10 de abril de 2019

Breves notas quase-literárias (XVI): Em Itaúnas


Não sei há quantos anos, mas bem no meio do verão, por volta de 20 de janeiro, quem precisar é capaz de me encontrar em Itaúnas. Nessa época a pequena vila à beira-rio plantada fica apinhada de gente, brincantes e simpatizantes. É gente de alguma maneira ligada a tradições culturais mantidas vivas naqueles rincões do Norte espírito-santense, e que hoje em dia conferem interesse ao lugar e prestígio aos protagonistas.

Itaúnas é distrito de Conceição da Barra, de cuja sede dista aproximadamente 30 quilômetros. É destino turístico importante. Por conta dos encontros de bandas e dos festivais de forró que acontecem pelos meados do ano, atraindo visitantes de todo o Brasil, pouca gente desconhece a história trágica do povoado vítima da maldição ecológica que, à conta do desmatamento, acabou soterrado pelas areias sopradas da praia por ventania incessante. Se a visita às dunas, que mantêm ruínas da vila original debaixo de quantidade fantástica de areia, é atrativo turístico imperdível, fazê-lo à hora do pôr do sol é atividade obrigatória, num breve momento de reflexão, para uns, e de pausa nas atividades, para outros. Faz parte da mística do lugar.

Subindo e descendo as dunas é que se vai à praia. Escolha um dos vários quiosques, que se põem plantados num plano mais elevado em relação à maré, e de lá de cima, comandando, por exemplo, uma porção de camarões a preço (ainda) acessível, simplesmente passe uma tarde em contemplação à paisagem marinha, esplêndida, já meio nordestina. Ou desça para banhar-se, que o calor, o ano todo, pede e justifica. São águas límpidas e a temperatura é amigável.

Já de minha parte, nessa época do ano passeios só nos intervalos das apresentações. Em janeiro a movimentação dos grupos folclóricos é intensa. Homenagem a São Sebastião, cuja festa se faz no dia 20, e a São Benedito, que nas comunidades Espírito Santo afora se festeja independente de pretexto. Ticumbi, alardo, reis-de-bois, jongos, pastorinhas, o lugar é interessante exemplo de diversidade cultural.

Não se ignora que as apresentações, a manutenção das atividades, depende de apoio para a logística - indumentária, alimentação e transporte incluídos. Não se ignora que há relações de interesse e de poder envolvidas no próprio fato da manutenção dos grupos. Estudos e análises acadêmicas as perpassam e dissecam sob todos os vieses possíveis há mais de trinta anos. Mas com certeza não é com que se preocupa a maioria das pessoas, turistas e curiosos, que por volta de 20 de janeiro, estando pela vila, param para assistir às apresentações.    

Quase tudo ali eram terras do Barão de Timbuí; a região foi percorrida pelo Príncipe Wied-Neuwied, em demanda do norte, em 1816/1817, há exatos duzentos anos. Uma visita à sede do Projeto Tamar, no final do casario, margeando a ponte sobre o rio de águas escuras, esclarece bastante bem antecedentes etnográficos e históricos do lugar: notas objetivas sobre a população indígena, sobre a fauna, sobre a colonização e a economia local, que conheceu prosperidade graças, principalmente, à produção de farinha de mandioca.

Logo adiante a entrada do Parque Florestal, quilômetros de (ainda) alguma mata atlântica, permeada em quase toda a extensão pelo eucaliptal sem fim, onipresente rio Reis Magos para cima, Espírito Santo afora. Um dos caminhos que cortam o parque dá acesso quilômetros parque adentro à praia de Riacho Doce, onde se convencionou estar situada a divisa com a Bahia, em que pese ao fato de os limites não restarem demarcados com certeza.

 Pois foi numa das idas a Itaúnas que comecei a imaginar a história do viajante ;que chega ao lugar atrás de material para um trabalho acadêmico e acaba atraído pela beleza de uma moradora, de que ninguém dá muita informação. Como não poderia deixar de ser, se está a lidar com personagem singular, a ponto de merecer ter seus passos narrados e registrados por escrito. Se o curso dos acontecimentos será alterado por sua ação, por sua simples presença, ou se sua passagem por ali não modificará os ânimos das pessoas ainda não é altura de deixar esclarecido.
Da última vez em que lá estive, visitando os lugares que a personagem visitou, revendo mentalmente as cenas passadas às margens do rio, pude adquirir linda morena feita em cerâmica, cujo ar plácido, ao mesmo tempo pensativo e distante de quem a olha, reflete com precisão os traços de caráter que lhe adivinhei em sonhos, quando ainda sequer conhecia a tal personagem, e que deverá influenciar o protagonista a ponto de - quem sabe -, roubar para si o protagonismo.

Quanto ao lugar da narração, a ele se reconhece grande importância na criação ficcional, na construção (ou descrição) dos fatos que se entremeiam resultando na ação que se pretende ser digna de registro. A trama se passa num tempo e num lugar - ainda que um ou outro, ou ambos, não restem definidos com base em geografias e cronologias.

Se é verdade que as personagens dialogam conosco enquanto lhes fixamos os traços, biográficos e de caráter, se é verdade que o escritor de romance é um colecionador de idiossincrasias, catálogo de caracteres que darão interesse ao descortinar das vidas que desnuda, não é menos verdade que os lugares têm, eles também, suas idiossincrasias: uma cidade, uma vila, um povoado, nunca os percebemos, eu e você, da mesma maneira. Estas discordâncias de percepção tendem a se acentuar no caso de eu e você estarmos de lados opostos no ato de criação ficcional – vale dizer, como autor e leitor.

Interessante como tudo isso me veio à mente recordando a vila de Itaúnas. Itaúnas, terra multifacetada de interesse, de folclore e de músicos, de escritores e fotógrafos, de gente honesta e trabalhadora, de problemas que são normais em comunidades, e de outros que infelizmente se tornam cada vez mais comuns nesses estranhos dias que correm.

Não sei ainda que poderá sugerir a bela morena de cima da minha mesa de trabalho, de onde ficará me olhando até que alguma coisa indique ter chegado o final da história. Sorte minha ter conseguido personificar o lugar numa personagem, que para mim, enquanto digito, se insinua como “o rosto de Itaúnas”. Que sua história possa agradar.  Por ora, parêntese que aqui vou fechando, há simplesmente que narrar.


(publicado na Antologia Amaletras vol II)