1. A individualização da pena:
O princípio constitucional de individualização da pena
é garantia do cidadão, em geral, e do apenado, em particular, contra qualquer
possível arbítrio no desempenho de atividade que tem por escopo a atribuição de
sanção penal ao réu em processo criminal.
Inscrito no inciso XLVI do art. 5.º da Constituição Federal (a lei regulará a
individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: ...) perfaz-se
em três fases, ou momentos, distintos: 1) a opção legislativa pela espécie de
pena aplicável e o intervalo temporal, no caso de penas privativas de
liberdade; 2) a atividade de aplicação da pena pelo juízo sentenciante,
mediante observação de técnica legalmente estabelecida; 3) a execução da pena e
fiscalização de seu cumprimento mediante observância das condições pessoais do
apenado.
Todas as três
etapas em que se desdobra referido princípio constitucional são passíveis de
fiscalização e controle, que se há de exercer da maneira adequada à vista da
própria Constituição Federal e legislação pertinente.
Ao legislador, na
opção pela espécie e intervalo temporal de apenamento, exige-se se mantenha nos
limites da proporcionalidade, princípio que deve permear o desempenho de toda a
atividade de caráter público com base na Constituição Federal, como vem a ser o
processo legislativo. Desdobra-se a proporcionalidade, especificamente nessa
seara, nos imperativos de proibição de proteção insuficiente e proibição de
excesso, ambas as situações encontrando fundamento principiológico na
necessidade de garantia dos direitos fundamentais. Ou seja, a opção legislativa quando da
atividade de seleção e quantificação do intervalo de pena atribuível no
preceito secundário do tipo penal encontra-se balizada por esses dois extremos,
inerentes à noção de proporcionalidade e incidentes pelo fato mesmo da adoção,
pela Constituição Federal, do aludido princípio.
Neste sentido
lecionou o E. Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 104410/RS, de
relatoria do Ministro Gilmar Mendes, quando se discutia a criminalização do
porte de arma de fogo e sua instituição normativa como delito formal.
No entanto, o de
que nos pretendemos ocupar mais de perto é justamente da atividade de aplicação
da pena ao acusado pelo magistrado sentenciante, atividade essa estritamente
regrada, para atendimento do que dispõe o já referido inciso XLVI do art. 5.º
da Constituição Federal.
2.
A atividade de aplicação da
pena:
Para aplicação da
pena ao acusado deve o julgador observar o art. 387 do Código de Processo
Penal, que lhe impõe inicialmente elencar as circunstâncias atenuantes e
agravantes reconhecidas no corpo da decisão e a seguir pautar-se pelos
critérios estabelecidos nos arts. 59 e 60 do Código Penal.
Na seara militar,
o art. 440 estipula igualmente ao órgão julgador o procedimento a ser adotado, impondo-lhe que, prolatando sentença condenatória, mencione “as circunstâncias apuradas e tudo o mais que
deva ser levado em conta na fixação da pena, tendo em vista obrigatoriamente o
disposto no art. 69 e seus parágrafos do Código Penal Militar”, sendo certo não
haver no diploma castrense dispositivo equivalente ao art. 60 do Código de
Processo Penal, eis que a pena de multa não está prevista no art. 55 do Código
Penal Militar.
Uma vez que em ambos os códigos penais vigentes no
Brasil, o comum e o militar, estão previstas penas privativas de liberdade, e
uma vez que o Código Penal Militar tipifica condutas não exclusivamente
passíveis de serem praticadas por militares no exercício da função (crimes
militares impróprios), é interessante investigar se ambos os diplomas (por seus
dispositivos respectivos) estabelecem
critérios de análise semelhantes – ou, em última hipótese, que permitam chegar
a conclusão semelhante - no caso de um mesmo delito praticado por um cidadão
comum e um militar em serviço.
Registre-se que
não se ignora toda a construção teórica referente aos delitos funcionais, o
maior grau de exigência sobre a conduta do agente público no desempenho de suas
funções legais e outras considerações de cunho propriamente penal e até
administrativo; no entanto, de se recordar que “o fato de o policial não estar
em serviço não significa liberdade para praticar atos contrários à ética, aos
valores militares e ao bom nome da Corporação”, como decidido pelo Tribunal de
Justiça do Espírito Santo, no julgamento da Apelação Cível n.º 024050264803,
relator o desembargador Samuel Meira Brasil Júnior. Ou seja, o seu proceder, o
norte ético de seu comportamento como um todo, não depende do fato de estar ou
não em serviço.
