Ao falarmos em “patrimônio” nos vem à cabeça um conjunto de bens. Já ao
falarmos em patrimônio cultural, estamos delimitando o alcance do vocábulo para
fazer compreender que nos referimos a um conjunto de bens culturais. Importa,
então, inicialmente, saber a que nos referimos quando falamos em bens que
designamos como “culturais”, e para tanto necessário nos apoderarmos do
conceito de cultura.
O termo "cultura" tem, entre os significados que assumiu nos
dias de hoje, ao menos dois sentidos diferentes, e de grande importância para
as ciências sociais: o primeiro, que tem origem no termo alemão Kultur, usado, em síntese, para designar
os aspectos “espirituais”, digamos assim, de uma sociedade; o segundo, que tem
origem no termo francês Civilisation,
e se referia principalmente às realizações materiais criadas sob determinados
cânones, universalmente aceitos. Sobre essa distinção, tenhamos em vista que a
Alemanha estava empenhada num processo tardio de unificação, onde a ideia era a
de valorização das aspirações de toda a população que se procurava unir,
enquanto a França já conquistara sua unidade política há muito mais tempo.
O primeiro sentido acima referido de cultura é o que é hoje privilegiado
no Brasil, onde se fala em "saberes", do aluno, saberes de uma
comunidade etc. Mas é óbvio que esses "saberes" não são a mesma coisa
que a cultura que vem do processo de civilização, no sentido do conhecimento
obtido ou da obra de arte produzida debaixo de regras - cânones - que são as
mesmas em toda a parte. Regras essas que nos permitem agrupar e classificar
bens culturais - artísticos - em escolas, sejam literárias, sejam pictóricas,
sejam musicais.
Um tal debate sobre o sentido de cultura é bastante amplo e nem de longe
se poderia aprofundá-lo aqui. Mas se, delimitando ainda mais o alcance do que
nos interessa neste texto, nos dispusermos a falar de cultura produzida no
Espírito Santo, não podemos deixar de referir que a identidade capixaba, expressão
que será melhor definida adiante, começou a moldar-se no século XVI, em Vila
Velha, local do primeiro encontro entre duas culturas – e aqui no sentido de
aspectos espirituais de dois povos que pela primeira vez se avistavam.
De fato, a elaboração mental que permitiu ao Brasil ultrapassar uma fase
de baixa autoestima, repleta de vaticínios pessimistas sobre o caráter do
brasileiro por conta da miscigenação (recordemos Gobineau; elaboração cujos
ecos se viam, por exemplo, em Monteiro Lobato ainda na década de 20), e daí,
dessa baixa autoestima, passar a verdadeiro ufanismo pela valorização quase que
acrítica do chamado antropofagismo, desaguou no pensamento de Gilberto Freire,
que apontou nessa mesma miscigenação não uma desvantagem, mas uma vantagem do
caráter nacional; seria, mesmo, o que permitia ao brasileiro adaptar-se tão bem
às exigências e vicissitudes. E, apontou Freire, algo que hoje é óbvio, essa
miscigenação de raças misturou também as bagagens culturais de que cada uma era
portadora, isto é, os modos de ser de cada um dos povos, e acabou por gerar uma
cultura diferenciada, que é do caráter do brasileiro.
Prosseguindo, é neste sentido que se pode afirmar que Vila Velha é o
berço da cultura capixaba: no que hoje é o estado do Espírito Santo foi primeiramente
aí, repita-se, que duas raças que posteriormente, unidas a uma terceira, deram
origem ao povo brasileiro, se avistaram pela primeira vez. Dizer que uma
subjugou a outra é relativo, à vista dos costumes, dos "saberes" que
ficaram, da própria genética do brasileiro em geral e do capixaba em
particular, com seus fortes traços indígenas, o que é comprovado
cientificamente.
A partir daqui tomemos o termo cultura nas duas acepções possíveis.
Ao conjunto dessas inclinações espirituais (embora muito mais das
realizações materiais), se dá o nome de patrimônio. Ao patrimônio cultural,
digamos assim, do capixaba, é que de maneira corrente designamos por
“identidade” capixaba. Isto é, aquele conjunto de valores e aspirações
espirituais que distinguem a nossa população das populações integrantes de
outros grupos humanos.
No entanto aqui, como se assinalou acima, estão incluídas também o que
chamamos de realizações, no sentido de produção de bens culturais. Portanto, estamos
em que neste sentido é que se deve localizar o debate sobre a Literatura que se
produz no Espírito Santo, e aqui utilizando o termo Literatura no sentido de
produção escrita poética e ficcional.
De fato, independe de demonstração o afirmar-se que a Literatura de um
povo é parte do seu patrimônio. Tanto quanto uma dança típica ou um monumento
arquitetônico, a Literatura produzida no Espírito Santo é parte da sua
elaboração cultural e por isso é de ser preservada, até para que se torne
conhecida. Essa a razão de ser de casas que se preocupam com a preservação do
patrimônio cultural, como os Institutos Históricos e Geográficos e as Academias
de Letras. Estas últimas, especialmente voltadas à produção literária, são
parte essencial na preservação de parcela significativa do patrimônio cultural,
na medida que não deixam perecer a memória de autores e de obras que são
relevantes em cada época.
A Academia Espírito-santense de Letras, acercando-se do centenário de
fundação, é, neste sentido, guardiã de um patrimônio inestimável – aqui, não
propriamente no que pertine à qualidade dos autores acadêmicos e das suas obras
– mas no sentido de não deixar sucumbir uma produção que, de outra maneira,
poucas chances teria de ser lembrada. Quanto dessa produção não reflete, em
maior ou menor grau, o que acima referimos como patrimônio cultural do povo
espírito-santense? Quanto não se pode apreender, por exemplo, d’A oferta e o altar (Renato Pacheco), ou
de Karina (Virgínia Tamanini), ou do Cotaxé (Adilson Vilaça), a respeito das
comunidades em que os autores localizaram as tramas respectivas?
A propósito, todos os três autores citados acima são acadêmicos. O que
não significa que obras como Avenida
República (Laci Ribeiro), ou O sol no
céu da boca (Fernando Tatagiba), ou Blissfull
Agony (Amilton de Almeida), estes últimos autores não integrantes da nossa
Casa maior de letras, não se revistam, da mesma forma, de importância para o
leitor que tenha interesse em desvendar a “alma” espírito-santense.
Por isto é que, retornando às casas de cultura referidas acima, à
preocupação de preservação da memória do Espírito Santo e dos
espírito-santenses que norteia as atividades desenvolvidas no Instituto
Histórico e Geográfico do Espírito Santo soma-se aquele propósito de atuação da
Academia Espírito-santense de Letras, de preservação do patrimônio literário,
aqui – ou sobre nós -, produzido. Afinal, a atividade de produção literária,
num sentido amplo, é o aperfeiçoamento no tempo da antiga atividade dos
recitadores e contadores de histórias, os responsáveis, perante suas
comunidades, por não deixar perecer a memória do “que eram” essas comunidades.
Ou seja, por revolver memórias para dar a conhecer aquela faceta quase que
instintiva do seu patrimônio cultural.
Em suma, falar em Literatura produzida no
Espírito Santo é falar de parcela considerável do patrimônio cultural local.
Seria desejável que, em assim sendo, as iniciativas das casas de cultura locais
pudessem ser mais respaldadas por políticas públicas afinadas com o propósito
de divulgação desse patrimônio, possibilitando à população reconhecer-se nele
para passar a estimá-lo como mais uma fonte de conhecimento do seu modo de ser.