Miguel
Depes Tallon (1948-1999) nasceu vinte anos depois de Renato Pacheco (1928-2004).
Uma diferença considerável, até determinada altura da vida. Mas que nada
significa a partir de certo ponto, quando então o que passa a valer são as
afinidades pessoais, em virtude de circunstâncias externas ou dos gostos comuns.
Miguel
Depes Tallon veio da sua Cachoeiro de Itapemirim natal para Vitória nos idos
dos anos 60 do século XX. Por essa época obteve suas duas graduações, em
História e em Direito, e iniciou a vida associativa, presidindo o Centro de
Estudos Históricos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade
Federal do Espírito Santo. Começou a lecionar em 1962, no Instituto Rio Branco,
em Cachoeiro de Itapemirim. Professor precoce, como o foi Renato Pacheco.
Este
iniciou a sua longa vida letiva aos 17 anos de idade, substituindo o professor
Guilherme Santos Neves na cadeira de Português do Colégio Estadual do Espírito
Santo (como concursado, aí lecionou História Geral de 1951 a 1957). Entre
outras, Miguel também lecionou na mesma escola, inclusive na mesma cadeira de
Português, e foi professor de História (Geral e do Brasil), como Renato.
Ambos
iniciaram a vida pública envolvidos por questões administrativas e de pessoal: Renato
Pacheco ingressou no serviço público em 1948 (ano de nascimento de Miguel), aos
19 anos de idade, quando foi admitido por concurso público no cargo de Oficial
Administrativo. Já no ano seguinte, em 1949, foi nomeado em comissão para o cargo
de Diretor da Divisão de Pessoal do Departamento do Serviço Público, que
deixaria no ano seguinte, justamente em virtude de sua nomeação como professor
catedrático de História Geral. Preocupado com o aperfeiçoamento dos quadros
(preocupação que manteve ao longo da vida e o levaria a propor a criação das
Escolas da Magistratura no Brasil), Renato sugeriu, quando ainda Diretor de
Pessoal do DSP, a criação de uma Escola de Aperfeiçoamento do Servidor Público,
infelizmente não implantada. As questões que enfrentou nesse período procurou
sistematizá-las na série de artigos Questões de Pessoal, publicada na
extinta Revista do Departamento do
Serviço Público do Espírito Santo.
Por
sua vez, recém-formado, Miguel começou no serviço público em 1971, dirigindo a
Divisão de Pessoal da Prefeitura Municipal de Vitória; em 1972 chefiou o
serviço de Implantação e Controle de Rotinas da Secretaria Estadual de
Administração e em 1973 (ano em que Renato encerrava a carreira na magistratura),
era diretor do Departamento de Administração da Prefeitura Municipal de Vila
Velha. Talvez viesse daí também, e não só do exercício da docência, o
incontestável jeito de ambos para lidar com o público. Mas certamente daí veio
o jeito de ambos para organizar e implantar rotinas e serviços (ambos, a seu
tempo, presidiram o Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo).
Em 1976 Miguel ingressou nos quadros da
Universidade Federal do Espírito Santo como professor-adjunto. Em julho daquele
ano oferecia a Renato Pacheco seu livreto História
do Brasil (do descobrimento ao período regencial), súmula das aulas que
ministrava na época no Curso Integral, o fazendo mediante cerimoniosa
dedicatória: “Ao Dr. Renato, com a admiração e amizade do Miguel. 13/07/76”. Como
referido, nessa época, e desde 1973, Renato Pacheco estava de volta a Vitória
de pouco mais de dezesseis anos de andanças pelo interior do estado como juiz
de direito. Daí, da convivência na Universidade, estreitou-se a amizade entre
ambos.
1976
foi um ano relevante na vida de Miguel: além da sua admissão na Universidade
Federal, foi admitido também nos quadros do Instituto Histórico e Geográfico do
Espírito Santo. Corria a longa gestão de Alberto Stange Jr., durante o período
em que as atividades do IHGES estiveram prejudicadas pela reforma da sede (a
demolição do prédio do antigo Clube dos Boêmios e construção do edifício
Domingos Martins); o fato é que, recém ingresso na casa, Miguel já passou a
integrar a Comissão da Revista. Renato Pacheco, admitido no IHGES em 1953, na
altura da admissão de Miguel ocupava na Diretoria o cargo de vice-presidente.