3. A primeira fase
da atividade de aplicação da pena – a análise das circunstâncias judiciais:
Como se sabe, a
individualização da pena, pelo cálculo do quantum aplicável, é operação
que se desdobra em três fases, sendo a primeira a fixação da pena-base. A
propósito, dispõe o art. 77 do
Código Penal Militar: “A pena que tenha de ser aumentada ou diminuída, de
quantidade fixa ou dentro de determinados limites, é a que o juiz aplicaria, se
não existisse a circunstância ou causa que importa o aumento ou diminuição”.
Ora, estando a
operação de cálculo da pena-base condicionada à análise das circunstâncias
judicias elencadas nos dispositivos respectivos (art. 59 do Código Penal, art.
69 do Código Penal Militar), é útil proceder-se a uma comparação entre ambos,
listando e tentando, ainda que brevemente, estabelecer uma correlação entre
cada uma das tais circunstâncias judicias.
Dispõe o caput do
art. 59 do Código Penal:
O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes,
à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos,
às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento
da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para
reprovação e prevenção do crime:
E o
art. 69 do Código Penal Militar:
Para fixação da pena privativa
de liberdade, o juiz aprecia a gravidade do crime praticado e a personalidade
do réu, devendo ter em conta a intensidade do dolo ou grau da culpa,
a maior ou menor extensão do dano ou perigo de dano, os meios
empregados, o modo de execução, os motivos determinantes, as circunstâncias
de tempo e lugar, os antecedentes do réu e sua atitude de
insensibilidade, indiferença ou arrependimento após o crime.
É fato que, ao se cogitar do apenamento, interessa-nos
a pessoa do agente e a conduta por ele praticada. Quanto àquele, deverá ter
apreendidas pelo julgador, o máximo que lhe permitam as informações dos autos,
as suas características pessoais. Já com relação à conduta, interessam as
circunstâncias adjacentes à prática do ato incriminado. Não por outro motivo é
que em comentário ao dispositivo do Código castrense, lembra ROSSETO que a
exegese da norma revela haver, na verdade, duas circunstâncias judiciais a
serem sopesadas, a gravidade do delito e a personalidade do réu (Código
Penal Militar Comentado. São Paulo: RT. 2012, p.338). Depreende-se da
redação do dispositivo que as demais circunstâncias servem como critérios
mediante cujo exame se pode mensurar devidamente as duas, que servem de
balizamento direto para a fixação do quantum da pena.
Com relação às circunstâncias que dizem respeito à gravidade
do crime, no Código Penal Militar temos a maior ou menor extensão do dano
ou perigo de dano, os meios empregados, o modo de execução, os motivos
determinantes e as circunstâncias de tempo e lugar, todos critérios de caráter
objetivo. No que diz respeito à personalidade do réu, a intensidade do dolo
ou grau da culpa, os antecedentes e sua atitude de insensibilidade, indiferença
ou arrependimento após o crime.
Já com relação ao dispositivo da codificação comum,
vêm em primeiro lugar as circunstâncias que dizem respeito ao agente,
sendo elas a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a
personalidade; em seguida, as que dizem respeito ao crime praticado: os
motivos, as circunstâncias e consequências do crime e o comportamento da
vítima.
Ora, com relação ao crime praticado, os motivos
que determinam a atuação do agente trata-se de parâmetro comum a ambos os
dispositivos; as circunstâncias em que a conduta é praticada, assim
enunciada na codificação comum, desdobra-se na castrense em “meios empregados e
modo de execução” e “circunstâncias de tempo e lugar” (indiferentes por si sós
no caso do agente não militar); já as consequências do crime, assim
enunciado na codificação comum, encontram na castrense uma explanação a modo de
critério objetivo de mensuração, que é “a maior ou menor extensão do dano ou
perigo de dano”.
A codificação comum lista também a circunstância do comportamento
da vítima, que não está expressa no dispositivo castrense. Essa
circunstância deve ser, no entanto, muitas vezes analisada como neutra, por
conta de outras a serem consideradas nas fases subsequentes da operação de
quantificação da sanção, sejam circunstâncias atenuantes e agravantes, sejam
causas de diminuição e aumento de pena. Daí se pode concluir que a
circunstância dos motivos do art. 69 do Código Penal Militar deve ser
analisada de modo a englobar, também, o comportamento da vítima anterior à
prática da conduta incriminada, quando e se for o caso.
