiências. É certo que nem todos nos damos conta – afinal, há números a relatoriar, metas a cumprir, satisfações, enfim, a prestar. São esses, também, os ossos do nosso ofício. No entanto, confesso que às vezes me pego mais interessado numa história em investigação que o tido por suficiente pela boa técnica de interrogatório.  É que a sala de audiências é local riquíssimo se pomos olhos de ver (e ouvidos de ouvir), e nos deixamos livrar das “amarras” da lide. Não, não se perca de vista a razão do ato, a solenidade da forma, o ponto nodal da questão que haverá de ser decidida. Mas particularmente procuro não me deixar alhear de eventual colorido de expressão, de um possível “a mais” de detalhes, proporcionados por testemunha disposta a se mostrar colaborativa. É, como disse, matéria prima capaz de ser transformada em argamassa do edifício ficcional.

Uma vez, jovem juiz na Vara de Família, prestes a abrir audiência de separação do casal à minha frente, perguntei a ambos se já não havia possibilidade de reconciliação. A virago voltou o olhar ao seu contendor e então caiu em prantos, para desconcerto dele e dos advogados. De detrás da mesa de audiências fitava aquela mulher, e me peguei a indagar com meus botões qual seria a história dos dois, que um dia se encontraram, se julgaram almas gêmeas, se falaram, se envolveram, se amaram. Comovi-me, de fato. A audiência foi suspensa. Encerrava ali a pauta; dirigi-me ao gabinete.

No corredor, enquanto a virago se afastava sozinha (seu advogado exigido por outros compromissos), impaciente mulher mais jovem aguardava o varão. Posta a par do resultado (inexistente) da audiência, olhou-me sem conseguir conter expressão de raiva. Aliás, das primeiras expressões de raiva que me dirigiram ao longo da carreira. O que não deixa de constituir, também, ossos do nosso ofício. De qualquer maneira, quanta riqueza em poucos minutos de audiência! O drama humano, desta vez não diluído na insipidez do ato procedimental.

Não sei dizer, hoje em dia, em que autos de processo se localiza esta minha reminiscência. De fato, a encenação dos papéis reservado pela lei a cada interveniente no processo judicial se eterniza naquelas folhas lavradas pelo escrivão. Basta podermos recuperá-las, a esse emaranhado de folhas costuradas em autos, do emaranhado de autos findos que povoam os arquivos judiciários.

Quanto a escritores, nada impede que a vida lhes reserve o papel de intervenientes no seu próprio drama judiciário: há dias estive absorvido pela descrição dos autos do processo-crime em que Camilo Castelo Branco foi querelado por adultério. Autos ilustres: não fosse pelo réu famoso, também pela presidência do juiz José Maria de Almeida Teixeira de Queirós, o pai de Eça de Queirós. Os autos foram recuperados da massa documental arquivada no Tribunal da Relação do Porto, trazendo à tona os acontecimentos daqueles dias sombrios para o escritor e a corré, detidos por mais de ano até o desfecho do caso.

Nos processos judiciais desenrolam-se vidas inteiras, flashes de existências humanas nos seus momentos mais dramáticos. Se os arquivos judiciários são abertos a todos, a pesquisa no material não é fácil. Se o ofício de julgar é acessível a todos por concurso público, nem todos são talhados para a função. Ao que atenta, observa, percebe, o árduo da função judicante se esvai no dia-a-dia pelo simples renovar do interesse a cada audiência que se abre. Nestes vinte e cinco anos de carreira, perdi a conta de quantas abri. Sei é que incontáveis foram as histórias que ouvi, as vidas que tangenciei, destinos que, sempre sobraçando a lei, acabei por influenciar. Este é o ofício. Estas as condições, estes os resultados práticos.

Daí a vida no foro se prestar tão bem de matéria-prima a quem escreve: realidades vividas cujas narrativas, congeladas nas páginas processuais, são capazes de revelar toda a dimensão do humano. De que, por força do hábito profissional, nada nos pode realmente ser estranho.