14 de setembro de 2018

Crime militar x crime comum: anotações sobre o apenamento


     1.  A individualização da pena:
O princípio constitucional de individualização da pena é garantia do cidadão, em geral, e do apenado, em particular, contra qualquer possível arbítrio no desempenho de atividade que tem por escopo a atribuição de sanção penal ao réu em processo criminal.
Inscrito no inciso XLVI do art. 5.º da Constituição Federal (a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: ...) perfaz-se em três fases, ou momentos, distintos: 1) a opção legislativa pela espécie de pena aplicável e o intervalo temporal, no caso de penas privativas de liberdade; 2) a atividade de aplicação da pena pelo juízo sentenciante, mediante observação de técnica legalmente estabelecida; 3) a execução da pena e fiscalização de seu cumprimento mediante observância das condições pessoais do apenado.
Todas as três etapas em que se desdobra referido princípio constitucional são passíveis de fiscalização e controle, que se há de exercer da maneira adequada à vista da própria Constituição Federal e legislação pertinente.
Ao legislador, na opção pela espécie e intervalo temporal de apenamento, exige-se se mantenha nos limites da proporcionalidade, princípio que deve permear o desempenho de toda a atividade de caráter público com base na Constituição Federal, como vem a ser o processo legislativo. Desdobra-se a proporcionalidade, especificamente nessa seara, nos imperativos de proibição de proteção insuficiente e proibição de excesso, ambas as situações encontrando fundamento principiológico na necessidade de garantia dos direitos fundamentais.  Ou seja, a opção legislativa quando da atividade de seleção e quantificação do intervalo de pena atribuível no preceito secundário do tipo penal encontra-se balizada por esses dois extremos, inerentes à noção de proporcionalidade e incidentes pelo fato mesmo da adoção, pela Constituição Federal, do aludido princípio.
Neste sentido lecionou o E. Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 104410/RS, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, quando se discutia a criminalização do porte de arma de fogo e sua instituição normativa como delito formal.
No entanto, o de que nos pretendemos ocupar mais de perto é justamente da atividade de aplicação da pena ao acusado pelo magistrado sentenciante, atividade essa estritamente regrada, para atendimento do que dispõe o já referido inciso XLVI do art. 5.º da Constituição Federal.

2.      A atividade de aplicação da pena: 
Para aplicação da pena ao acusado deve o julgador observar o art. 387 do Código de Processo Penal, que lhe impõe inicialmente elencar as circunstâncias atenuantes e agravantes reconhecidas no corpo da decisão e a seguir pautar-se pelos critérios estabelecidos nos arts. 59 e 60 do Código Penal.
Na seara militar, o art. 440 estipula igualmente ao órgão julgador o procedimento a ser adotado, impondo-lhe que, prolatando sentença condenatória, mencione “as circunstâncias apuradas e tudo o mais que deva ser levado em conta na fixação da pena, tendo em vista obrigatoriamente o disposto no art. 69 e seus parágrafos do Código Penal Militar”, sendo certo não haver no diploma castrense dispositivo equivalente ao art. 60 do Código de Processo Penal, eis que a pena de multa não está prevista no art. 55 do Código Penal Militar.
Uma vez que em ambos os códigos penais vigentes no Brasil, o comum e o militar, estão previstas penas privativas de liberdade, e uma vez que o Código Penal Militar tipifica condutas não exclusivamente passíveis de serem praticadas por militares no exercício da função (crimes militares impróprios), é interessante investigar se ambos os diplomas (por seus dispositivos respectivos) estabelecem critérios de análise semelhantes – ou, em última hipótese, que permitam chegar a conclusão semelhante - no caso de um mesmo delito praticado por um cidadão comum e um militar em serviço.
Registre-se que não se ignora toda a construção teórica referente aos delitos funcionais, o maior grau de exigência sobre a conduta do agente público no desempenho de suas funções legais e outras considerações de cunho propriamente penal e até administrativo; no entanto, de se recordar que “o fato de o policial não estar em serviço não significa liberdade para praticar atos contrários à ética, aos valores militares e ao bom nome da Corporação”, como decidido pelo Tribunal de Justiça do Espírito Santo, no julgamento da Apelação Cível n.º 024050264803, relator o desembargador Samuel Meira Brasil Júnior. Ou seja, o seu proceder, o norte ético de seu comportamento como um todo, não depende do fato de estar ou não em serviço.

