Abro um parêntese para registrar que o nosso consócio nesta casa, Gabriel Augusto de Mello Bittencourt, elaborou há quarenta e cinco anos a monografia “Espírito Santo: alguns Aspectos da Independência – 1820/1824”, em aproximadamente 35 laudas impressas de texto, mais os anexos (em número de 10) e bibliografia. Esse texto, que inaugura uma fase mais moderna da historiografia sobre o Espírito Santo, foi dividido pelo Autor em três capítulos mais uma breve conclusão. Sobre essa monografia, até como homenagem ao confrade Gabriel Bittencourt, que este ano completa oitenta anos de vida, falarei muito brevemente.
O primeiro capítulo do texto trata-se de um breve estudo da conjuntura nacional e uma visão panorâmica da evolução econômica do Espírito Santo até a quadra de 1820. Serve-se o autor na sua maioria de dados coletados pelo naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, que esteve no Espírito Santo por essa época. No segundo capítulo, onde descreve propriamente os fatos, Bittencourt toma como base autores consagrados, mas aprofundando questões com apoio nas fontes primárias – notadamente, ofícios de e para a governadoria da Província no período de que se ocupa, 1820 a 1824. Expõe a situação política local, põe em relevo a atuação de personagens de influência, pelos cargos que ocupavam, situando essa atuação no clima de polarização contemporânea, registrando a adesão da Capitania do Espírito Santo ao movimento deflagrado no Rio de Janeiro e a tardia adesão da localidade de São Mateus, no norte da capitania, que embora juridicamente revista pela Ouvidoria de Porto Seguro, administrativamente respondia ao Espírito Santo. No terceiro capítulo o autor examina brevemente economia e finanças locais no final do período estudado.
Como foi que culminou todo esse processo aqui no Espírito Santo? Vou fazer um breve resumo, como exige o tempo, dos fatos acontecidos no Espírito Santo naquele período conturbado. Sabemos das posições políticas em confronto na ocasião, das opiniões a respeito da Revolução do Porto, que se desenrolava em terras lusitanas, opondo o retorno ao Pacto Colonial, de um lado, e do outro, a adoção do liberalismo, a pôr por terra o absolutismo dos governantes portugueses, ampliando as liberdades conquistadas com a implantação de um regime constitucional, que era, em suma, o objeto daquele movimento.
Também no Espírito Santo, quando começaram a repercutir as manifestações revolucionárias, o sentimento anti-português recrudesceu entre a população. A partir de julho de 1821 as coisas “esquentaram”. Após o juramento da Constituição portuguesa, em 14 daquele mês, a tropa de linha sublevou-se, exigindo a destituição imediata do sargento-mor Francisco Bernardo de Assis, português, e sua substituição por José Marcelino de Vasconcelos, brasileiro e comandante da Companhia de Artilharia.
Sobre os fatos narra Bittencourt no texto a que me referi: “à insubordinação da tropa houve a adesão de elementos civis contra a oficialidade portuguesa. A manifestação ganhou as ruas de Vitória, onde foram atacados estabelecimentos comerciais, generalizando-se o conflito, de que resultaram alguns feridos no tiroteio que se registrou. Sem forças para resistir [àquela reivindicação], capitulou o governador, empossando, interinamente, José Marcelino no comando do Corpo da Tropa de Linha”.
Nessa altura o governador Baltasar Vasconcelos, alvo da oposição, pedia insistentemente para se retirar da Província; esperavam-se arruaças, à vista da campanha contra ele deflagrada nos pasquins manuscritos colados nas paredes dos prédios de Vitória. O ano de 1821 encerrou-se nesse clima. Em 2 de março de 1822 era eleita a junta governativa, na forma do Decreto de 29 de setembro de 1821. O Comando das Armas passou então ao Tenente Coronel Inácio Pereira Duarte Carneiro, “por ser o oficial de maior patente que na ocasião havia na província”, consta do ofício do governador. No entanto, este permaneceu no posto por apenas um mês, substituído, por ordem vinda do Rio de Janeiro, pelo Coronel Julião Fernandes Leão, português e de posição anti-brasileira, que assumira o cargo de Inspetor do Corpo de Pedestres em abril de 1821.
A Junta de Governo recebeu com surpresa a substituição de Duarte Carneiro por Fernandes Leão, e agitações se fizeram novamente sentir, iniciando-se um movimento de apoio a Duarte Carneiro. Este foi recolhido à prisão pelo novo Comandante das Armas, em comum acordo com o seu primo João Antônio Pientznauer, o cirurgião-mor de Vitória, que também ocupava o cargo de juiz ordinário da Vila. No seu História do Espírito Santo Maria Stela de Novaes refere-se a arbitrariedades cometidas pela dupla Julião Fernandes Leão – João Antônio Pientznauer. Esse estado de coisas, reportado pela Junta ao Rio de Janeiro, levou a que fosse enviado a Vitória o juiz-de-fora de Campos dos Goitacazes (que respondia à Ouvidoria do Espírito Santo), na condição de ouvidor e corregedor interino, José Libânio de Souza, para apurar os fatos e “pacificar” a Província.