Com relação à personalidade do agente, a circunstância
referente aos antecedentes é comum a ambas as codificações,
resolvendo-se de maneira objetiva: constam ou não antecedentes, levando-se em
consideração decisões judiciais trânsitas em julgado. Já a pesquisa da conduta
social do agente, que importa no caso do apenado na Justiça comum, não é
critério preponderante no caso do militar, cujo comportamento global deve ser,
à partida, aceitável pelos critérios internos da Administração Militar - pena
de, até mesmo, seu desligamento. A culpabilidade, critério expresso na
codificação comum, tem sua contrapartida na “intensidade do dolo ou grau da
culpa” da legislação castrense, não sendo possível, por razões de espaço,
aprofundar o exame do ponto específico nesta sede.
Da leitura superficial de ambos os dispositivos
poder-se-ia concluir que a codificação comum estipula critérios mais vagos para
a apreciação do ato delituoso em si, permitindo ao julgador comum uma maior
margem de discricionariedade no exaurimento da primeira fase da aplicação da
pena. No entanto, hodiernamente o controle da atividade de fixação da pena pelo
primeiro grau é matéria conhecida de ofício pelos Tribunais. Sobretudo,
exige-se (o que já resta pacificado na jurisprudência) a análise das
circunstâncias judiciais utilizando-se de justificativas concretas extraídas
dos autos, vedada a utilização de termos vagos e genéricos ou inerentes ao
próprio tipo penal. Ademais, não há valores numéricos predeterminados a cada
circunstância judicial, não se tratando a quantificação do intervalo de pena na
primeira fase de atividade matemática.
Anote-se, por último, que a menção a personalidade
do agente no dispositivo da codificação comum carece de maiores parâmetros que
orientem a análise da circunstância. Sendo assim, desenvolveu-se a tese de que
o tópico admitiria a consideração de teorias de cunho psicológico, e por este
motivo o julgador careceria de maiores conhecimentos teóricos para mensurá-la
negativamente. Tendo em conta o princípio de hermenêutica segundo o qual a lei
não traz palavras inúteis, estamos em que o vocábulo não foi usado aí na sua
acepção estritamente científica, ou seja, não se exigem conhecimentos
científicos profundos na área psicológica para a análise da circunstância. Em
sendo assim, a fixação de critério (s) objetivo (s) para análise e mensuração
da circunstância, a exemplo da atitude de insensibilidade, indiferença ou
arrependimento após o crime,
serviria para minimizar os debates quanto a este ponto.
4.
Conclusão:
A atividade de aplicação da pena desdobra-se em outras
duas fases, balizadas pelos dispositivos legais dos Códigos respectivos, e que
não foi intenção aqui abordar. Importa, sobretudo, que, à luz do princípio da
publicidade, possam o destinatário da decisão, em primeiro lugar, e
eventualmente o público em geral, igualmente percorrer o trajeto percorrido pelo
julgador na fixação do quantum de reprimenda.
À discricionariedade regrada de que dispõe o julgador
se debitam eventuais discordâncias das partes com o resultado da análise das
circunstâncias judiciais. Como referido, não existem índices preestabelecidos
para mensurar cada circunstância judicial; deve o julgador mover-se balizado
pelos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, que permeiam a atividade
judicante em geral.
O que se constata hoje em dia no segundo grau é um
índice elevado de questionamento da análise das circunstâncias judiciais, todas
as vezes que a pena base se afasta do mínimo legal estabelecido no preceito
secundário do tipo. Ademais, em se tratando de matéria de ordem pública, o
exame da metrificação da pena-base tem sido efetuado de ofício pelas instâncias
recursais.
Partindo do fato de que um militar pode ser apenado
com base em duas codificações distintas, o exame dos dispositivos penais
respectivos não demonstra discrepâncias capazes de conduzir a resultados
díspares durante a primeira fase da aplicação da reprimenda. Na consecução do
resultado mais próximo possível da isonomia no caso de condutas idênticas
previstas nos dois códigos penais, estamos em que a atenção se deve concentrar
na atividade do legislador, de molde a exigir-se isonomia também na
determinação do preceito secundário do tipo penal, independente de se tratar ou
não de crime militar.
(publicado na Revista Direito Militar n.º 126, set/dez 2017)