27 de outubro de 2010

São Maurício, Padroeiro do Espírito Santo nos tempos coloniais


Vila Velha é o berço da devoção popular no Espírito Santo. Local para onde veio Frei Pedro de Palácios (que passara anteriormente algum tempo na Bahia) e que fundou aqui a devoção Mariana sob a invocação da Nossa Senhora da Penha do Espírito Santo – só antecedida pela devoção a Nossa Senhora da Vitória, invocada na Igreja Matriz da vizinha Vila capital. A devoção popular é parte da história da terra e da tradição do povo, o que se encontra muito além de dissidências ou antipatias pessoais de cunho teológico ou ideológico.

A proteção da Virgem Maria era invocada sobre todas as terras do Reino de Portugal; a Ela fora consagrado ao nascer D. Afonso Henriques, o fundador da nacionalidade portuguesa, por conta de um problema de saúde de que, no entanto, ficou totalmente curado após a consagração (1995, p. 16). A propósito, por bula do Papa Urbano VIII, de 23 de março de 1630, Nossa Senhora da Penha recebeu o título de Protetora da Capitania do Espírito Santo (NOVAES, 1958, p. 206).

Inobstante ao fato dessa onipresente proteção Mariana, o padroeiro de ambas as povoações da Capitania do Espírito Santo, naqueles tempos iniciais, foi o mártir São Maurício, soldado romano comandante da célebre legião tebana (denominação de um grupamento do exército romano contemporâneo, não de fato uma das Legiões de que dispôs o Império no auge de seu poderio).

São Maurício é o santo guerreiro por excelência (uma imagem de São Maurício existe no Colégio Militar do Rio de Janeiro). De sua legenda, recolhida por Jacopo de Varazze (2003, p. 785/786) consta que comandava soldados recrutados por ordem de Diocleciano e Maximiano na província do Egito para subjugar ao Império Romano todos os rebeldes. Enviado por Diocleciano contra as Gálias, do exército de Maximiano fazia parte a guarnição tebana. Transpondo os Alpes e chegando a Otodoro, exortou o Imperador a seus comandados que sacrificassem aos deuses e se unissem contra os rebeldes e, principalmente, contra os cristãos.

Sabendo disso, os companheiros da legião tebana deixaram as hostes romanas, acampando oito milhas ao largo, em Agaune, às margens do Rio Ródano. Tendo Maximiano enviado mensageiros que lhes passaram ordens expressas, estes recusaram-se a proceder daquela forma, invocando sua fé em Cristo. Foram, então, por ordem do Imperador, dizimados, isto é, sacrificados à base de um para cada dez homens. Como ainda assim não os demovesse de seu intento, determinou Maximiano que seu exército cercasse toda a legião, de maneira que nenhum pudesse escapar, sendo quase todos trucidados em nome de sua fé.

Estes fatos se passaram por volta do ano 283. Difundido seu culto pela Europa, trazida a devoção ao Brasil, São Maurício era sempre invocado para que intercedesse pelo bom sucesso das armas locais contra invasores estrangeiros, sobretudo os “hereges”. De fato, o padre José de Anchieta compôs poema a São Maurício e os mártires da legião tebana, exortando-os a proteger a Vila da Vitória contra “os hereges franceses” e “luteranos ingleses”, em tempos de defesa da terra contra as proezas de corsários a serviço das nações inimigas de Portugal (1989, p. 398/390).

Padroeiro da maior povoação da terra, dando nome a uma fortificação que existiu em Vitória, também a população de Vila Velha o invocou numa passagem de grande perigo, que foi a tentativa de invasão holandesa de 1640. Batidos os homens do coronel Koin na capital, nas Roças Velhas (depois Porto dos Padres, por volta da Rua General Osório – OLIVEIRA, 1975, p. 130) estes investiram, três dias depois da derrota, contra a então Vila do Espírito Santo, aqui desembarcando e fortificando-se. Os defensores da terra, poucos, foram obrigados a se retirar para os sertões que circundavam a Vila.

Consta da tradição que a tropa holandesa fez menção de escalar o Monte da Penha, quando então tiveram a assombrosa visão: o santuário transforma-se num castelo fortificado e das nuvens descem muitos soldados, a pé e a cavalo, com armas luzentes, o que fez com que os invasores retrocedessem (NOVAES, 1958, p. 67).

O fato histórico em si, que faz parte da História Militar do Espírito Santo, é que, reforçados pelo socorro mandado pelo capitão-mor João Dias Guedes, os capitães Adão Velho e Gaspar Saraiva infligiram, no dia 02 de novembro, outra pesada derrota aos batavos, que se fizeram ao mar no dia 08 (OLIVEIRA, 1975, p. 130/131).

A partir de então é da tradição que o santuário (ainda a simples ermida) fora defendida por São Maurício e os mártires da legião tebana, o que fez aumentar ainda mais a devoção naquele santo em terras do Espírito Santo. A cena foi retratada pelo pintor santista Benedito Calixto, e se vê no corredor do Convento da Penha no painel “A visão dos holandeses” – registre-se, apenas, que no ano de 1640 o Convento, como hoje o conhecemos, ainda não existia.

Essa estrondosa vitória foi cantada por muito tempo em versos pelo povo, versos estes de que nos dá notícia Maria Stella de Novaes (1958, pág. 67/68):

Nossa Senhora da Penha
Tem um manto de alegria
Deus lhe deu os seus soldados
Pra defender a baía

Nossa Senhora da Penha
Tem soldados a valer
Que lhe deu Nosso Senhor
Pro seu povo defender

Nossa Senhora da Penha
Tem um manto de alegria
Foram os soldados que deram
Quando vieram da Baía

(os últimos versos em alusão aos homens que foram com o governador do Rio de Janeiro, Salvador Correia de Sá e Benevides, à Baía).

De que São Maurício era o padroeiro de Vila Velha ainda no século XVIII nos dá conta Frei Agostinho de Santa Maria, descrevendo o interior do Convento da Penha no décimo volume de seu Santuário Mariano e História das imagens milagrosas de Nossa Senhora, publicado originalmente em Lisboa, em 1723:

“Nos primeiros dois arcos dos lados em o primeiro da mão direita se vê a Capela do Mártir S. Mauricio, e seus companheiros os Thebanos, que são os Padroeiros da Villa Velha, em cujo dia (como já dissemos) vencerão aqueles moradores uma das batalhas contra os Holandeses.”

O interessante é que, outros os tempos, outras as devoções. A Capela de São Maurício e seus companheiros mártires já não existe no Convento da Penha, e a vitória dos vila-velhenses contra os holandeses naquele dia 02 de novembro de 1640 jaz relegada aos livros de História. Talvez porque os desafios a superar hoje em dia não sejam mais batalhas campais contra invasores estrangeiros. Fica, pois, a tradição.

REFERÊNCIAS:

1) ANCHIETA, José de. Poesias. Transcrições, traduções e notas de M. de L. de Paula Martins. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989.

2) GALVÃO, Duarte. Crônica de El-Rei D. Afonso Henriques. Lisboa: INCM, 1995.

3) OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. 2.ª ed. Vitória: FCES, 1975.

4) NOVAES, Maria Stella de. O Relicário de um Povo: O Santuário de Nossa Senhora da Penha. 2.ª ed. Vitória: s.n., 1958.

5) SANTA MARIA, Agostinho de. Santuário Mariano e História das Imagens Milagrosas de Nossa Senhora, tomo X. Rio de Janeiro: INEPAC, 2007.

6) VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea: Vidas de Santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.