Como dito acima, ambos presidiram o Instituto
Histórico e Geográfico do Espírito Santo: Renato de 1991 a 1993, Miguel de 1996
a 1999. Na gestão de Renato Pacheco foi celebrado o convênio com a Prefeitura
Municipal de Vitória, que permitiu a Miguel publicar inúmeros títulos nas
séries editoriais criadas pelo IHGES: 67 títulos, como registrou na Revista do IHGES n.º 52, de 1999, ano em
que faleceu, apenas iniciado o segundo mandato.
Tanto
um como o outro eram dados a incentivar jovens escritores, do que sou
testemunha. Miguel não só incentivava como cobrava produção; atesta-o o próprio
Renato Pacheco, na dedicatória do seu Pedra
Menina (Vitória: Editora Instituto Histórico, 1999): “para o extraordinário
intelectual Miguel Depes Tallon, aos amigos, o maior provedor de obras primas e
o máximo cobrador de novos textos”. Um dos traços da personalidade de ambos era
a generosidade.
Em
entrevista ao acadêmico Oscar Gama para a Revista
Você, n.º 50, Renato Pacheco revela ter assumido o compromisso de escrever
sobre o Espírito Santo,
“sentindo a falta que havia aqui de escritores
que procurassem fazer trabalhos de ficção mais profundos e abrangentes sobre a
nossa terra”. Sabemos que essa sua dedicação deu frutos, de que podemos referir
A oferta e o altar (Rio de Janeiro:
GRD, 1964); Fuga de Canaã (Vitória:
FCAA/UFES, 1981); Reino não conquistado (Vitória:
FCAA/UFES, 1984) e o referido Pedra
Menina. Miguel, cuja obra literária
estava em construção quando nos veio a faltar, vinha seguindo a influência de
Renato em verso e prosa. Atestam-no seus Marília
(Vera Cruz) (Vitória: Grafitusa, 1992) e Depois de abril (Vitória: IHGES, 1997), em prosa, e o Pequeno roteiro lírico de Cachoeiro
(Vitória, 1995) e Romanceiro do Rio Pardo
(Vitória: IHGES, 1999), em verso.
A admiração era recíproca; ambos de
fato se reconheciam portadores de interesses comuns, que cultivavam com esmero.
Entre estes, talvez o maior deles, o Espírito Santo. O que refletiu nas produções
respectivas: resenhando o Depois de abril
para o Boletim do IHGES n.º 15,
Mar/abr 1999, Renato enxergava semelhanças entre a Vera Cruz de Miguel (que
define como um enxerto de Itapemirim e Cachoeiro de Itapemirim) e Ponta d’Areia,
que, lembrou-se, criara há quase quarenta anos n’ A oferta e o altar. Em que pese aí certa diferença de
“matéria-prima” de escrita no trato do tema, memória e História, para um,
pitadas de realismo fantástico, para o outro. Já Miguel externou sua admiração
pela obra de Renato fazendo dela seu objeto de estudo na dissertação que
tencionava apresentar ao mestrado em Literatura Brasileira, iniciado em 1995 na
Universidade Federal do Espírito Santo. Infelizmente, História e Ficção em Renato Pacheco (Vitória: Editora Instituto
Histórico, 2000) restou inacabado, como de resto a sua obra literária. A essa verdadeira
“imbricação” de interesses fez menção Geraldo Matos, na introdução àquele que
foi o derradeiro texto científico de Miguel: “falar da obra de Renato Pacheco
era-lhe encontrar consigo mesmo, com sua própria cosmovisão da história”.
Em De que hablo quando hablo de escribir (Buenos Aires: Tusquets,
2017) Haruki Murakami duvida da amizade entre escritores; mais, afirma não
acreditar que uma amizade verdadeira entre pessoas assim (escritores, para ele,
são pessoas egoístas, geralmente orgulhosos e competitivos) possa durar muito
tempo. Felizmente para a cultura do Espírito Santo não foi o que se viu da
convivência dos dois autores, cuja amizade de mais de vinte anos influenciou,
em maior ou menor grau, a obra de ambos nos seus diversos segmentos. A
digressão acima é uma pálida tentativa de iniciação ao tema.
(publicado na Revista da AEL de 2018)