A apuração dos fatos por aquele funcionário fez acirrar os ânimos do Comandante das Armas, que, desentendendo-se com o próprio Ouvidor, determinou que este suspendesse a correição e se retirasse da Vila. Recusando-se Libânio de Souza a fazê-lo, o Comandante das Armas determinou o cerco à sua residência, isolando-o de qualquer comunicação. À vista desse fato finalmente reagiu a Junta governativa, operando a libertação do Tenente-Coronel Duarte Carneiro e sua proteção no Palácio do Governo.
Sobre essa passagem narra Bittencourt:
“Sem dúvida, no Palácio e em seu derredor concentraram-se as manifestações da Independência. Foi para lá que se dirigiu Fernandes Leão, acompanhado de seu ajudante, Antônio Cláudio Soído, disposto a derrubar a Junta, inconformado com os rumos dos acontecimentos. Aos gritos de ‘Abaixo a Junta! Morra a Junta’, seu ímpeto, entretanto, seria contido com a leitura da Proclamação do Príncipe Regente, determinando aos povos a obediência ao Governo Provisório. Unidos, Tropa, Guarda do Palácio e populares, o Comandante Julião não conseguiu realizar, portanto, o seu intento, tendo de refugiar-se em sua própria residência.”
Prossegue Bittencourt:
“Apenas alguns feridos resultaram do incidente. O juiz Pientznauer, um dos membros da agitação, que já havia sido processado e com ordem de prisão decretada, fugiu para Campos, onde permaneceria por muito tempo. Finalmente, a 15 de agosto, toma posse o novo Comandante das Armas, Tenente Coronel Fernandes Teles da Silva, em substituição a Julião Fernandes Leão”.
Este, a esta altura, já tinha sido detido e enviado para o Rio de Janeiro.
Removido o obstáculo Fernandes Leão, o Partido da Independência trabalhou ostensivamente no Espírito Santo, inclusive pela via do preenchimento dos cargos públicos (conforme recomendado em ofício de José Bonifácio à Junta Provisória de Governo do Espírito Santo em 21 de junho de 1822): ter em conta a posição política do candidato ao cargo passava a ser uma das condições para admiti-lo. Para cá foi enviado o desembargador Manoel Ribeiro Pinto de Sampaio, numa altura em que toda a província, à exceção das vilas de Guarapari e São Mateus, eram partidárias da Independência.
Como uma província tampão, entre Salvador, sob o domínio das forças de Madeira de Melo, e o Rio de Janeiro, de onde irradiava o movimento de resistência, desenvolveu-se no Espírito Santo uma espécie de atividade de espionagem, em que informações eram repassadas daqui para o Rio de Janeiro: refira-se exemplo referido por Bittencourt, dando conta de que a 23 de agosto transmitia-se ao Rio de Janeiro, por ofício do governador a José Bonifácio, informações prestadas por uma escuna que chegara da Baía acerca da situação local, sobre as fortificações na capital baiana e sobre os reforços que eram aguardados de Portugal na altura.
Em resumo, entre insatisfação com a situação econômica contemporânea local e disputas fundadas na nacionalidade, a elite capixaba, muito mais nas pessoas dos detentores dos cargos administrativos e militares, engajara-se na causa da Independência, evitando qualquer apoio na forma de mantimentos ou munições às forças reacionárias estacionadas na Bahia.
Finalmente, em outubro de 1822 proclamou-se publicamente na Província do Espírito Santo D. Pedro I Imperador do Brasil, à exceção de São Mateus, no norte da província. Dá conta o cronista Basílio Carvalho Daemon que “Houve nesta ocasião grandes festejos, iluminações e regozijo público, havendo dias antes sido admitido como sinal de anuência à nossa emancipação política o laço verde e amarelo no braço, e tope da mesma cor no chapéu”.
Quanto à vila de São Mateus, estava, como dito, sob a jurisdição da Ouvidoria de Porto Seguro, e seu mercado, principalmente de farinha de mandioca, dependia primordialmente da Bahia. No período houve registro de diversos casos de embarcações que saíam da localidade carregadas de mantimentos em direção a Salvador, para apoio às forças reacionárias, inclusive notícias de sua apreensão. Finalmente uma tropa mandada de Vitória, que obtivera a adesão da Vila de Caravelas, hoje na Bahia, acabou por fazer a Proclamação em 28 de janeiro de 1823, a que, forçada pela presença militar, aderira a Câmara mateense, em 21 do mesmo mês. Finalmente então, a partir de janeiro de 23, toda a província do Espírito Santo aderira à Independência.
De forma muita sucinta, pode-se dizer que os ânimos na então capitania do Espírito Santo eram, por força da conjuntura local, desde logo favoráveis ao Príncipe D. Pedro e à causa da Independência, o que acabou reforçado pela conduta de autoridades contrárias ao movimento. O episódio em frente ao Palácio do Governo foi o ápice da movimentação popular na capital em favor do novo estado de coisas que se pretendia implantar.
(texto revisto da palestra proferida no VII Colóquio dos Institutos Históricos e Geográficos Brasileiros organizado pelo IHGB)