18 de outubro de 2010

A MINISTRA E A ÉTICA NO JUDICIÁRIO

A edição de 29 de setembro da Revista Veja traz entrevista da Ministra Eliana Calmon, nova corregedora nacional de justiça, que teve grande repercussão interna no Poder Judiciário brasileiro.

Abaixo, a íntegra da referida entrevista, seguida da íntegra da nota emitida em resposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros.


"Por que nos últimos anos pipocaram tantas denúncias de corrupção no Judiciário?

Durante anos, ninguém tomou conta dos juízes, pouco se fiscalizou, corrupção começa embaixo. Não é incomum um desembargador corrupto usar o juiz de primeira instância como escudo para suas ações. Ele telefona para o juiz e lhe pede uma liminar, um habeas corpus ou uma sentença. Os juizes que se sujeitam a isso são candidatos naturais a futuras promoções. Os que se negam a fazer esse tipo de coisa, os corretos, ficam onde estão.

A senhora quer dizer que a ascensão funcional na magistratura depende dessa troca de favores?

O ideal é que as promoções acontecessem por mérito. Hoje é a política que define o preenchimento de vagas nos tribunais superiores, por exemplo. Os piores magistrados terminam sendo os mais louvados. O ignorante, o despreparado, não cria problema com ninguém porque sabe que num embate ele levará a pior. Esse chegará ao topo do Judiciário.

Esse problema atinge também os tribunais superiores, onde as nomeações são feitas pelo presidente da República?

Estamos falando de outra questão muito séria. É como o braço político se infiltra no Poder Judiciário. Recentemente, para atender a um pedido político, o STJ chegou à conclusão de que denúncia anônima não pode ser considerada pelo tribunal.

A tese que a senhora critica foi usada pelo ministro César Asfor Rocha para trancar a Operação Castelo de Areia, que investigou pagamentos da empreiteira Camargo Corrêa a vários políticos.

É uma tese equivocada, que serve muito bem a interesses políticos. O STJ chegou à conclusão de que denúncia anônima não pode ser considerada pelo tribunal. De fato, uma simples carta apócrifa não deve ser considerada. Mas, se a Polícia Federal recebe a denúncia, investiga e vê que é verdadeira, e a investigação chega ao tribunal com todas as provas, você vai desconsiderar? Tem cabimento isso? Não tem. A denúncia anônima só vale quando o denunciado é um traficante? Há uma mistura e uma intimidade indecente com o poder.

Existe essa relação de subserviência da Justiça ao mundo da política?

Para ascender na carreira, o juiz precisa dos políticos. Nos tribunais superiores, o critério é única e exclusivamente político.

Mas a senhora, como todos os demais ministros, chegou ao STJ por meio desse mecanismo.

Certa vez me perguntaram se eu tinha padrinhos políticos. Eu disse: ´Claro, se não tivesse, não estaria aqui´. Eu sou fruto de um sistema. Para entrar num tribunal como o STJ, seu nome tem de primeiro passar pelo crivo dos ministros, depois do presidente da República e ainda do Senado. O ministro escolhido sai devendo a todo mundo.

No caso da senhora, alguém já tentou cobrar a fatura depois?

Nunca. Eles têm medo desse meu jeito. Eu não sou a única rebelde nesse sistema, mas sou uma rebelde que fala. Colegas que, quando chegam para montar o gabinete, não têm o direito de escolher um assessor sequer, porque já está tudo preenchido por indicacão política.

Há um assunto tabu na Justiça que é a atuação de advogados que também são filhos ou parentes de ministros. Como a senhora observa essa prática?

Infelizmente, é uma realidade, que inclusive já denunciei no STJ. Mas a gente sabe que continua e não tem regra para coibir. É um problema muito sério. Eles vendem a imagem dos ministros. Dizem que têm trânsito na corte e exibem isso a seus clientes.

E como resolver esse problema?

Não há lei que resolva isso. É falta de caráter. Esses filhos de ministros tinham de ter estofo moral para saber disso. Normalmente, eles nem sequer fazem uma sustentação oral no tribunal. De modo geral, eles não botam procuração nos autos, não escrevem. Na hora do julgamento, aparecem para entregar memoriais que eles nem sequer escreveram. Quase sempre é só lobby.

Como corregedora, o que a senhora pretende fazer?

Nós, magistrados, temos tendência a ficar prepotentes e vaidosos. Isso faz com que o juiz se ache um super-homem decidindo a vida alheia. Nossa roupa tem renda, botão, cinturão, fivela, uma mangona, uma camisa por dentro com gola de ponta virada. Não pode. Essas togas, essas vestes talares, essa prática de entrar em fila indiana, tudo isso faz com que a gente fique cada vez mais inflado. Precisamos ter cuidado para ter práticas de humildade dentro do Judiciário. É preciso acabar com essa doença que é a ´juizite´.”

Íntegra da resposta da Associação dos Magistrados Brasileiros à entrevista:


"Sobre a entrevista A Corte dos Padrinhos, com Eliana Calmon e publicada na edição de 29 de setembro de Veja, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), entidade que congrega mais de 14 mil juízes, discorda do tom genérico das declarações da ministra que deixa transparecer que toda a magistratura se submete a interferências externas em suas decisões. Não se pode ignorar que existam irregularidades e desvios de condutas, como os afirmados pela ministra, mas lembramos que estes casos são uma minoria no Poder Judiciário, que em seu conjunto é formado por profissionais sérios e comprometidos, como é a própria Eliana Calmon.

A credibilidade do Judiciário é uma das bandeiras defendidas pela AMB, e a magistratura entende que o atual sistema de indicações, ou recrutamento, não atende aos princípios republicanos. Com essa preocupação a AMB, por meio do deputado Vieira da Cunha (PDT-RS), apresentou a emenda à Constituição (PEC 434/2009) que atualmente encontra-se na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, e que visa estabelecer critérios objetivos para o acesso ao Supremo Tribunal Federal, diminuindo as intervenções políticas nas escolhas. A generalização de denúncias tão graves, como as que foram citadas pela corregedora, ofende os que levam rigorosamente a sério os princípios constitucionais, especialmente os que norteiam o exercício da magistratura.

Mozart Valadares Pires

Presidente da AMB."


A Ministra não disse nada demais, em termos genéricos. Disse, apenas, que existem magistrados corruptos, o que é investigado diariamente pelos próprios Tribunais e pelo CNJ, com ampla e requintada cobertura pela imprensa; que nos Tribunais também se usa valorizar os carreiristas, aliás como em todas as épocas e em todas as ocupações; que o desconhecimento da Ética hoje, no Brasil, como regra de conduta mas também como matéria de cogitação, é geral.

O Poder Judiciário, como de resto o Legislativo (integrados, na forma da Consttituição Federal, por brasileiros natos), não pode deixar de refletir o caráter do povo, porque é integrado pelo povo. Urge a adoção de providências práticas como as que estão sendo propostas pela AMB no tocante à composição dos Tribunais superiores e pelo CNJ no tocante a critérios objetivos para ascenção na carreira da magistratura. Como é necessário, também, a elevação do nível cultural, moral e ético da população.

Mas é óbvio que o caminho é longo e entre nós começa pela determinação sobre se a Ética é um proceder de caráter absoluto ou pode ser relativizada ao sabor de ideologias dominantes e/ou momentos históricos.