3.      A primeira fase da atividade de aplicação da pena – a análise das circunstâncias judiciais:
Como se sabe, a individualização da pena, pelo cálculo do quantum aplicável, é operação que se desdobra em três fases, sendo a primeira a fixação da pena-base. A propósito, dispõe o art. 77 do Código Penal Militar: “A pena que tenha de ser aumentada ou diminuída, de quantidade fixa ou dentro de determinados limites, é a que o juiz aplicaria, se não existisse a circunstância ou causa que importa o aumento ou diminuição”.
Ora, estando a operação de cálculo da pena-base condicionada à análise das circunstâncias judicias elencadas nos dispositivos respectivos (art. 59 do Código Penal, art. 69 do Código Penal Militar), é útil proceder-se a uma comparação entre ambos, listando e tentando, ainda que brevemente, estabelecer uma correlação entre cada uma das tais circunstâncias judicias.
Dispõe o caput do art. 59 do Código Penal:
O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:
E o art. 69 do Código Penal Militar:
Para fixação da pena privativa de liberdade, o juiz aprecia a gravidade do crime praticado e a personalidade do réu, devendo ter em conta a intensidade do dolo ou grau da culpa, a maior ou menor extensão do dano ou perigo de dano, os meios empregados, o modo de execução, os motivos determinantes, as circunstâncias de tempo e lugar, os antecedentes do réu e sua atitude de insensibilidade, indiferença ou arrependimento após o crime.
É fato que, ao se cogitar do apenamento, interessa-nos a pessoa do agente e a conduta por ele praticada. Quanto àquele, deverá ter apreendidas pelo julgador, o máximo que lhe permitam as informações dos autos, as suas características pessoais. Já com relação à conduta, interessam as circunstâncias adjacentes à prática do ato incriminado. Não por outro motivo é que em comentário ao dispositivo do Código castrense, lembra ROSSETO que a exegese da norma revela haver, na verdade, duas circunstâncias judiciais a serem sopesadas, a gravidade do delito e a personalidade do réu (Código Penal Militar Comentado. São Paulo: RT. 2012, p.338). Depreende-se da redação do dispositivo que as demais circunstâncias servem como critérios mediante cujo exame se pode mensurar devidamente as duas, que servem de balizamento direto para a fixação do quantum da pena. 
Com relação às circunstâncias que dizem respeito à gravidade do crime, no Código Penal Militar temos a maior ou menor extensão do dano ou perigo de dano, os meios empregados, o modo de execução, os motivos determinantes e as circunstâncias de tempo e lugar, todos critérios de caráter objetivo. No que diz respeito à personalidade do réu, a intensidade do dolo ou grau da culpa, os antecedentes e sua atitude de insensibilidade, indiferença ou arrependimento após o crime.  
Já com relação ao dispositivo da codificação comum, vêm em primeiro lugar as circunstâncias que dizem respeito ao agente, sendo elas a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade; em seguida, as que dizem respeito ao crime praticado: os motivos, as circunstâncias e consequências do crime e o comportamento da vítima.
Ora, com relação ao crime praticado, os motivos que determinam a atuação do agente trata-se de parâmetro comum a ambos os dispositivos; as circunstâncias em que a conduta é praticada, assim enunciada na codificação comum, desdobra-se na castrense em “meios empregados e modo de execução” e “circunstâncias de tempo e lugar” (indiferentes por si sós no caso do agente não militar); já as consequências do crime, assim enunciado na codificação comum, encontram na castrense uma explanação a modo de critério objetivo de mensuração, que é “a maior ou menor extensão do dano ou perigo de dano”.
A codificação comum lista também a circunstância do comportamento da vítima, que não está expressa no dispositivo castrense. Essa circunstância deve ser, no entanto, muitas vezes analisada como neutra, por conta de outras a serem consideradas nas fases subsequentes da operação de quantificação da sanção, sejam circunstâncias atenuantes e agravantes, sejam causas de diminuição e aumento de pena. Daí se pode concluir que a circunstância dos motivos do art. 69 do Código Penal Militar deve ser analisada de modo a englobar, também, o comportamento da vítima anterior à prática da conduta incriminada, quando e se for o caso. 
Com relação à personalidade do agente, a circunstância referente aos antecedentes é comum a ambas as codificações, resolvendo-se de maneira objetiva: constam ou não antecedentes, levando-se em consideração decisões judiciais trânsitas em julgado. Já a pesquisa da conduta social do agente, que importa no caso do apenado na Justiça comum, não é critério preponderante no caso do militar, cujo comportamento global deve ser, à partida, aceitável pelos critérios internos da Administração Militar - pena de, até mesmo, seu desligamento. A culpabilidade, critério expresso na codificação comum, tem sua contrapartida na “intensidade do dolo ou grau da culpa” da legislação castrense, não sendo possível, por razões de espaço, aprofundar o exame do ponto específico nesta sede.  
Da leitura superficial de ambos os dispositivos poder-se-ia concluir que a codificação comum estipula critérios mais vagos para a apreciação do ato delituoso em si, permitindo ao julgador comum uma maior margem de discricionariedade no exaurimento da primeira fase da aplicação da pena. No entanto, hodiernamente o controle da atividade de fixação da pena pelo primeiro grau é matéria conhecida de ofício pelos Tribunais. Sobretudo, exige-se (o que já resta pacificado na jurisprudência) a análise das circunstâncias judiciais utilizando-se de justificativas concretas extraídas dos autos, vedada a utilização de termos vagos e genéricos ou inerentes ao próprio tipo penal. Ademais, não há valores numéricos predeterminados a cada circunstância judicial, não se tratando a quantificação do intervalo de pena na primeira fase de atividade matemática.     
Anote-se, por último, que a menção a personalidade do agente no dispositivo da codificação comum carece de maiores parâmetros que orientem a análise da circunstância. Sendo assim, desenvolveu-se a tese de que o tópico admitiria a consideração de teorias de cunho psicológico, e por este motivo o julgador careceria de maiores conhecimentos teóricos para mensurá-la negativamente. Tendo em conta o princípio de hermenêutica segundo o qual a lei não traz palavras inúteis, estamos em que o vocábulo não foi usado aí na sua acepção estritamente científica, ou seja, não se exigem conhecimentos científicos profundos na área psicológica para a análise da circunstância. Em sendo assim, a fixação de critério (s) objetivo (s) para análise e mensuração da circunstância, a exemplo da atitude de insensibilidade, indiferença ou arrependimento após o crime, serviria para minimizar os debates quanto a este ponto.

