25 de julho de 2022

A sede da Academia Espírito-santense de Letras: legado do Acadêmico Kosciuszko Barbosa Leão

Tela de Katia Bobbio
Decidida a fundação de uma entidade de caráter cultural, problema de monta a   equacionar pelos entusiastas é o de local adequado para sediar a instituição. Deliberada sua fundação na reunião preparatória, realizada a 31 de julho de 1921 na sede do Clube dos Bohemios, que à altura abrigava o Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, a Academia Espírito-santense de Letras percorreu a partir daí diversos endereços, no intuito da realização das reuniões e atividades que se propôs realizar. 

Vinte anos depois da fundação, e atacando de frente o problema, foi que logrou o presidente Eurípides Queiroz do Valle conseguir localização condigna para a Academia, alojada a partir de 1942 (data da inauguração do prédio, situado na Praça Oito de Setembro), na sala n.º 05 do Banco de Crédito Agrícola do Espírito Santo, cedida à instituição pelo Interventor Punaro Bley[1]. Mais de vinte anos aí esteve sediada a Casa, que abrigou também no seu recinto as reuniões da Academia Capixaba dos Novos, durante toda a efêmera existência do sodalício.

Em novembro de 1963 foi realizada na sede do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo uma Assembleia Geral Extraordinária para atualização do Estatuto e eleição de nova diretoria, sendo o presidente Queiroz do Valle sucedido na presidência pelo acadêmico Ceciliano Abel de Almeida. Naquela assembleia o presidente Queiroz do Valle afirmou constituir “ponto de honra do final de sua gestão dotar, proximamente, a Casa de Saul de Navarro de nova sede, em face da construção do novo edifício do Banco de Crédito Agrícola do Espírito Santo, onde se situa a atual”[2]. Ficava, assim, a Academia, privada da sua sede[3].

Retornando, simbolicamente, às origens (isto é, à casa do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo), aí se realizaram algumas reuniões subsequentes. No entanto, por essa época o IHGES começava a ocupar-se da reformulação da sede, que resultaria na demolição do antigo prédio do Clube dos Bohemios e início da construção do Edifício Domingos Martins, na Avenida República. Reiniciou a Academia a sua peregrinação, passando a reunir-se na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Federal do Espírito Santo, na sede do Conselho Estadual de Educação (localizada no edifício Ruralbank, na Praça Oito de Setembro), no auditório da Companhia Vale do Rio Doce (localizado no edifício Fábio Ruschi) e até na sala de reuniões da Livraria Âncora. 

Obviamente o problema da sede voltava a ocupar a Academia. Tornando-se mais agudo, providências vinham sendo tomadas a respeito. Assim é que, na reunião de 17 de setembro de 1975, foi lido ofício do Secretário Estadual de Educação e Cultura, Alberto Stange, comunicando a inclusão, na proposta orçamentária do Estado para o triênio 1976/1978, da importância de Cr$ 1.200.000,00 (hum milhão e duzentos mil cruzeiros) “para aquisição da nossa sede, dependendo a sua aprovação da publicação do Orçamento”. Na mesma reunião foi designado o Acadêmico Paes Barreto Filho “para os necessários contactos, a fim de que a nossa Academia possa conseguir a sua sede no prédio do Instituto Histórico e Geográfico, cuja construção se está iniciando”. Prossegue o presidente, e “faz apelo a todos para que colaborem na consecução do nosso antigo sonho, - a sede própria” [4]. Na reunião seguinte, a 15 de outubro, o Acadêmico Ruy Cortes informou de entendimento mantido com o Secretário Estadual de Planejamento “visando à inclusão de Cr$ 400.000,00 do total da verba de Cr$ 1.200.000,00, no orçamento de 1976, destinados à aquisição da sede para a Academia”[5]. A intenção era, então, sediar a Academia no mesmo logradouro em que hoje está sediado o Instituto Histórico e Geográfico. 

Nascido na Serra, em 1889, o Acadêmico Kosciuszko Barbosa Leão ocupava a cadeira 36, cujo patrono é José Joaquim Pessanha Póvoa. O velho acadêmico, veterano de lides educacionais e culturais na capital, não esteve presente às reuniões acima, tendo justificado ausência. Mas foi graças a ele, e em meio a um tal estado de ânimo na Casa, que a 24 de dezembro de 1975 realizou-se a primeira reunião no imóvel que hoje abriga a Academia: sacramentava-se naquele ato a doação do imóvel-residência do casal Kosciuszko Barbosa Leão e dona Laura Madeira de Freitas Leão, gesto de generosidade que pôs fim, 54 anos depois da fundação, à busca por uma sede própria para a associação.     

