Sempre
que profiro palestras sobre o tema, lembro a todos que juiz de direito não
existe para ser popular, que jamais estaremos bem colocados nos rankings de
aceitação pela opinião pública. Por exemplo, porque em metade dos julgamentos de
ações judiciais há um perdedor. Para esse, o que é vencido na demanda, o juiz,
que anos atrás era burro, hoje em dia é corrupto. Afinal, todos têm certeza de
seu direito, e o retirar de uma parte para reconhece-lo à outra é,
considera-se, uma espécie de afronta. O que é da natureza humana. Mas recordemos
também que tempos atrás alguém sempre dava a última palavra, nem que fosse o
bispo; hoje em dia, mesmo após o trânsito em julgado da decisão judicial, a
parte, e quem lhe patrocina a causa, continuam a “ter razão”.
Já
se notou, com razão, que no tempo de nossos avós a simples ameaça de judicializar
questão era altamente ofensivo; valia a palavra dada, a avença entabulada, o
acordo firmado. De uma certa altura para cá, a população foi influenciada a
“buscar seus direitos”, de tal maneira que, a se dar crédito às campanhas de
esclarecimento, o exercício da cidadania passa obrigatoriamente por se ter
“ação na justiça”.
Certamente
que a Constituição Federal de 1988 propiciou o acesso de todos à condição de
cidadania plena, com a variada gama de direitos que reconheceu à população. O
que é muito bom. Mas em que pese ao fato de tê-los enunciado e delineado, a
implantação desses direitos deve ficar a cargo da legislação
infraconstitucional. E o que acontece em caso de omissão do legislador
infraconstitucional? Ou, no caso de, ainda que implantado por lei, a fruição do
tal direito não seja disponibilizada por quem compete fazê-lo?
Esse
é um dos pontos já diagnosticados sobre a verdadeira explosão de litigância que
assolou o Poder Judiciário desde a edição do atual pacto constitucional. Em
termos jocosos, pode-se dizer que onde Deus provia o Estado brasileiro passou
a prover. E a maior parte das vezes, por intermédio dos Tribunais.
No
entanto, a estrutura pensada para fazer frente à demanda judiciária de antes de
1988 mostrou-se insuficiente para fazer frente à demanda que se foi instalando
a partir de então. Numa de suas revisões a carta constitucional cuidou da
criação de órgão de cúpula do Judiciário que, vendido inicialmente à opinião
pública como servindo para “punir juízes” (os que não conseguem ditar o
indiscutível direito da parte no tempo da própria parte e os que, mesmo ante o
indiscutível direito da parte, concedem-no à outra) mas com função, além de
corregedora, também de orientar, otimizar e fiscalizar os serviços judiciários.
E é por meio de iniciativas visando à otimização do funcionamento e à
padronização de sua atuação que o Poder Judiciário procura adequar-se à
demanda, já que gastos extras encontram limitação na Lei de Responsabilidade
Fiscal.
Vira
e mexe a imprensa repercute estudos que apontam o Poder Judiciário brasileiro
como gastador e ineficiente, comparado com os de outros países. Não é caso de
nos determos sobre o fato de que esse tipo de comparação, sem ter em conta
peculiaridades de cada modelo comparado, leva a distorções no resultado e induz
interpretações errôneas. Pinçando dados e os divulgando, o que fica para o
leigo é o resultado em números absolutos, e estes são de fato grandiosos, como
os de toda a máquina pública no Brasil. Afinal, e com relação ao Judiciário, para
qualquer município no interior de qualquer estado brasileiro o fato de não
contar com fórum é sinal de desprestígio político para suas “lideranças”. Que o
fórum não conte com juiz titular para tocar os trabalhos é menos grave, mas
também incomoda.
Se
no primeiro caso (o fórum), a demanda, como posta pela sociedade, é voltada
para o Executivo, no segundo (o juiz), é voltada para o Judiciário, já que, em
última análise, trata-se de gestão de recursos. E aqui se põe questão prática, em
meio a essa necessidade de melhor gestão de recursos: otimizar recursos da
máquina por meio, por exemplo, de aglutinação de comarcas, ao sabor da fria
lógica dos números absolutos do movimento judiciário, é providência legítima?
Para
os pesquisadores do tema recursos x resultado, sem dúvida que sim; para a
liderança política local não; para a população de um município desmembrado de
outro que passará a ter que se dirigir àquele outro também não; para juízes,
promotores de justiça e defensores púbicos designados para mais de uma comarca
e que enfrentam estrada diariamente entre uma e outra para exercer suas funções,
é no mínimo desgastante. Todas as posições são compreensíveis, mas ao final
permanece a pressão orçamentária.
Fazer
frente a demandas dessa espécie é o desafio aos gestores do Poder Judiciário,
em todos os seus ramos. Não há resposta satisfatória, já que o corte de gastos
puro e simples reflete na eficiência dos serviços, como organizados hoje em dia.
“Reorganizemo-lo”!, é o brado recorrente. Não há dúvida de que é o que se
persegue diariamente, não só nas instâncias de planejamento como nas de
execução dos serviços. Não há dúvida, também, de que não há fórmula mágica para
fazê-lo, ou já se o teria feito. Afinal, as campanhas difamatórias que de
tempos em tempos vêm à público incomodam.
Por
outro lado, continuamos numa fase de amplo, geral e irrestrito direito de
acesso ao Judiciário, o que é bom. Até que a demanda pelo reconhecimento de
direitos seja saciada, teremos, toda a sociedade, de conviver com a realidade,
que felizmente passa também pelos esforços que estão sendo feitos para otimizar
o sistema de justiça brasileiro.
Dentro
dessa realidade, acostumemo-nos, os trabalhadores do Judiciário (mas sem nos
deixarmos anestesiar), com a ira de ao menos uma parcela da população, a parte
vencida numa ação judicial; a indiferença de outra, a vencedora, a quem nada
mais se fez que assegurar direito que “já sabia” possuir; e, ainda, a
animosidade de outra, que nunca tendo necessitado do Poder Judiciário, não
consegue entender porque se gasta tanto com uma estrutura, para estes,
hipertrofiada e supérflua.