12 de julho de 2019

Breves notas quase-literárias (XVIII): Camilo, Dostoiévski e uma crônica premiada


1862. Este foi um ano interessante na História da Literatura, porquanto vinham a público duas obras que, a par de não se poder ter na conta de obras-primas de seus respectivos autores, no entanto inauguraram espécie de “filão literário” (embora, reconheçamos, de não muito fácil possibilidade de exploração): o das memórias de prisioneiros, que posteriormente floresceria na União Soviética na chamada “Literatura do Gulag”, alusão ao Arquipélago Gulag, de Aleksandr Soljenítsen (onde se inclua também o Varlam Chalámov dos Contos de Kolimá), e dando frutos até no Brasil, com as Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos. 
Remontemos, então, a 1862, quando vieram a público Memórias do Cárcere, de Camilo Castelo Branco, e Recordações da Casa dos Mortos, de Fiódor Dostoiévski; ambos abordam o período pelo qual seus autores estiveram encarcerados – e, interessante notar, mesmo irrelevante aqui -, nos dois extremos da Europa. Desdita que, no entanto, se abateu sobre ambos por circunstâncias totalmente distintas: Dostoiévski, por motivo de militância política; Camilo, respondendo a processo por acusação de adultério.
Agora bem, se na verdade Dostoiévski faz ali uma espécie de reportagem daqueles dias e lugares lúgubres, no entanto o faz sob estrutura romanesca. De fato, Recordações da Casa dos Mortos é sobre as agruras de um personagem fictício, Alexandr Petróvitch Goriántchikov, condenado pelo assassinato da esposa, um crime passional, retratado durante o período em que está a expiar sua culpa. Já em Memórias do Cárcere Camilo faz um histórico dos antecedentes da sua prisão e da sua experiência de pouco mais de um ano de cárcere, período em que esteve recolhido por ordem da justiça na cadeia do Tribunal da Relação do Porto.   
Na última ida a Lisboa adquiri uma plaquete intitulada O processo de Camilo, texto de palestra realizada no Tribunal da Relação do Porto em 2017 pelo juiz-desembargador daquela Corte, Carlos Querido. No trabalho o autor disseca o processo criminal pelo qual foram pronunciados Camilo e D.ª Ana Plácido, em querela movida pelo marido da senhora, e que os levou, a ambos, à prisão, enquanto aguardavam decisão final. Registre-se que no processo atuou o juiz José Maria de Almeida Teixeira de Queirós (pai de Eça de Queirós), que inclusive a alturas jurou suspeição por foro íntimo, mas permanecendo em funções por determinação do Tribunal.
Sobre esse trabalho de Carlos Querido – afinal, sobre o processo de Camilo -, fiz menção na crônica A ficção em cada processo, escrita para o I Prêmio Nacional de Literatura para Magistrados, promovido pela Associação dos Magistrados Brasileiros neste ano de 2019, e que venceu o concurso na sua categoria. Prêmio que vem 40 anos depois de vencer meu primeiro concurso literário, em 1979: um concurso estudantil de crônicas na Semana Cultural do Colégio Marista, de Colatina, em que concorri com o texto Sobre as dificuldades de se escrever uma crônica.
Transcrevo-o aqui, no estilo dos meus quatorze anos:
“Ao me inscrever para a Semana Cultural no item de Crônicas e Poesias pensei estar escolhendo o item mais fácil e que me daria menos trabalho. Foi um engano. Desse momento até a hora de inscrever a ‘obra’, as dificuldades se sucederiam.
Logo de cara, deixei de lado as poesias. Sobrou a Crônica, e pela primeira vez pensei que teria de fazer uma crônica.
A primeira coisa a fazer era saber o que era uma crônica. Já tinha visto crônicas em jornais, mas nunca havia parado para ler nenhuma. Recorri então ao dicionário, onde fiquei sabendo que crônica era ‘noticiário dos jornais, comentários literários ou científicos que constituem periodicamente uma seção de jornal.’ Mas de que me adiantava saber aquilo (eu já havia decorado a definição) se eu teria de elaborar uma crônica? Eu precisava ler uma crônica e saber o que era na prática. Consegui algumas e estudei, e percebi que eram narrativas onde não havia conflito.
Resolvi começar e a primeira dificuldade surgiu através do título. Qual título eu iria dar? Resolvi este problema deixando o título para ser dado depois de escrita a matéria. E o assunto? Bem, teria de ser algo sensacional, algo como ‘A Crise do Futebol Brasileiro’, ou ‘A Energia Nuclear no Brasil’, e coisas assim. Eu não sabia que esses assuntos ficariam melhor numa redação, ou mesmo num Estudo, ou num Tratado...
Vim a saber disso noutro dia, após encontrar um livro que ‘salvou a pátria’: Ai de Ti, Copacabana, de Rubem Braga. Após a leitura de umas quatro ou cinco crônicas, pude observar que o Autor escolhia os temas mais corriqueiros para retratar em seus trabalhos. Na maioria das vezes eram casos que ele mesmo tinha vivido.
Eu também iria escrever sobre algo que me tivesse acontecido, e pensei então em escrever sobre o último feriado, que eu descansei muito etc., mas isso seria mais uma redação de primário que uma crônica.
Foi então que eu tive a grande ideia: faria uma crônica sobre as dificuldades que eu tinha para escrever uma crônica!
A partir daí foi mais fácil, e as dificuldades terminaram quando resolvi que escreveria exatamente sobre elas.
Eis aí a crônica sobe as dificuldades de se escrever uma crônica. A terceira. E se vierem me dizer que isto também não é uma crônica, aí eu desisto!...”

            E pus-me a pensar cá comigo: o ato de escrever é tão surpreendente que um texto que inicia referindo ano importante na História da Literatura pode ao final agasalhar efeméride pessoal que na certa não interessaria a mais ninguém que não o próprio escritor.
            É que, como constato num dos poemas do Périplo a Norte de tudo, o escritor (lá, o poeta),
                        “Arauto e errante”, é,
sem dúvida, o
                        “Senhor desta página”.