Cachoeiro
de Itapemirim. Vem-se e aqui chegando vai-se até a Beira-rio. O rio é o
referencial da cidade. É certo que, na maior parte do ano, percebem-se mais os
cachoeiros formados pelas pedras afloradas do que se percebe o próprio
Itapemirim – o que justifica permanentemente o nome da cidade. Aliás, hoje a
única “cidade do cachoeiro” do Espírito Santo, já que a vetusta Santa
Leopoldina – antiga Cidade do Cachoeiro de Santa Leopoldina – ninguém mais a
conhece por esse nome.
Deixemos
de lado o calor – as formações rochosas do entorno só fazem amplificá-lo.
Esqueçamos essa característica quase que intrínseca atribuída pelo forasteiro à
cidade. Há mais, muito mais, para se ver e sentir aqui.
Levando
mais longe o paralelo entre as duas cidades capixabas, Cachoeiro herdou de
Santa Leopoldina não só o primeiro nome, mas também a pujança econômica e a
inquietação cultural. Quase como se o fenecer de uma testemunhasse o
desabrochar da outra, naquela lógica própria dos ciclos históricos que não se pode
explicar. Ou se explica sim, mas à custa de hipóteses sociológicas e modelos
econômicos que não vêm ao caso.
Mas
então estava eu à beira-rio, a olhar a passagem do Itapemirim, e me lembrei de
um ilustre filho de Cachoeiro, Miguel Depes Tallon. Convivi pouco com Miguel,
que presidia o Instituto Histórico e Geográfico quando me empossei como
associado efetivo: é dele a assinatura que consta no meu diploma. Pois por
encomenda da Academia Espírito-santense de Letras tive a oportunidade de
relembrá-lo, no texto que escrevi para a coleção Roberto Almada, da Prefeitura
da capital. Relendo a obra de Miguel e investigando fatos sobre ele, me lembrei
de ter ouvido da sua boca que, em conversa com amigos, Rubem Braga afirmou que
Cachoeiro de Itapemirim lembrava Florença. Tentei então olhar com os mesmos
olhos: se tivermos em mente rios e pontes, se lembramos o Arno e a Ponte Vecchia,
olhando o Itapemirim e a ponte de ferro, há sim, cronista, certa sensação de
familiaridade.
Rubem
era bairrista como só quem ama seu pedaço de mundo sabe ser. Circunstâncias
outras o levaram para longe, no que teve de ganhar a vida. Mas a sua cidade
nunca saiu dele, e esse é um fato sabido e consabido por todos. Os
cachoeirenses entendem bem por quê.
Aproveitei
a ida a Cachoeiro, em visita à sétima Bienal (feira literária que leva seu
nome), para conhecer a Casa dos Braga, na rua 25 de março (data de emancipação
política do município). Construída em 1910 e comprada em 1913 pelo patriarca da
família, na casa cresceram os irmãos Newton e Rubem Braga. Restaurado em 2017,
o imóvel encontra-se aberto à visitação pública. Tive a sorte de conhecer-lhe
os recantos e saber suas histórias pelas escritoras Claudia Sabadini e Maria
Elvira Tavares Costa, ambas apaixonadas pelas circunstâncias da primeira fase
da vida dos irmãos escritores.
Entramos
e elas mostraram-nos o pé de fruta-pão, que se vê da janela do quarto do casal,
e o pé de saboneteira, nos fundos, um dos tesouros da molecada. Móveis, objetos,
livros da biblioteca particular de Rubem, muitas fotos e duas máquinas de
escrever que foram do escritor. Mostraram-nos um pouco de como vivia a família
naquele início de século, e ficamos (ao menos eu me peguei) tentando perceber
como um tal ambiente pode ter influenciado os escritos de ambos.
Newton,
formado em Direito em Minas Gerais, após a morte do pai retornou a Cachoeiro e
recomendou Rubem, estudante, para seu lugar nos Diários Associados. Ambos “veteranos” colunistas do Correio do Sul, jornal cachoeirense dos
irmãos mais velhos. Newton viveu em Cachoeiro até mudar-se com esposa e filhos
para o Rio de Janeiro. Rubem não mais voltou, a não ser em visita. Newton é o
poeta de Cachoeiro, com direito a busto em praça pública. Rubem, o poeta da
crônica, o lírico da prosa, com direito a renome nacional.
Visitar Cachoeiro embalado nos ares
das crônicas de Rubem Braga é visualizar um tempo que nada tem de cronológico;
é, antes, presenciar o reencontro do homem com seus dias de menino, tudo
passado naquele recanto da imaginação condicionado por impressões vividas e por
anseios entressonhados.
A
cidade de Rubem não é a mesma de Newton: ambas, antes, se complementam. Como
deve ser. O que sei é que essa circunstância, a de embalar a infância de dois
escritores de um tal quilate, haveria de ser um patrimônio inestimável para
qualquer cidade. Para Cachoeiro de Itapemirim, tão investida de um bairrismo
sadio, é patrimônio que a cidade cultiva com zelo, correspondendo em amor e
devotamento o amor que ambos lhe devotaram.