13 de dezembro de 2016

O difícil diagnóstico judiciário


Sempre que profiro palestras sobre o tema, lembro a todos que juiz de direito não existe para ser popular, que jamais estaremos bem colocados nos rankings de aceitação pela opinião pública. Por exemplo, porque em metade dos julgamentos de ações judiciais há um perdedor. Para esse, o que é vencido na demanda, o juiz, que anos atrás era burro, hoje em dia é corrupto. Afinal, todos têm certeza de seu direito, e o retirar de uma parte para reconhece-lo à outra é, considera-se, uma espécie de afronta. O que é da natureza humana. Mas recordemos também que tempos atrás alguém sempre dava a última palavra, nem que fosse o bispo; hoje em dia, mesmo após o trânsito em julgado da decisão judicial, a parte, e quem lhe patrocina a causa, continuam a “ter razão”.

Já se notou, com razão, que no tempo de nossos avós a simples ameaça de judicializar questão era altamente ofensivo; valia a palavra dada, a avença entabulada, o acordo firmado. De uma certa altura para cá, a população foi influenciada a “buscar seus direitos”, de tal maneira que, a se dar crédito às campanhas de esclarecimento, o exercício da cidadania passa obrigatoriamente por se ter “ação na justiça”.

Certamente que a Constituição Federal de 1988 propiciou o acesso de todos à condição de cidadania plena, com a variada gama de direitos que reconheceu à população. O que é muito bom. Mas em que pese ao fato de tê-los enunciado e delineado, a implantação desses direitos deve ficar a cargo da legislação infraconstitucional. E o que acontece em caso de omissão do legislador infraconstitucional? Ou, no caso de, ainda que implantado por lei, a fruição do tal direito não seja disponibilizada por quem compete fazê-lo?

Esse é um dos pontos já diagnosticados sobre a verdadeira explosão de litigância que assolou o Poder Judiciário desde a edição do atual pacto constitucional. Em termos jocosos, pode-se dizer que onde Deus provia o Estado brasileiro passou a prover. E a maior parte das vezes, por intermédio dos Tribunais.

No entanto, a estrutura pensada para fazer frente à demanda judiciária de antes de 1988 mostrou-se insuficiente para fazer frente à demanda que se foi instalando a partir de então. Numa de suas revisões a carta constitucional cuidou da criação de órgão de cúpula do Judiciário que, vendido inicialmente à opinião pública como servindo para “punir juízes” (os que não conseguem ditar o indiscutível direito da parte no tempo da própria parte e os que, mesmo ante o indiscutível direito da parte, concedem-no à outra) mas com função, além de corregedora, também de orientar, otimizar e fiscalizar os serviços judiciários. E é por meio de iniciativas visando à otimização do funcionamento e à padronização de sua atuação que o Poder Judiciário procura adequar-se à demanda, já que gastos extras encontram limitação na Lei de Responsabilidade Fiscal.

Vira e mexe a imprensa repercute estudos que apontam o Poder Judiciário brasileiro como gastador e ineficiente, comparado com os de outros países. Não é caso de nos determos sobre o fato de que esse tipo de comparação, sem ter em conta peculiaridades de cada modelo comparado, leva a distorções no resultado e induz interpretações errôneas. Pinçando dados e os divulgando, o que fica para o leigo é o resultado em números absolutos, e estes são de fato grandiosos, como os de toda a máquina pública no Brasil. Afinal, e com relação ao Judiciário, para qualquer município no interior de qualquer estado brasileiro o fato de não contar com fórum é sinal de desprestígio político para suas “lideranças”. Que o fórum não conte com juiz titular para tocar os trabalhos é menos grave, mas também incomoda.

Se no primeiro caso (o fórum), a demanda, como posta pela sociedade, é voltada para o Executivo, no segundo (o juiz), é voltada para o Judiciário, já que, em última análise, trata-se de gestão de recursos. E aqui se põe questão prática, em meio a essa necessidade de melhor gestão de recursos: otimizar recursos da máquina por meio, por exemplo, de aglutinação de comarcas, ao sabor da fria lógica dos números absolutos do movimento judiciário, é providência legítima?

Para os pesquisadores do tema recursos x resultado, sem dúvida que sim; para a liderança política local não; para a população de um município desmembrado de outro que passará a ter que se dirigir àquele outro também não; para juízes, promotores de justiça e defensores púbicos designados para mais de uma comarca e que enfrentam estrada diariamente entre uma e outra para exercer suas funções, é no mínimo desgastante. Todas as posições são compreensíveis, mas ao final permanece a pressão orçamentária.

Fazer frente a demandas dessa espécie é o desafio aos gestores do Poder Judiciário, em todos os seus ramos. Não há resposta satisfatória, já que o corte de gastos puro e simples reflete na eficiência dos serviços, como organizados hoje em dia. “Reorganizemo-lo”!, é o brado recorrente. Não há dúvida de que é o que se persegue diariamente, não só nas instâncias de planejamento como nas de execução dos serviços. Não há dúvida, também, de que não há fórmula mágica para fazê-lo, ou já se o teria feito. Afinal, as campanhas difamatórias que de tempos em tempos vêm à público incomodam.

Por outro lado, continuamos numa fase de amplo, geral e irrestrito direito de acesso ao Judiciário, o que é bom. Até que a demanda pelo reconhecimento de direitos seja saciada, teremos, toda a sociedade, de conviver com a realidade, que felizmente passa também pelos esforços que estão sendo feitos para otimizar o sistema de justiça brasileiro.

Dentro dessa realidade, acostumemo-nos, os trabalhadores do Judiciário (mas sem nos deixarmos anestesiar), com a ira de ao menos uma parcela da população, a parte vencida numa ação judicial; a indiferença de outra, a vencedora, a quem nada mais se fez que assegurar direito que “já sabia” possuir; e, ainda, a animosidade de outra, que nunca tendo necessitado do Poder Judiciário, não consegue entender porque se gasta tanto com uma estrutura, para estes, hipertrofiada e supérflua.