 A propósito, a ata lavrada daquela reunião pelo secretário Aylton Rocha Bermudes registra: “na sala de visitas da residência do ilustre casal Prof. Dr. Kosciuszko Barbosa Leão e exma. Senhora, D.ª Laura Madeira de Freitas Leão, à Praça João Clímaco, nesta Capital, realizou a Academia Espírito-santense a 10.ª reunião do fluente ano”[6]. À memorável reunião estiveram presentes os acadêmicos Kosciuszko Barbosa Leão, Nelson Abel de Almeida, José Paulino Alves Jr., Guilherme Santos Neves, Adelpho Monjardim, José Vieira Coelho, Cristiano Fraga, Augusto Lins, Placidino Passos, Aylton Rocha Bermudes, Paes Barreto Filho, Ruy Côrtes e Ivo Amâncio Oliveira. Esclarecendo o significado especial da reunião, o presidente, Nelson Abel de Almeida,


disse que ia celebrar-se, naquele instante e local, um ato da mais alta e significativa importância para a Academia Espírito-santense de Letras, com reflexos na vida cultural do Estado – a assinatura da escritura de doação, feita pelo nosso eminente confrade Kosciuszko Barbosa Leão, com a outorga de sua exma. esposa, Sr.ª Laura Madeira de Freitas Leão, do imóvel de sua propriedade, sito à Praça João Clímaco, nesta Capital, à nossa Academia.

 

Nos termos da escritura, a Academia investia-se desde logo do direito de uso dos dois pavimentos superiores do imóvel, “que são o segundo e o mirante”[7].

O Acadêmico Kosciuszko Barbosa Leão, então com 86 anos de idade, sentia a passagem dos anos. Autor de, entre outros, MeditaçõesJTMAlma e Deus, a fala do antigo Chefe de Polícia e ex-diretor da Faculdade de Direito esclarece o seu duplo propósito: homenagear a Academia, ao mesmo tempo que a dotava de uma sede condigna. Para tanto franqueava-lhe desde logo o seu local de contemplação, de trabalho intelectual. 

Como homenagem ao benfeitor da Academia segue transcrito na íntegra sua comovida fala na ocasião, resgatando-a da poeira dos livros de atas:

Prezados confrades: eu não sei como poderia, se o tentasse, descrever minha cena interior nesta solenidade. É que me domina um permanente estado emocional, agravado, necessariamente, pelas circunstâncias do momento. É, de um lado, o ato cuja celebração constitui o fim que ora aqui nos reúne – a doação à nossa excelsa Academia de Letras, desta casa, objeto de grande estima, particularmente na parte que, durante muitos anos, foi o meu lar espiritual e meu santuário, onde tanto vivi em sentimento e pensamento, rezando as minhas comovidas orações de culto da beleza e das ideias. É, de outro lado, a situação psicológica inerente à minha idade e reanimada nesta celebração. A velhice é a última estação que a alma faz na peregrinação para o seu destino na terra, estação sem horizonte, porque não há mais esperança, e sem esperança, porque não há mais futuro. E, por isso, ela vive apenas de passado, debruçada sobre o panorama dos dias idos, com as imagens das suas lutas e das suas dores, companheiras inseparáveis dos que não tiveram a companhia dos pais e, sem experiência, caminharam sozinhos e errantes por vias desconhecidas. Nesta doação, feita nos últimos dias de minha vida, eu sinto que há um pouco de despedida. Nela, todavia, existe, para mim, um contraste de sentimentos, a alegria de uma renascença. Parece que vou viver de novo, pelo convívio, que nunca tive, com os meus doutos confrades, convívio propiciado pela circunstância da vizinhança, que a doação estabelece. Desejo agora definir esta doação, como um símbolo material de uma doação moral. Decidi doar minha casa à nossa Academia de Letras, porque já lhe havia doado o coração. E devo assinalar que não é maior em mim do que na minha santa companheira, o entusiasmo com que é prestada essa homenagem. Quando meus problemas me fizeram, certa vez, adiar a celebração do ato, ela acorreu cuidadosa, para encarecer a sua prioridade. Cumpre também registrar o meu contentamento pela coincidência da doação com o exercício da presidência da nossa Academia pelo eminente confrade Dr. Nelson Abel de Almeida, meu amigo e meu parente, que, no seu devotamento à entidade, acolheu a dádiva com grande mostra de satisfação, como se fosse prestado a ele, pessoalmente, esse tributo de solidariedade. Mas, prezados confrades, há um coração maior que os de todos nós, a receber nesta casa, a Academia de Letras como sua dona: é o Coração de Jesus, exposto sobre o peito de sua imagem, que, em seu altar no pórtico desta sua nova morada, aí lhe estende os braços, abertos para estreitá-la com amor, abençoá-la com sua graça e lhe garantir com segurança toda felicidade”.                  

