30 de abril de 2010

O SUPREMO TRIBUNAL E A HISTÓRIA DESTE PAÍS

No desenrolar da marcha cotidiana do Brasil na busca pela democracia plena era inevitável que, quando da chegada ao poder da facção ideológica vencida sistematicamente pelo voto e pelas armas ao longo do século XX, a democracia que construímos nos últimos vinte e cinco anos se defrontasse com seu passado, com a história de sua construção.

A lei 6683/79, cujo § 1.º do art. 1.º era tachado de inconstitucional pela Ordem dos Advogados do Brasil na ADPF 153, foi declarada pelo Supremo Tribunal Federal, neste 29 de abril, conforme à ordem constitucional inaugurada pela Constituição Federal de 1988.

Existem inegáveis dúvidas, em termos de técnica jurídica, quanto à postulação. Seja o discutível interesse de agir, seja a discutível possibilidade jurídica do pedido. De fato, os delitos de sequestro a mão armada, assalto (em linguagem leiga), homicídio, já se encontram fulminados pela prescrição da pretensão punitiva estatal, ao menos trinta anos depois das condutas tachadas de criminosas. Os efeitos da lei que incrimina a tortura, n.º 9.455/97, não podem retroagir para alcançar o período 1961/1979. Tratados internacionais não têm validade automática entre nós. Tipos penais assim definidos devem ser positivados na ordem jurídica nacional para atendimento do princípio da tipicidade. Da mesma forma não podem retroagir a datas pretéritas. Por conta disso os ministros Marco Aurélio e Cesar Peluso entenderam faltar sentido prático à postulação. Por outro lado, um ato jurídico perfeito sob ordem constitucional anterior não poderia ser revisto à luz de uma nova ordem constitucional, ainda que sob a invocação de princípios ditos onipresentes.

Mas a fundamentação maior do pedido não era jurídico, sim político-ideológico - sem qualquer conotação negativa. Era antes uma tentativa de acerto de contas com o passado. Pleiteava-se a revisão do ato jurídico perfeito que concedeu anistia a criminosos de ambos os lados da disputa contemporânea pelo poder. Pleiteava-se a revogação da anistia, uma das maiores expressões de soberania do Estado, comparando o documento legislativo que a corporificou com as instituições de uma nova ordem nacional, numa nova quadra da História nacional. Muito distinta daquela em que foi editado, pela própria necessidade do desenrolar da história dos povos e das nações.

Obviamente a decisão será vendida à população como "Supremo é contra punição de torturadores", ou coisa parecida. Porque a notícia é lançada à população na forma das demandas contemporâneas e apreensíveis por esta, e assim tanto ajuda a moldar essas demandas na população como tem sua cobertura pautada por elas. O quanto ou como ocorre essa interação não é o que importa aqui.

Importa é que o julgamento da ADPF 153 declara expressamente – e nesse sentido essa decisão tem uma inegável matiz declaratória, inclusive no sentido jurídico da expressão – que o Brasil não tem oito anos de História. Ainda que não se possa deixar de reconhecer o protagonismo cada vez maior do povo na História nesses últimos oito anos. O que é mérito inegável da tendência ideológica atualmente no poder e da mesma forma passa a ser demanda irreversível a partir dele. Mas esta é apenas uma quadra da história da relação Estado/povo neste país; a análise histórica se faz de largos períodos de tempo, para assim lhe captar tendências e orientações cientificamente relevantes.

O Supremo Tribunal Federal trouxe a conhecimento da população que as novas demandas, que esse inédito protagonismo popular, só se tornou possível porque num momento definido da História do Brasil costurou-se um acordo entre forças sociais ideologicamente distintas e que se opunham. E que, fazendo concessões mútuas, como assinalou a Ministra Ellen Gracie no seu voto, resolveram construir as bases sobre que se fundaria o futuro. O que permitiu a construção do futuro que hoje é o nosso presente, com as demandas que nele cultivamos, e que não são necessariamente as mesmas que as de outros povos e outras nações.

É inegável o papel da OAB na construção desse pacto pelo futuro. A ação de seus representantes naquela quadra, que se revelava como uma encruzilhada medonha na História do país e onde seus protagonistas não tinham o direito de errar, foi relembrada e honrada na maioria dos votos, com as honras que lhe reservam nossa História recente. Alguns votos negaram mesmo à instituição a possibilidade de renunciar a isto tudo e mudar o que está escrito na sua história, trinta anos depois de escrita.

A História está escrita, não pode ser negada. Pode, sim, ser esquecida, mas não é o que no Supremo Tribunal se deseja. O ministro Celso de Mello invocou precedente contido no RMS 23036 – RJ para lembrar a todos o direito inegável à colheita de dados constantes de órgãos públicos para efeito de pesquisa histórica. Ninguém quer esquecer o passado, ninguém deseja apagá-lo. Pelo contrário, a melhor forma de avançar para o futuro é não repetindo erros um dia já cometidos.

Mas ao declarar que, sim, o passado existe, que por meio de um processo dialético o passado de alguma forma é parte do presente, ao reconhecer que a Lei 6683/79 é o marco fundante da nova ordem que desaguou na convocação da Assembléia Nacional Constituinte (como assinalou o ministro Eros Grau, ele mesmo vítima da repressão, o que legitima seu veredito) o Supremo Tribunal Federal obrigou a democracia brasileira a confrontar-se com a sua própria gênese. Ao afastar de vez o receio do passado pela negação jurídica da possibilidade do acerto de contas, privilegiando, assim, a prestação de contas, deu também o impulso inicial na busca dos fundamentos históricos que permitam reconciliar a nossa democracia com os alicerces políticos de sua construção.