16 de abril de 2019

Breves notas quase literárias (XVII) - Notre Dame de Paris



Embora mais antiga que isso, Paris, a Civitas Parisiorum do imperador Juliano, entrou na História por meio de um incêndio. Ainda Lutécia, nome romanizado do termo celta designando o povoado espalhado pelo emaranhado de ilhas pantanosas do Sena, uma batalha perdida para as forças do general romano Labienus obrigou o chefe Camulogeno a pôr fogo em tudo. Tática de terra arrasada. Foi a urbe daí renascida, da reconstrução levada a efeito em conjunto por romanos e gauleses parísios, que alavancaria para a História uma das mais prodigiosas cidades da civilização ocidental.

Paris é, talvez a cidade mais literária de todas. O encanto que exerce sobre tão diferente espécie de gente, de soldados a comerciantes, de poetas a financistas, de escritores a ladrões e artistas e santos e toda sorte de desajustados ao longo de tantos séculos de história gerou incontáveis páginas escritas e ainda mais incontáveis imagens, feitas por pintores e fotógrafos. Em que, hoje em dia, incluem-se (com mil perdões aos puristas da fotografia) qualquer pessoa que porta um aparelho celular.

Paris é uma cidade fotogênica como poucas. O que é facilitado pela luminosidade natural tanto quanto pela geografia, entrecortada de montes que se alteiam aqui e ali, margeando o Sena. Este sim, a razão de ser de tudo, acompanhando a cidade ao longo de toda sua extensão, como que a “hidratá-la”. Paris é fria e é úmida, e o Sena tem sim participação nesse determinismo climático. Mas é o próprio curso do Sena o responsável por tornar Paris uma cidade fácil de “entender” para quem, como eu, gosta de bater os olhos sobre o mapa e se dar conta da lógica dos centros urbanos antes de sair a percorrê-los.

O Sena é um dos cartões postais de uma cidade que os coleciona em abundância. Não é, entretanto, o mais conhecido, posto que cabe à imbatível Torre Eiffel. Seguida de perto pelos esplêndidos museus (o Louvre é uma celebridade) e os esplêndidos monumentos religiosos, Sacre-Couer e Notre Dame. A propósito desta última, aliás, a razão destas reflexões.

Fomos, o mundo todo, surpreendidos neste 15 de abril pela notícia do incêndio que por horas consumiu a parte superior da Catedral de Notre Dame. O monumento mais visitado da Europa. O ponto de referência que eu, na minha estreia na cidade, só detive a marcha pela margem fria do Sena ao dar com a sua visão, vindo a pé do 13º arrondissement. A praça coalhada de gente, as filas para entrar, a visita superficial que se faz como turista. Mas também o ofício da missa, o som do órgão. O deixar-se ficar pelos recantos situados além dos roteiros turísticos, as conversas pescadas entre nativos, no que dava para perceber apesar da minha pouca vivência da língua francesa. Notre Dame foi durante minha estada o ponto de referência, espécie de pouso cuja simples visão descansava das explorações rigorosas a que nos submete essa atividade insana que é o fazer turismo.

As imagens, tanto quanto as que foram tiradas da agonia do nosso Museu Nacional, são impressionantes. É ver arder a civilização, visão com que infelizmente vimos nos acostumando diariamente. Só que de maneira não simbólica. E aqui, e por isto mesmo, faço um retorno ao ponto em que suspeitei que Paris possa ser a cidade mais literária de todas. É que a própria Catedral de Notre Dame deve a esta circunstância uma parte da sua glória.

Nos anos turbulentos que se seguiram à Revolução Francesa, o monumento sofreu depredações que levaram à interdição. A coroação de Napoleão Bonaparte, em 1804, aconteceu na esteira da reabertura do templo ao culto, em 1802. Ademais disto, no início do século XIX a intelectualidade se mostrava interessada no estilo gótico e tinha em Notre Dame uma referência. No entanto, fora dos salões literários e gabinetes de estudo, a realidade era outra: a situação do monumento nos anos iniciais do século XIX era tão precária que as autoridades pensavam em demolição.

Era o estado de coisas em 1831, ano da publicação de Notre Dame de Paris, de Victor Hugo. A saída à luz do romance chamou a atenção do público. E mais, fez com que os escritores cerrassem fileiras em favor do monumento e se expressassem nesse sentido. Gerard de Nerval, por exemplo, acreditava e repetia que as pessoas não vinham de todas as partes do mundo para ver aquelas ruínas austeras em que estava transformado o templo. O próprio Victor Hugo sentenciava que a destruição de um edifício histórico não deveria ser permitida. Sem embargo, essa mobilização de escritores e intelectuais acabou por salvar o monumento. Tanto que foi Prosper Merimée, autor de Carmen, o Inspetor Geral da Comissão de Monumentos Históricos que em 1843 criou um concurso para restauração geral da Catedral. Providência que poria fim ao quadro de penúria e possibilitaria o ressurgimento do monumento em seu esplendor.

Então, velha de quase 900 anos - aumentada, destruída, conservada ao sabor dos fatos históricos por tantos séculos - a feição que até hoje conhecíamos era a que lhe deram as reformas do século XIX. Cujos mentores, aliás, pretenderam conservar ao máximo as características originais. No momento em que escrevo, extinto o fogo, começa-se a apurar a extensão dos danos.

Volto o pensamento à luminosa e fria Paris da minha estadia para recordar que, da margem do Sena, saquei uma foto (dentre inúmeras) da parte superior do templo. Na imagem, o reflexo do sol matinal desenhava figura que lembrava a de uma sombra humana. No retorno, contei à minha filha que consegui fotografar o Quasímodo acabando de despertar e que olhava as pessoas lá embaixo. Estranhamente, a foto não ficou registrada na memória do celular. Para ela, que me cobrou a imagem e chegou a duvidar da história, debitei o fato na conta dos mistérios da Catedral de Notre Dame.

Que ela e outras crianças mundo afora nunca acreditem que o Corcunda pereceu no incêndio. Temos dissabores demais para termos de explicar às crianças mais um revés causado pela nossa incompetência em lidar com a herança cultural. Antes, que o efeito simbólico da catástrofe possa ser amenizado pelo esforço de reconstrução, que certamente há de ser bem-sucedido.