20 de outubro de 2018

Literatura como patrimônio cultural



Ao falarmos em “patrimônio” nos vem à cabeça um conjunto de bens. Já ao falarmos em patrimônio cultural, estamos delimitando o alcance do vocábulo para fazer compreender que nos referimos a um conjunto de bens culturais. Importa, então, inicialmente, saber a que nos referimos quando falamos em bens que designamos como “culturais”, e para tanto necessário nos apoderarmos do conceito de cultura.  

O termo "cultura" tem, entre os significados que assumiu nos dias de hoje, ao menos dois sentidos diferentes, e de grande importância para as ciências sociais: o primeiro, que tem origem no termo alemão Kultur, usado, em síntese, para designar os aspectos “espirituais”, digamos assim, de uma sociedade; o segundo, que tem origem no termo francês Civilisation, e se referia principalmente às realizações materiais criadas sob determinados cânones, universalmente aceitos. Sobre essa distinção, tenhamos em vista que a Alemanha estava empenhada num processo tardio de unificação, onde a ideia era a de valorização das aspirações de toda a população que se procurava unir, enquanto a França já conquistara sua unidade política há muito mais tempo.

O primeiro sentido acima referido de cultura é o que é hoje privilegiado no Brasil, onde se fala em "saberes", do aluno, saberes de uma comunidade etc. Mas é óbvio que esses "saberes" não são a mesma coisa que a cultura que vem do processo de civilização, no sentido do conhecimento obtido ou da obra de arte produzida debaixo de regras - cânones - que são as mesmas em toda a parte. Regras essas que nos permitem agrupar e classificar bens culturais - artísticos - em escolas, sejam literárias, sejam pictóricas, sejam musicais.

Um tal debate sobre o sentido de cultura é bastante amplo e nem de longe se poderia aprofundá-lo aqui. Mas se, delimitando ainda mais o alcance do que nos interessa neste texto, nos dispusermos a falar de cultura produzida no Espírito Santo, não podemos deixar de referir que a identidade capixaba, expressão que será melhor definida adiante, começou a moldar-se no século XVI, em Vila Velha, local do primeiro encontro entre duas culturas – e aqui no sentido de aspectos espirituais de dois povos que pela primeira vez se avistavam.

De fato, a elaboração mental que permitiu ao Brasil ultrapassar uma fase de baixa autoestima, repleta de vaticínios pessimistas sobre o caráter do brasileiro por conta da miscigenação (recordemos Gobineau; elaboração cujos ecos se viam, por exemplo, em Monteiro Lobato ainda na década de 20), e daí, dessa baixa autoestima, passar a verdadeiro ufanismo pela valorização quase que acrítica do chamado antropofagismo, desaguou no pensamento de Gilberto Freire, que apontou nessa mesma miscigenação não uma desvantagem, mas uma vantagem do caráter nacional; seria, mesmo, o que permitia ao brasileiro adaptar-se tão bem às exigências e vicissitudes. E, apontou Freire, algo que hoje é óbvio, essa miscigenação de raças misturou também as bagagens culturais de que cada uma era portadora, isto é, os modos de ser de cada um dos povos, e acabou por gerar uma cultura diferenciada, que é do caráter do brasileiro.

Prosseguindo, é neste sentido que se pode afirmar que Vila Velha é o berço da cultura capixaba: no que hoje é o estado do Espírito Santo foi primeiramente aí, repita-se, que duas raças que posteriormente, unidas a uma terceira, deram origem ao povo brasileiro, se avistaram pela primeira vez. Dizer que uma subjugou a outra é relativo, à vista dos costumes, dos "saberes" que ficaram, da própria genética do brasileiro em geral e do capixaba em particular, com seus fortes traços indígenas, o que é comprovado cientificamente.

A partir daqui tomemos o termo cultura nas duas acepções possíveis.

Ao conjunto dessas inclinações espirituais (embora muito mais das realizações materiais), se dá o nome de patrimônio. Ao patrimônio cultural, digamos assim, do capixaba, é que de maneira corrente designamos por “identidade” capixaba. Isto é, aquele conjunto de valores e aspirações espirituais que distinguem a nossa população das populações integrantes de outros grupos humanos.

No entanto aqui, como se assinalou acima, estão incluídas também o que chamamos de realizações, no sentido de produção de bens culturais. Portanto, estamos em que neste sentido é que se deve localizar o debate sobre a Literatura que se produz no Espírito Santo, e aqui utilizando o termo Literatura no sentido de produção escrita poética e ficcional.

De fato, independe de demonstração o afirmar-se que a Literatura de um povo é parte do seu patrimônio. Tanto quanto uma dança típica ou um monumento arquitetônico, a Literatura produzida no Espírito Santo é parte da sua elaboração cultural e por isso é de ser preservada, até para que se torne conhecida. Essa a razão de ser de casas que se preocupam com a preservação do patrimônio cultural, como os Institutos Históricos e Geográficos e as Academias de Letras. Estas últimas, especialmente voltadas à produção literária, são parte essencial na preservação de parcela significativa do patrimônio cultural, na medida que não deixam perecer a memória de autores e de obras que são relevantes em cada época.

A Academia Espírito-santense de Letras, acercando-se do centenário de fundação, é, neste sentido, guardiã de um patrimônio inestimável – aqui, não propriamente no que pertine à qualidade dos autores acadêmicos e das suas obras – mas no sentido de não deixar sucumbir uma produção que, de outra maneira, poucas chances teria de ser lembrada. Quanto dessa produção não reflete, em maior ou menor grau, o que acima referimos como patrimônio cultural do povo espírito-santense? Quanto não se pode apreender, por exemplo, d’A oferta e o altar (Renato Pacheco), ou de Karina (Virgínia Tamanini), ou do Cotaxé (Adilson Vilaça), a respeito das comunidades em que os autores localizaram as tramas respectivas?

A propósito, todos os três autores citados acima são acadêmicos. O que não significa que obras como Avenida República (Laci Ribeiro), ou O sol no céu da boca (Fernando Tatagiba), ou Blissfull Agony (Amilton de Almeida), estes últimos autores não integrantes da nossa Casa maior de letras, não se revistam, da mesma forma, de importância para o leitor que tenha interesse em desvendar a “alma” espírito-santense.

Por isto é que, retornando às casas de cultura referidas acima, à preocupação de preservação da memória do Espírito Santo e dos espírito-santenses que norteia as atividades desenvolvidas no Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo soma-se aquele propósito de atuação da Academia Espírito-santense de Letras, de preservação do patrimônio literário, aqui – ou sobre nós -, produzido. Afinal, a atividade de produção literária, num sentido amplo, é o aperfeiçoamento no tempo da antiga atividade dos recitadores e contadores de histórias, os responsáveis, perante suas comunidades, por não deixar perecer a memória do “que eram” essas comunidades. Ou seja, por revolver memórias para dar a conhecer aquela faceta quase que instintiva do seu patrimônio cultural.

Em suma, falar em Literatura produzida no Espírito Santo é falar de parcela considerável do patrimônio cultural local. Seria desejável que, em assim sendo, as iniciativas das casas de cultura locais pudessem ser mais respaldadas por políticas públicas afinadas com o propósito de divulgação desse patrimônio, possibilitando à população reconhecer-se nele para passar a estimá-lo como mais uma fonte de conhecimento do seu modo de ser.