4.      Conclusão:
A atividade de aplicação da pena desdobra-se em outras duas fases, balizadas pelos dispositivos legais dos Códigos respectivos, e que não foi intenção aqui abordar. Importa, sobretudo, que, à luz do princípio da publicidade, possam o destinatário da decisão, em primeiro lugar, e eventualmente o público em geral, igualmente percorrer o trajeto percorrido pelo julgador na fixação do quantum de reprimenda.
À discricionariedade regrada de que dispõe o julgador se debitam eventuais discordâncias das partes com o resultado da análise das circunstâncias judiciais. Como referido, não existem índices preestabelecidos para mensurar cada circunstância judicial; deve o julgador mover-se balizado pelos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, que permeiam a atividade judicante em geral.
O que se constata hoje em dia no segundo grau é um índice elevado de questionamento da análise das circunstâncias judiciais, todas as vezes que a pena base se afasta do mínimo legal estabelecido no preceito secundário do tipo. Ademais, em se tratando de matéria de ordem pública, o exame da metrificação da pena-base tem sido efetuado de ofício pelas instâncias recursais.
Partindo do fato de que um militar pode ser apenado com base em duas codificações distintas, o exame dos dispositivos penais respectivos não demonstra discrepâncias capazes de conduzir a resultados díspares durante a primeira fase da aplicação da reprimenda. Na consecução do resultado mais próximo possível da isonomia no caso de condutas idênticas previstas nos dois códigos penais, estamos em que a atenção se deve concentrar na atividade do legislador, de molde a exigir-se isonomia também na determinação do preceito secundário do tipo penal, independente de se tratar ou não de crime militar.                    

(publicado na Revista Direito Militar n.º 126, set/dez 2017)