7 de maio de 2022

De antiguidades judicantes

Sabemos que atingimos uma certa antiguidade na atividade a que nos dedicamos quando somos procurados para “prestar depoimento”. A minha primeira vez não deixou de ser um susto, mas logo me acostumei com a ideia e procurei colaborar. Minha interlocutora se tratava de uma repórter da Assessoria de Comunicação do meu Tribunal de Justiça, pelo que me dei conta de que o público para quem falava entenderia o que eu tinha a dizer.

Gravando a conversa no celular, um aperfeiçoamento do gravador digital, a pergunta que me lançou de cara é como eram os tempos do ofício no século passado, isto é, antes dos anos 2000. Ora, pensei eu, tanta gente ingressada na magistratura nos anos 90 ainda em atividade, e por que era eu o escolhido para o tal depoimento? Desconfiei que a barba que ando cultivando e me emoldura de branco o rosto deve contribuir para um ar mais retrô, a critério dela. O fato de eu me mostrar sempre acessível ao pessoal da Comunicação deve ter a ver também, vá lá. 

Mas então pus-me a matutar na pergunta, e a recordar fatos e pessoas que permearam minha trajetória de quase três decênios de trabalho judicante. Jurisdicionados também, que no final das contas casos e casos nos marcam de alguma maneira. Sim, quase três decênios de atividade judicante significam alguma coisa. Principalmente para quem, como minha interlocutora, não os tinha sequer de vida. 

Entretanto a moça me fitava e esperava que eu iniciasse a narrativa. O momento de silêncio, se gastava memória do aparelho, servia para ativar a minha. De fato, eu não cheguei a viver os tempos em que o juiz trazia de casa a minuta de sentença rascunhada à mão, que entregava ao escrivão para que alguém do cartório a datilografasse. Geralmente o próprio escrivão o fazia, já que era a pessoa de confiança dos juízes. Chegávamos ao interior e nos dirigíamos exatamente ao escrivão, o servidor que sabia de todo o serviço na Comarca. Por óbvio, passávamos juízes e promotores, ficavam as lides, os processos (não necessariamente as lides eram todas judicializadas naquele tempo, meios alternativos de solução de litígios eram aplicados, mesmo que não institucionalmente) e a vida da comunidade seguia seu curso.

Recordo-me da minha chegada à Vara militar para assumir a titularidade. Perguntei pelo escrivão, que me foi apontado. Sentado estava, sentado permaneceu. Disse-lhe que estava assumindo a titularidade, e que desejava conhecer as dependências da unidade judiciária. Olhou-me e perguntou meu nome, ao que lhe apresentei a carteira funcional. Conferiu o ato do presidente do Tribunal de Justiça determinando minha remoção, e então levantou-se e enquadrou-se como só um oficial PM “das antigas” é capaz de fazer. Foi o início de uma grande colaboração em matéria de serviço e de uma amizade que se manteve ao longo do tempo.

Deixando de lado a figura imprescindível dos escrivães (hoje chefes de secretaria), o fato é que eu particularmente não cheguei a levar minutas rascunhadas à mão para digitar no cartório: logo depois da posse adquiri um microcomputador, um avançado 386 - que nos meus tempos de curso de Engenharia no Rio de Janeiro eram usados na Faculdade pelos estudantes de mestrado. Nós, graduandos, virávamo-nos para os trabalhos obrigatórios com as perfuradoras de cartões – os cartões que traduziam em linguagem de máquina o nosso programa, e que deveriam ser entregues na ordem correta para inserção no cérebro eletrônico. Que avanço incrível, pensei na época, em menos de 10 anos aquelas maquininhas deixarem os laboratórios dos centros tecnológicos mais avançados para serem usadas ali da mesa do meu escritório! 

