Não
sei há quantos anos, mas bem no meio do verão, por volta de 20 de janeiro, quem
precisar é capaz de me encontrar em Itaúnas. Nessa época a pequena vila à
beira-rio plantada fica apinhada de gente, brincantes e simpatizantes. É gente
de alguma maneira ligada a tradições culturais mantidas vivas naqueles rincões
do Norte espírito-santense, e que hoje em dia conferem interesse ao lugar e
prestígio aos protagonistas.
Itaúnas
é distrito de Conceição da Barra, de cuja sede dista aproximadamente 30
quilômetros. É destino turístico importante. Por conta dos encontros de bandas
e dos festivais de forró que acontecem pelos meados do ano, atraindo visitantes
de todo o Brasil, pouca gente desconhece a história trágica do povoado vítima
da maldição ecológica que, à conta do desmatamento, acabou soterrado pelas
areias sopradas da praia por ventania incessante. Se a visita às dunas, que
mantêm ruínas da vila original debaixo de quantidade fantástica de areia, é
atrativo turístico imperdível, fazê-lo à hora do pôr do sol é atividade
obrigatória, num breve momento de reflexão, para uns, e de pausa nas
atividades, para outros. Faz parte da mística do lugar.
Subindo
e descendo as dunas é que se vai à praia. Escolha um dos vários quiosques, que
se põem plantados num plano mais elevado em relação à maré, e de lá de cima,
comandando, por exemplo, uma porção de camarões a preço (ainda) acessível,
simplesmente passe uma tarde em contemplação à paisagem marinha, esplêndida, já
meio nordestina. Ou desça para banhar-se, que o calor, o ano todo, pede e
justifica. São águas límpidas e a temperatura é amigável.
Já
de minha parte, nessa época do ano passeios só nos intervalos das
apresentações. Em janeiro a movimentação dos grupos folclóricos é intensa. Homenagem
a São Sebastião, cuja festa se faz no dia 20, e a São Benedito, que nas
comunidades Espírito Santo afora se festeja independente de pretexto. Ticumbi,
alardo, reis-de-bois, jongos, pastorinhas, o lugar é interessante exemplo de
diversidade cultural.
Não
se ignora que as apresentações, a manutenção das atividades, depende de apoio
para a logística - indumentária, alimentação e transporte incluídos. Não se ignora
que há relações de interesse e de poder envolvidas no próprio fato da
manutenção dos grupos. Estudos e análises acadêmicas as perpassam e dissecam
sob todos os vieses possíveis há mais de trinta anos. Mas com certeza não é com
que se preocupa a maioria das pessoas, turistas e curiosos, que por volta de 20
de janeiro, estando pela vila, param para assistir às apresentações.
Quase
tudo ali eram terras do Barão de Timbuí; a região foi percorrida pelo Príncipe
Wied-Neuwied, em demanda do norte, em 1816/1817, há exatos duzentos anos. Uma
visita à sede do Projeto Tamar, no final do casario, margeando a ponte sobre o
rio de águas escuras, esclarece bastante bem antecedentes etnográficos e
históricos do lugar: notas objetivas sobre a população indígena, sobre a fauna,
sobre a colonização e a economia local, que conheceu prosperidade graças,
principalmente, à produção de farinha de mandioca.
Logo
adiante a entrada do Parque Florestal, quilômetros de (ainda) alguma mata
atlântica, permeada em quase toda a extensão pelo eucaliptal sem fim,
onipresente rio Reis Magos para cima, Espírito Santo afora. Um dos caminhos que
cortam o parque dá acesso quilômetros parque adentro à praia de Riacho Doce,
onde se convencionou estar situada a divisa com a Bahia, em que pese ao fato de
os limites não restarem demarcados com certeza.
Pois foi numa das idas a Itaúnas que comecei a
imaginar a história do viajante ;que chega ao lugar atrás de material para um
trabalho acadêmico e acaba atraído pela beleza de uma moradora, de que ninguém
dá muita informação. Como não
poderia deixar de ser, se está a lidar com personagem singular, a ponto de
merecer ter seus passos narrados e registrados por escrito. Se o curso dos
acontecimentos será alterado por sua ação, por sua simples presença, ou se sua
passagem por ali não modificará os ânimos das pessoas ainda não é altura de
deixar esclarecido.
Da
última vez em que lá estive, visitando os lugares que a personagem visitou,
revendo mentalmente as cenas passadas às margens do rio, pude adquirir linda
morena feita em cerâmica, cujo ar plácido, ao mesmo tempo pensativo e distante
de quem a olha, reflete com precisão os traços de caráter que lhe adivinhei em
sonhos, quando ainda sequer conhecia a tal personagem, e que deverá influenciar
o protagonista a ponto de - quem sabe -, roubar para si o protagonismo.
Quanto
ao lugar da narração, a ele
se reconhece grande importância na criação ficcional, na construção (ou
descrição) dos fatos que se entremeiam resultando na ação que se pretende ser
digna de registro. A trama se passa num tempo e num lugar - ainda que um ou
outro, ou ambos, não restem definidos com base em geografias e cronologias.
Se é verdade que as personagens dialogam conosco
enquanto lhes fixamos os traços, biográficos e de caráter, se é verdade que o
escritor de romance é um colecionador de idiossincrasias, catálogo de
caracteres que darão interesse ao descortinar das vidas que desnuda, não é
menos verdade que os lugares têm, eles também, suas idiossincrasias: uma
cidade, uma vila, um povoado, nunca os percebemos, eu e você, da mesma maneira.
Estas discordâncias de percepção tendem a se acentuar no caso de eu e você
estarmos de lados opostos no ato de criação ficcional – vale dizer, como autor
e leitor.
Interessante como tudo isso me veio à mente recordando
a vila de Itaúnas. Itaúnas, terra multifacetada de interesse, de folclore e de
músicos, de escritores e fotógrafos, de gente honesta e trabalhadora, de
problemas que são normais em comunidades, e de outros que infelizmente se
tornam cada vez mais comuns nesses estranhos dias que correm.
Não
sei ainda que poderá sugerir a bela morena de cima da minha mesa de trabalho,
de onde ficará me olhando até que alguma coisa indique ter chegado o final da
história. Sorte minha ter conseguido personificar o lugar numa personagem, que
para mim, enquanto digito, se insinua como “o rosto de Itaúnas”. Que sua
história possa agradar. Por ora,
parêntese que aqui vou fechando, há simplesmente que narrar.
(publicado na Antologia Amaletras vol II)