Venho
lendo as manifestações de Mia Couto a propósito da tragédia que na forma de
furacão se abateu sobre Moçambique neste 2019. Da cobertura dos fatos fico sabendo que o
autor faz atualmente desfiar pelo teclado do computador as ideias que desenvolve
para um novo romance. A história, segundo nos informa, é passada na cidade da
Beira, a segunda maior do país, onde Mia nasceu e viveu até aos 17 anos. Nas
suas próprias palavras: “Neste momento, escrevo um romance em que a cidade era
um personagem. É uma maneira disfarçada de visitar tempos que foram meus”. Subitamente,
no meio do processo de escrita, viu-se atordoado pela crueza dos fatos. Fatos
estes de repercussão mundial.
Inicialmente
sem qualquer comunicação com amigos que vivem na cidade da Beira, a passagem
dos dias veio agregando informações que lhe deram conta da imensidão da destruição:
algo da ordem de 90% da cidade deixou de existir. No sobrevoo que fez à região após
a tragédia, “minha [dele] primeira reação foi achar que minha infância foi
perdida”. E prossegue: “foi como se meu próprio tempo deixasse de ter esta
referência básica, este chão que é um lugar que me conta histórias, que me faz
ser pessoa”.
Fatos
concernentes à própria biografia, fatos que se desenovelam pelo entorno da própria
existência. O recurso ao material, ou a quase necessidade de desenvolvê-lo como
matéria prima ficcional, é recorrente. Exemplos inúmeros não faltam na
Literatura nacional. Por aqui, lembremos Pedro J. Nunes de Menino e de Tarde dos porcos.
De certa maneira, é desta mesma natureza o material que desenvolvi no Memória Repartida. No meu caso, expandido
no tempo, porque o romance é permeado de uma visão de “longa história” da
região. Também por este motivo alcanço o significado das palavras amargas do
autor moçambicano. Que acrescentou, na mesma entrevista ao G1: “É uma visão
apocalíptica, todas as casas sem teto, as ruas cheias de água”.
A
primeira vez que ouvi falar em Mia Couto desenvolvia estudos em Portugal, onde
vivia. Por alguém que não recordo me foi sugerido como referência o seu livro A varanda do frangipani, em que a “alma
penada” de um operário (um “xipoco”), morto às vésperas da independência de
Moçambique reencarna no inspetor de polícia que vai investigar a morte. Tal
referência me veio a propósito da pesquisa sobre o infanticídio ritual na Guiné
Bissau, assunto explorado na dissertação de mestrado que apresentei à Universidade
de Lisboa e citado por Mia naquela obra. Foi a primeira vez que o moçambicano me
induziu a refletir seriamente sobre alguma coisa. Esta é a segunda.
Há
40 anos as ruas da cidade onde pela primeira vez me dei conta do mundo viram-se
“cheias de água”, como as da Beira natal de Mia. Era 1979; Colatina viu-se
inundada por homérica cheia do Rio Doce, que a corta ao meio. A elevação
desmedida do leito represou afluentes, que não tendo onde tributar as águas, esparramaram-nas
margens afora. Foi o que aconteceu com o rio Santa Maria, afluente da margem direita,
que deságua no Rio Doce na altura do bairro Esplanada. Onde eu vivia na época.
Findava
nosso período de férias escolares em Guarapari, onde todos os anos a família
veraneava durante janeiro e fevereiro. Chuvas ininterruptas. Como em Minas Gerais, o
mau tempo não dava trégua sobre o Espírito Santo. As notícias das cidades situadas
no vale do Rio Doce inquietavam, mas eram distantes. Nossas funcionárias tinham
seguido para Colatina, a fim de limpar a casa e organizar as coisas para início
do ano. Aguardávamos. Lembro-me de recebermos no dia seguinte ligação
telefônica de uma delas. Reportava, preocupada, a subida das águas do rio. Estava
à espera de instruções. Minha mãe, que não tinha como prever a amplitude da
tragédia prestes a se abater sobre a cidade, determinou: “coloquem panos por
debaixo da porta para impedir a entrada da água”.
Inapropriado,
frente ao que se sucederia nas próximas horas. Uma sangria de emergência da
represa de Mascarenhas, a montante da cidade, piorou a situação. O leito do rio
elevou-se muitos metros acima do nível normal, inundando tudo. Nas imagens impressionantes
que circulam pela internet não mais consegui identificar a figura do meu primo
Vicente de Paula, já falecido: transitando pelo centro da cidade, as pernas
metidas dentro d’água quase até o joelho, protegia-se do mau tempo com um guarda-chuva
aberto. Imagem eternizada na minha mente como símbolo daquele desespero todo.
Estive
lá com meu pai. Como não voltaríamos tão cedo de Guarapari, fomos a Colatina
buscar roupas e outros objetos. Meu pai queria ver com os próprios olhos a
extensão dos danos. Nossa rua, a Santa Maria, sob metros de água. Não dava para
entrar em casa. A não ser nadando, sugeri. Meu pai, chocado, aquiesceu.
Lancei-me às águas, águas do rio Santa Maria, que eu nem em sonho cuidara
encontrar por ali, tão longe do leito. Da casa de dois andares apenas no
segundo se andava; no primeiro nadava-se.
Entrei, subi o lance de escadas e peguei o que tinha de pegar. A lembrança
mais viva que guardo é a de um rato morto boiando em frente ao portão, por sobre
que nadei para fora da casa semidestruída.
A
cidade era a imagem da desolação. Tropas policiais, caminhões de campanha, caminhões
de água, gente trançando às tontas pelo lamaçal que cobria as ruas tão minhas conhecidas.
As ruas que eu percorria de um lado para outro nos afazeres rotineiros da minha
vida aos 14 anos de idade, sem nunca ter me dado conta de que ali jazia o mundo
em que eu vivia. Eu e muitos outros, colegas, amigos, amigas. A minha cidade.
“Fiquei
algumas horas lá depois do desastre e entendi algo que não percebia até então.
A cidade é feita pelas pessoas”. É de Mia Couto. Poderia ser meu, descontada a diferença
de talento que nos separa. Um pouco por conta disso é que até hoje cultivo os
amigos de então. O que me ajudou a superar na cabeça a tragédia ambiental que muitos
anos depois se abateu sobre o Rio Doce, desta vez fruto da imprevidência
humana. E também a inclemência dos anos de seca, quando a falta de chuva quase
extinguiu o curso d’água, pondo a nu barrancas traiçoeiras e meandros arenosos
cujos mistérios eu-menino tanto respeitava.
Mas
a cidade sobreviveu, como o Rio Doce sobrevive. Talvez não incólumes, mas reconstruídos
ambos, a cada revés, um pouco como resultado da operosidade das pessoas. Ainda que,
como o moçambicano, eu a certa atura tenha me dado conta de que “enquanto eu ia
à procura destas memórias para este romance, daquilo que me inspirou a ser
pessoa, eu percebia que esta memória era toda inventada. A cidade tinha se
inventado a si própria”. No exercício da escrita o que fazemos é tangenciá-las,
essas primeiras memórias, que um pouco nos definem como pessoa.