Devido à sedução que sobre nós exercem os avanços tecnológicos foi que resolvi levar para a sala de audiências um microcomputador, no intuito de facilitar os trabalhos. E levei um 286, que se prestaria muito bem ao serviço. Opinião que, logo percebi, não era partilhada pela escrevente que me fazia as audiências: em vias de ser avó, era-lhe exigido que trocasse por aquele aparelho a máquina de datilografia que a acompanhou em toda a carreira no serviço público! Não adiantou chamar-lhe a atenção para o fato de que os teclados de ambas as geringonças eram iguais: dias depois, a gentil senhora preferia passar a autuar processos no cartório a aprender a utilizar os recursos que a tecnologia passaria então, e inexoravelmente, a disponibilizar.  

A propalada explosão de litigância se deveu também às facilidades que a tecnologia introduziu nos vetustos serviços judiciários. Tantos recursos – memória para acessar os intermináveis repositórios de jurisprudência, um editor de texto que permitia deletar trechos inteiros sem borrar a folha com borracha ou corretor, comunicação pela rede mundial de computadores (algo que, se nos punha em contato com o mundo todo em segundos, imagine com o juiz ali da minha cidade) –, tudo num aparelho só, por certo chacoalhou a nossa visão de mundo. Por isso lembro com carinho da minha escrevente que não se adaptou aos novos tempos, e que felizmente para ela logo se livrava da maçada pelos braços afáveis da aposentadoria. 

Esse olhar sobre o que se passava à volta, e não apenas sobre o que ia nos autos, passou-se a exigir cada vez mais do juiz desde então. Ao “juiz técnico” dos anos 90, o craque em filigranas processuais civis, passava-se a exigir que adquirisse conhecimentos de gestão - de pessoas e de processos -, a fim de administrar uma massa processual que passou a se multiplicar exponencialmente. Por outro lado, a sociedade, alertada dos seus direitos e consciente da função desempenhada pelo Judiciário, passou a exigir respostas rápidas às demandas que se punham, algumas delas impensáveis na época das Olivetti cartorárias.

- Contado assim parece lamentação, sorri para a repórter -, e, no entanto, foi o que passamos todos nós que ingressamos no serviço judiciário no início dos anos 90. “Aqueles para quem as regras de aposentadoria se alteram tanto”, pensei, mas guardei comigo.

A vida das pessoas mudou, e muito. A relação do público com agentes e servidores públicos da mesma forma. Lembro-me, por exemplo, dos cartazes em repartições públicas reproduzindo o texto do art. 331 do Código Penal: desacatar funcionário público..., sobre que, hoje em dia, se veem debates, jurídicos e não, quanto à descriminalização da conduta.   

   Para os colegas que adentraram há pouco, a vida sem o processo judicial eletrônico parece impensável. Eficiência, presteza, esses adjetivos cuja perseguição diária é exigência inerente à função judicante, nem sempre foram percebidos da maneira como os percebemos hoje. De juízes do meu Tribunal de Justiça que em tempos recuados portaram armas por conta de disputas lindeiras envolvendo a sua Comarca a outros, que na calada da noite iam para a beira de rios coibir pesca ilegal, num prenúncio das lides ambientais que então ainda não se punham, esses “antepassados” eram também eficientes e prestos. Prontos a responder às demandas que a eles chegavam, na forma que a sociedade deles exigia à época.

É por isso que, ao acompanhar pela internet sessões de tribunais em que o julgador se faz acompanhar de um assistente que liga e desliga o microfone, penso comigo que aquele agente público viu o mundo mudar muitas vezes no espaço de tempo da sua carreira. Que o aperfeiçoamento constante não é acompanhado no mesmo ritmo por todos, e que as exigências que sobre ele recaem serão certamente supridas, como deve ter-se acostumado a fazer por todo o tempo em que vem desempenhando o serviço.

No caso da entrevista, creio que acabou bem. Não é que a repórter não sabia usar a plataforma na qual passei a realizar audiências diariamente desde a pandemia? Passei-lhe uns macetes para operar a sala. 

          Ou terá se tratado de simples delicadeza de parte dela? Será que o embranquecer da barba já começa a me atrair delicadezas? Vou começar a pensar nisso, mas em todo caso, fica aí o registro.