Embora
mais antiga que isso, Paris, a Civitas Parisiorum
do imperador Juliano, entrou na História por meio de um incêndio. Ainda Lutécia,
nome romanizado do termo celta designando o povoado espalhado pelo emaranhado
de ilhas pantanosas do Sena, uma batalha perdida para as forças do general
romano Labienus obrigou o chefe Camulogeno a pôr fogo em tudo. Tática de terra arrasada.
Foi a urbe daí renascida, da reconstrução levada a efeito em conjunto por
romanos e gauleses parísios, que alavancaria para a História uma das mais prodigiosas
cidades da civilização ocidental.
Paris
é, talvez a cidade mais literária de todas. O encanto que exerce sobre tão diferente
espécie de gente, de soldados a comerciantes, de poetas a financistas, de
escritores a ladrões e artistas e santos e toda sorte de desajustados ao longo
de tantos séculos de história gerou incontáveis páginas escritas e ainda mais
incontáveis imagens, feitas por pintores e fotógrafos. Em que, hoje em dia, incluem-se
(com mil perdões aos puristas da fotografia) qualquer pessoa que porta um aparelho
celular.
Paris
é uma cidade fotogênica como poucas. O que é facilitado pela luminosidade natural
tanto quanto pela geografia, entrecortada de montes que se alteiam aqui e ali, margeando
o Sena. Este sim, a razão de ser de tudo, acompanhando a cidade ao longo de
toda sua extensão, como que a “hidratá-la”. Paris é fria e é úmida, e o Sena
tem sim participação nesse determinismo climático. Mas é o próprio curso do
Sena o responsável por tornar Paris uma cidade fácil de “entender” para quem,
como eu, gosta de bater os olhos sobre o mapa e se dar conta da lógica dos
centros urbanos antes de sair a percorrê-los.
O
Sena é um dos cartões postais de uma cidade que os coleciona em abundância. Não
é, entretanto, o mais conhecido, posto que cabe à imbatível Torre Eiffel. Seguida
de perto pelos esplêndidos museus (o Louvre é uma celebridade) e os esplêndidos monumentos
religiosos, Sacre-Couer e Notre Dame. A propósito desta última, aliás, a razão
destas reflexões.
Fomos,
o mundo todo, surpreendidos neste 15 de abril pela notícia do incêndio que por
horas consumiu a parte superior da Catedral de Notre Dame. O monumento mais
visitado da Europa. O ponto de referência que eu, na minha estreia na cidade, só
detive a marcha pela margem fria do Sena ao dar com a sua visão, vindo a pé do
13º arrondissement. A praça coalhada de gente, as filas para entrar, a visita
superficial que se faz como turista. Mas também o ofício da missa, o som do órgão.
O deixar-se ficar pelos recantos situados além dos roteiros turísticos, as
conversas pescadas entre nativos, no que dava para perceber apesar da minha pouca
vivência da língua francesa. Notre Dame foi durante minha estada o ponto de
referência, espécie de pouso cuja simples visão descansava das explorações rigorosas
a que nos submete essa atividade insana que é o fazer turismo.
As
imagens, tanto quanto as que foram tiradas da agonia do nosso Museu Nacional, são
impressionantes. É ver arder a civilização, visão com que infelizmente vimos
nos acostumando diariamente. Só que de maneira não simbólica. E aqui, e por
isto mesmo, faço um retorno ao ponto em que suspeitei que Paris possa ser a cidade
mais literária de todas. É que a própria Catedral de Notre Dame deve a esta
circunstância uma parte da sua glória.
Nos
anos turbulentos que se seguiram à Revolução Francesa, o monumento sofreu depredações
que levaram à interdição. A coroação de Napoleão Bonaparte, em 1804, aconteceu
na esteira da reabertura do templo ao culto, em 1802. Ademais disto, no início
do século XIX a intelectualidade se mostrava interessada no estilo gótico e
tinha em Notre Dame uma referência. No entanto, fora dos salões literários e
gabinetes de estudo, a realidade era outra: a situação do monumento nos anos iniciais
do século XIX era tão precária que as autoridades pensavam em demolição.
Era
o estado de coisas em 1831, ano da publicação de Notre Dame de Paris, de Victor Hugo. A saída à luz do romance
chamou a atenção do público. E mais, fez com que os escritores cerrassem fileiras
em favor do monumento e se expressassem nesse sentido. Gerard de Nerval, por
exemplo, acreditava e repetia que as pessoas não vinham de todas as partes do mundo
para ver aquelas ruínas austeras em que estava transformado o templo. O próprio
Victor Hugo sentenciava que a destruição de um edifício histórico não deveria
ser permitida. Sem embargo, essa mobilização de escritores e intelectuais
acabou por salvar o monumento. Tanto que foi Prosper Merimée, autor de Carmen, o
Inspetor Geral da Comissão de Monumentos Históricos que em 1843 criou um
concurso para restauração geral da Catedral. Providência que poria fim ao quadro
de penúria e possibilitaria o ressurgimento do monumento em seu esplendor.
Então,
velha de quase 900 anos - aumentada, destruída, conservada ao sabor dos fatos históricos
por tantos séculos - a feição que até hoje conhecíamos era a que lhe deram as
reformas do século XIX. Cujos mentores, aliás, pretenderam conservar ao máximo
as características originais. No momento em que escrevo, extinto o fogo, começa-se
a apurar a extensão dos danos.
Volto
o pensamento à luminosa e fria Paris da minha estadia para recordar que, da
margem do Sena, saquei uma foto (dentre inúmeras) da parte superior do templo.
Na imagem, o reflexo do sol matinal desenhava figura que lembrava a de uma sombra
humana. No retorno, contei à minha filha que consegui fotografar o Quasímodo acabando
de despertar e que olhava as pessoas lá embaixo. Estranhamente, a foto não ficou
registrada na memória do celular. Para ela, que me cobrou a imagem e chegou a
duvidar da história, debitei o fato na conta dos mistérios da Catedral de Notre
Dame.
Que
ela e outras crianças mundo afora nunca acreditem que o Corcunda pereceu no
incêndio. Temos dissabores demais para termos de explicar às crianças mais um revés
causado pela nossa incompetência em lidar com a herança cultural. Antes, que o efeito
simbólico da catástrofe possa ser amenizado pelo esforço de reconstrução, que
certamente há de ser bem-sucedido.