O clima fantástico de eleições, a população tão mobilizada, paixões à flor da pele... falemos sério: o brasileiro, se pudesse, não se incomodaria com eleições, não é não? Seremos todos nós monarquistas, em meio a tantos reis e rainhas que nos são apresentados de tempos em tempos (o momo, o da música, o do futebol, a dos baixinhos, até a da sucata, quem se lembra...?)
Mas o povo liga, sim, para política, principalmente a pequena, a local. Já Afonso Cláudio, talvez o maior intelectual capixaba do século XIX, reclamando do pouco apreço do brasileiro para leituras e o debate de idéias, constatava este fato, isto por volta de 1920, dizendo, na sua usual franqueza:
“Os escritores brasileiros, na República, constituem a classe que menos influi nos destinos da Nação, seja que o hodierno industrialismo literário preferentemente favorecido e apetecido, prescinda do concurso das idéias e das teorias, que em toda a parte do mundo civilizado, formam a base da cultura social, seja que a ‘monocultura’ da política tenha empolgado o caráter nacional de tal arte, que o atrofiou para tudo mais que entende com a vida mental de um povo.”
Ou seja, a monocultura da política atrofiava o povo para tudo o mais. E, convenhamos, assim vem sendo ultimamente (ou voltou a ser, vá lá, porque não é o ponto a discutir). Então pergunto: a política que respiramos hoje contempla, a contrário dos idos de 1920, o debate de idéias? Não foi o que se viu nos últimos meses, em que vivemos uma política centrada exclusivamente em nomes. Aliás, parecemos estar vivendo nesta quadra uma original espécie de “monarquia eleitoral” (sim, os termos se excluem, doutrinariamente. Mas Brasil é Brasil!) em que o poder vai ser passado em frente simplesmente “porque sim”, sob o beneplácito do povo. Ora, então não é assim a democracia? A vontade do povo? – o que encerra este tópico específico da argumentação.
Prosseguindo, o interessante é como o pessoal vive a política. Talvez poucas atividades humanas conheçam uma divisão tão definida entre os que “a odeiam” e aqueles para quem é “uma cachaça”. Se Afonso Cláudio falava de uma população urbana, que por isto mesmo se pretendia esclarecida, precisamente pela mesma época José Bento Monteiro Lobato traçava em irônica, mas dolorosamente realista tonalidade, o perfil do brasileiro rural, a maioria da população contemporânea, o “povão”. Aquele mesmo recém-cidadão, idealizado por escritores românticos que, sob a alcunha de “modernistas”, deslocavam o foco de suas idealizações do antecessor indígena alencariano para o “caboclo”, o retirante nordestino etc., como símbolo das virtudes heróicas da nova raça surgida abaixo do Equador e a leste de Tordesilhas.
Isso, esse embate de propaganda, é história da literatura brasileira, para onde remeto eventuais, entretanto improváveis leitores. O fato é que a visão literária das vantagens da miscigenação acabou por triunfar sobre a de suas desvantagens – desvantagens estas que, muito simplificadamente, podemos dizer que Lobato constatava. E esse triunfo aí graças ao gênio pragmático de Gilberto Freyre, que do limão miscigenatório que lhe serviam a história e a sociologia pátrias conseguiu extrair uma limonada. Gilberto Freyre, tão combatido pelos que se locupletaram e locupletam hoje em dia da sua vitória ideológica. O que também é outra história.
Mas o que dizia Lobato do “povão” brasileiro de então? Numa época como a nossa, de acatamento quase que sacrossanto às opiniões da minoria, pura e simplesmente por serem minoritárias, não ler Lobato é, no mínimo, um atentado politicamente incorreto à liberdade de opinião. O que deveria repugnar nossas convicções de liberais, democratas, sociais e ecológicos. Mas não é só por isso que o transcrevo para aproveitamento de vocês, eventuais mas improváveis leitores, mas sim porque confio muito mais no gênio realista de Lobato do que no pragmatismo acadêmico-assalariado dos pesquisadores no traçar as características de caráter do ancestral do nosso eleitor, do homem do Brasil profundo - aquele que, aparentemente do alto das mesmas convicções, trasladadas para a periferia das grandes cidades, vai decidir as eleições de hoje.
Como esse cidadão brasileiro não-urbano vivia na época a monocultura da política de que falava Afonso Cláudio? Afinal, toda essa febre política, aparentemente paralisante das faculdades mentais, chegava periodicamente até ele, como corolário do dever cívico que lhe impunha seu estatuto de cidadão: votar. Lobato de Urupês - comento entre colchetes, em itálico:
“[...] contrasta com a cristianíssima simplicidade do Jeca a opulência de um seu vizinho e compadre que ‘está muito bem’ [...] pesa nos destinos políticos do país com o seu voto e nos econômicos com o polvilho azedo de que é fabricante, tendo amealhado com ambos, voto e polvilho, para mais de quinhentos mil reis no fundo da arca [olha aí a venda de voto!].
Vive num corrupio de barganhas nas quais exercita uma astúcia nativa muito irmã da de Bertoldo. A esperteza última foi a barganha de um cavalo cego por uma égua de passo picado. Verdade é que a égua mancava das mãos, mas inda assim valia dez mil reis mais do que o rocinante zanaga.
Esta e outra celebrizaram-lhe os engrimanços potreiros num raio de mil braças, granjeando-lhe a incondicional e babosa admiração do Jeca, para quem, fino como o compadre, ‘home’ ... nem mesmo o vigário de Itaoca! [a admiração respeitosa pela velhacaria]
[...] O fato mais importante de sua vida é, sem dúvida, votar no governo. Tira nesse dia da arca a roupa preta do casamento, sarjão furadinho de traça e todo vincado de dobras; entala os pés num alentado sapatão de bezerro; ata ao pescoço um colarinho de bico e, sem gravata, ringindo e mancando, vai pegar o diploma de eleitor às mãos do chefe Coisada, que lho retém para maior garantia e fidelidade partidária.
Vota. Não sabe em quem, mas vota. Esfrega a pena no livro eleitoral, arabescando o aranhol de gatafunhos a que chama ‘sua graça’.
Se há tumulto, chuchurreia de pé firme, com heroísmo, as porretadas oposicionistas, e ao cabo segue para a casa do chefe, de galo cívico na testa e colarinho sungado para trás, a fim de novamente lhe depor nas mãos o ‘dipeloma’.
Grato e sorridente, o morubixaba galardoa-lhe o heroísmo, flagrantemente documentado pelo latejar do couro cabeludo, com um aperto de munheca e a promessa, para logo, de uma inspetoria de quarteirão.
Representa esse freguês o tipo clássico do sitiante já com um pé fora da classe [pode-se dizer, o militante do partido]”
Era por aí. E assim se passaram noventa anos, uma quartelada, a de 22, duas revoluções militares, a redemocratização e a posterior “segunda fundação do Brasil”, a de 2002... se ressalvas há a se fazer ao eleitor deste 03 de outubro - cuja vontade, felizmente, é soberana - uma delas, por certo, é ignorar que Afonso Cláudio não é só um município brasileiro contemplado na Wikipédia e que Monteiro Lobato não escreveu só as Reinações de Narizinho. As outras, claro, se ficam só pela constatação do clima tão fantástico de eleições, a população tão mobilizada, paixões à flor da pele...