1862.
Este foi um ano interessante na História da Literatura, porquanto vinham a
público duas obras que, a par de não se poder ter na conta de obras-primas de
seus respectivos autores, no entanto inauguraram espécie de “filão literário” (embora,
reconheçamos, de não muito fácil possibilidade de exploração): o das memórias
de prisioneiros, que posteriormente floresceria na União Soviética na chamada
“Literatura do Gulag”, alusão ao Arquipélago
Gulag, de Aleksandr Soljenítsen (onde se inclua também o Varlam Chalámov
dos Contos de Kolimá), e dando frutos
até no Brasil, com as Memórias do Cárcere,
de Graciliano Ramos.
Remontemos,
então, a 1862, quando vieram a público Memórias
do Cárcere, de Camilo Castelo Branco, e Recordações
da Casa dos Mortos, de Fiódor Dostoiévski; ambos abordam o período pelo
qual seus autores estiveram encarcerados – e, interessante notar, mesmo
irrelevante aqui -, nos dois extremos da Europa. Desdita que, no entanto, se
abateu sobre ambos por circunstâncias totalmente distintas: Dostoiévski, por
motivo de militância política; Camilo, respondendo a processo por acusação de
adultério.
Agora
bem, se na verdade Dostoiévski faz ali uma espécie de reportagem daqueles dias
e lugares lúgubres, no entanto o faz sob estrutura romanesca. De fato, Recordações da Casa dos Mortos é sobre as
agruras de um personagem fictício, Alexandr Petróvitch Goriántchikov, condenado
pelo assassinato da esposa, um crime passional, retratado durante o período em que
está a expiar sua culpa. Já em Memórias
do Cárcere Camilo faz um histórico dos antecedentes da sua prisão e da sua
experiência de pouco mais de um ano de cárcere, período em que esteve recolhido
por ordem da justiça na cadeia do Tribunal da Relação do Porto.
Na
última ida a Lisboa adquiri uma plaquete intitulada O processo de Camilo, texto de palestra realizada no Tribunal da
Relação do Porto em 2017 pelo juiz-desembargador daquela Corte, Carlos Querido.
No trabalho o autor disseca o processo criminal pelo qual foram pronunciados
Camilo e D.ª Ana Plácido, em querela movida pelo marido da senhora, e que os
levou, a ambos, à prisão, enquanto aguardavam decisão final. Registre-se que no
processo atuou o juiz José Maria de Almeida Teixeira de Queirós (pai de Eça de
Queirós), que inclusive a alturas jurou suspeição por foro íntimo, mas permanecendo
em funções por determinação do Tribunal.
Sobre
esse trabalho de Carlos Querido – afinal, sobre o processo de Camilo -, fiz
menção na crônica A ficção em cada processo, escrita para o I Prêmio
Nacional de Literatura para Magistrados, promovido pela Associação dos
Magistrados Brasileiros neste ano de 2019, e que venceu o concurso na sua
categoria. Prêmio que vem 40 anos depois de vencer meu primeiro concurso literário,
em 1979: um concurso estudantil de crônicas na Semana Cultural do Colégio
Marista, de Colatina, em que concorri com o texto Sobre as dificuldades de se
escrever uma crônica.
Transcrevo-o
aqui, no estilo dos meus quatorze anos:
“Ao me inscrever para a Semana Cultural no item de
Crônicas e Poesias pensei estar escolhendo o item mais fácil e que me daria
menos trabalho. Foi um engano. Desse momento até a hora de inscrever a ‘obra’,
as dificuldades se sucederiam.
Logo de cara, deixei de lado as poesias. Sobrou a
Crônica, e pela primeira vez pensei que teria de fazer uma crônica.
A primeira coisa a fazer era saber o que era uma
crônica. Já tinha visto crônicas em jornais, mas nunca havia parado para ler
nenhuma. Recorri então ao dicionário, onde fiquei sabendo que crônica era ‘noticiário
dos jornais, comentários literários ou científicos que constituem
periodicamente uma seção de jornal.’ Mas de que me adiantava saber aquilo (eu
já havia decorado a definição) se eu teria de elaborar uma crônica? Eu
precisava ler uma crônica e saber o que era na prática. Consegui algumas e
estudei, e percebi que eram narrativas onde não havia conflito.
Resolvi começar e a primeira dificuldade surgiu através
do título. Qual título eu iria dar? Resolvi este problema deixando o título
para ser dado depois de escrita a matéria. E o assunto? Bem, teria de ser algo
sensacional, algo como ‘A Crise do Futebol Brasileiro’, ou ‘A Energia Nuclear
no Brasil’, e coisas assim. Eu não sabia que esses assuntos ficariam melhor
numa redação, ou mesmo num Estudo, ou num Tratado...
Vim a saber disso noutro dia, após encontrar um livro
que ‘salvou a pátria’: Ai de Ti,
Copacabana, de Rubem Braga. Após a leitura de umas quatro ou cinco
crônicas, pude observar que o Autor escolhia os temas mais corriqueiros para
retratar em seus trabalhos. Na maioria das vezes eram casos que ele mesmo tinha
vivido.
Eu também iria escrever sobre algo que me tivesse
acontecido, e pensei então em escrever sobre o último feriado, que eu descansei
muito etc., mas isso seria mais uma redação de primário que uma crônica.
Foi então que eu tive a grande ideia: faria uma
crônica sobre as dificuldades que eu tinha para escrever uma crônica!
A partir daí foi mais fácil, e as dificuldades
terminaram quando resolvi que escreveria exatamente sobre elas.
Eis aí a crônica sobe as dificuldades de se escrever
uma crônica. A terceira. E se vierem me dizer que isto também não é uma
crônica, aí eu desisto!...”
E pus-me a pensar cá comigo: o ato
de escrever é tão surpreendente que um texto que inicia referindo ano importante
na História da Literatura pode ao final agasalhar efeméride pessoal que na
certa não interessaria a mais ninguém que não o próprio escritor.
É que, como constato num dos poemas
do Périplo a Norte de tudo, o escritor (lá, o poeta),
“Arauto e errante”, é,
sem dúvida, o
“Senhor desta página”.