 

Como não poderia deixar de ser, tamanho gesto de generosidade e amor à instituição foi condignamente reconhecido pelos confrades. Na primeira reunião “na sua nova sede”, em 17 de março de 1976, propôs o Acadêmico Ruy Côrtes fosse imortalizado em bronze o busto do Acadêmico benfeitor, tendo o Acadêmico José Paulino sugerido “a aposição dos retratos do Prof. Kosciuszko e de sua exma. senhora, D.ª Laura Madeira de Freitas Leão, na sala de reuniões”[8]. Os retratos continuam ainda hoje a ornar a sala das reuniões acadêmicas. 

O busto, obra do escultor Carlos Krepas, foi inaugurado um ano depois, na sessão solene de 02 de dezembro de 1976. Anotou o secretário Aylton Bermudes que aquela reunião se realizava “para a inauguração do busto, em bronze, do acadêmico Kosciuszko Barbosa Leão, homenagem a seus méritos de escritor e cidadão e reconhecimento pela doação de sua casa de residência à nossa Academia”. Com a presença de inúmeros acadêmicos e convidados, entre eles o reitor da Universidade Federal do Espírito Santo, o homenageado falou de improviso, tendo sido o discurso oficial de agradecimento lido por seu sobrinho, dr. Sólon Leão[9].

De fato, levando para dentro da sua residência o convívio dos confrades, o professor Kosciuszko esteve presente em todas as subsequentes reuniões da Academia (à exceção das sessões solenes de posse de novos acadêmicos, ocorridas fora da sede) até o seu falecimento, a 20 de maio de 1979. Na reunião em que foi homenageado, em 20 de junho de 1979, homenageou-se também, coincidentemente, o outro acadêmico que a seu tempo dotara a Academia de sede própria: Eurípides Queiroz do Valle, falecido a 6 de junho do mesmo ano[10]

Creio ser de justiça, a esta altura, relembrar os benfeitores da nossa casa. Neste texto, dada a exiguidade de espaço, focou-se rapidamente a aquisição da sede, sem descurar das ações de outros dois acadêmicos que se notabilizaram por favorecerem materialmente a instituição.  

Desde a doação da sede, à Academia Espírito-santense de Letras dá-se a qualificação de “Casa de Kosciuszko Barbosa Leão”. Em 2020, véspera do seu centenário de fundação, a instituição conta 45 anos de ocupação da sede definitiva. Os volumes doados pelo Acadêmico Álvaro Henrique Moreira de Souza integram o acervo da Biblioteca Saul de Navarro. O Acadêmico Eurípides Queiroz do Valle permanece nos anais da instituição como o que por mais tempo lhe dirigiu os destinos.

(publicado na edição de 2021 da Revista da Academia Espírito-santense de Letras)

 



[1] Ata da sessão de 9 de abril de 1942. Livro de atas n.º 02 (1939 -1943), pág. 80/81.

[2] Ata da Assembleia Geral Extraordinária realizada a 18 de novembro de 1963. Livro de Atas n.º 3 (1943 – 1976), pág. 15/17.

[3] Cabe, aqui, um parêntese: entre os seus benfeitores conta a Academia Espírito-santense de letras como o primeiro deles o Acadêmico Álvaro Henrique Moreira de Souza (Saul de Navarro), escritor e palestrante festejado, que em 1947, pouco antes de seu falecimento, fez doação à casa de precioso conjunto de obras que constam do acervo da Biblioteca Saul de Navarro. As fotos relativas à inauguração da Biblioteca, a 04 de setembro de 1947, foram publicadas em NEVES, Getúlio M. P. (org.). Documentos da Academia: Academia Espírito-santense de Letras. Vitória: AEL, 2007.  

 

[4] Ata da reunião mensal de 17 de setembro de 1975. Livro de Atas n.º 03 (1943 – 1976), pág. 85v./86v,

[5] Ata da reunião mensal de 15 de outubro de 1975. Livro de Atas n.º 03 (1943-1976), pág. 87/88v.

[6] Ata da sessão extraordinária de 24 de dezembro de 1975. Livro de Atas n.º 03 (1943 – 1976), pág. 90/92.

[7] A escritura pública de doação do imóvel foi registrada em 22/12/1975, às fls. 133v/136 do Livro 294 do Cartório do 1.º Ofício de Notas de Vitória e foi publicada em NEVES, Getúlio M. P. (org). Documentos da Academia: Academia Espírito-santense de Letras. Vitória: AEL, 2009.

[8] Ata da reunião mensal de 17 de março de 1976. Livro de Atas n.º 03 (1943-1976), pág. 93/94.

[9] Ata da sessão extraordinária do dia 2 de dezembro de 1976. Livro de Atas n.º 04 (1976 – 1984), pág. 6/7. 

[10] Ata da sessão do dia 20 de junho de 1979. Livro de Atas n.º 04 (1976 – 1984), pág. 31/32.