13 de dezembro de 2013

Infraestrutura no Espírito Santo e as Cartas de Muniz Freire ao Imperador


O Jornal A Gazeta desta sexta-feira, 13/12/2013, traz matéria de capa sobre promessas não cumpridas do Governo Federal com relação a obras de infraestrutura no Espírito Santo: o aeroporto, rodovias, ferrovias e porto de mar. O problema, como disse o repórter na matéria, é antigo; não só de décadas, como constou ali, mas de século.

No ano de 2012 o Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo reeditou escritos de um político espírito-santense que tratou diretamente desse assunto, o futuro presidente do estado e senador José de Melo Carvalho Moniz Freire. É que, se o problema precisa continuar a ser atacado hoje em dia, pensamos nós do IHGES que seria interessante dar a conhecer seus antecedentes, e nada melhor que a cruzada de Muniz Freire, que nas suas petições ao Imperador simboliza todo o esforço que vem sendo despendido desde então com relação a esse assunto. 

Transcrevo, abaixo, a minha apresentação da segunda edição da obra de Muniz Freire, pondo a relevo o propósito do autor. 

"Este Cartas a S. M. o Imperador reúne sete editoriais escritos por José de Mello Carvalho Muniz Freire para o jornal Província do Espírito Santo, periódico dirigido por Cleto Nunes e o próprio Muniz Freire.  Em 1885 os textos foram reunidos e publicados em forma de livro, contando trinta e três páginas.
Trata-se de um libelo em defesa da província do Espírito Santo, cujos negócios públicos eram desdenhados e mesmo, a se dar crédito a Muniz Freire, sabotados pelos governos do Império, ao argumento de que a província gastava mais do que produzia.

O Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo considera oportuno tirar uma segunda edição do livreto numa quadra em que o debate sobre a possibilidade de desenvolvimento econômico e social do Espírito Santo volta a ser posta em causa com mais intensidade pelas providências de cunho econômico adotadas pelo governo central, e que repercutem fortemente nas rendas estaduais.

Muniz Freire:

José de Mello Carvalho Muniz Freire foi advogado, político e jornalista. Nasceu em Vitória aos 13 de junho de 1861. Ainda aluno do Atheneu Provincial fundou com colegas o semanário A Aurora, primeiro periódico fundado no Espírito Santo a partir da iniciativa de estudantes. Em 1877 matriculou-se na Faculdade de Direito do Recife, ali vivendo por três anos, até mudar-se para São Paulo, onde se formou, em 1881. No Recife ajudou a fundar A Gazeta Acadêmica, daquela faculdade, e em São Paulo foi redator chefe do O Liberal Acadêmico, ligado ao Partido Liberal. Colaborou, ainda, no Opinião Liberal, de Campinas.

Retornando ao Espírito Santo, no início de 1882, juntou-se ao colega de faculdade Cleto Nunes para fundar o A Província do Espírito Santo, que inicialmente circulou como trissemanário e foi, logo em seguida, o primeiro diário a circular em terras capixabas. Jornal de ideias, colocando em relevo temas cruciais para o desenvolvimento do Espírito Santo, teve repercussão dentro e fora da província, possibilitando a divulgação das ideias de Muniz Freire.

Com sua intensa atividade advocatícia e jornalística, iniciando-se na política, já em 1884 Muniz Freire obteve cadeira na Assembleia Provincial. Encerrado o mandato em 1889, representou o Espírito Santo como deputado geral. Reelegeu-se em 1890 para a Constituinte, até obter o primeiro mandato de Presidente do Estado, de 1892/1896. Findo este primeiro mandato, é designado para representar o Espírito Santo como delegado-geral em Paris de 1887 a 1889. Retornando ao Espírito Santo, reelege-se Presidente do Estado para o quadriênio 1900/1904. Foi senador pelo Espírito Santo de 1906 a 1915, onde continuou sua atuação crítica. Em 1912 protagonizou debates com o senador Bernardino Monteiro acerca de temas afetos à governança do Estado, estando o governo então nas mãos de Jerônimo Monteiro. Muniz Freire faleceu no Rio de Janeiro, a 3 de maio de 1918. É patrono da Cadeira 17 da Academia Espírito-santense de Letras.

O interesse por Muniz Freire e contemporâneos, a exemplo de Afonso Cláudio, vem sendo reavivado ultimamente, ao se lhes reconhecer o papel de construtores da modernidade do Espírito Santo. De fato, atuando num período crucial para a vida do país, aquele da transição entre as formas monárquica e republicana de governo, Muniz Freire e seus contemporâneos tinham quase tudo a construir, a definir, a implantar, agora em novos moldes, em grande medida distintos daqueles em que se assentava até então o modelo de Estado no Brasil. O debate franco de ideias – aliás, na forma exaltada com que se havia o próprio Afonso Cláudio (influência, talvez, de Tobias Barreto?) foi uma forma de iniciar uma carreira de pensador que levou Muniz Freire ao protagonismo executivo, quando, exercendo a mais alta administração estadual, teve a oportunidade de colocar em prática suas ideias.

As Cartas ao Imperador:

Muniz Freire dizia-se liberal antes de republicano. E o era, como comprova, no mínimo, sua atuação em jornais paulistas ligados ao Partido Liberal a que fizemos menção acima. Assim, procurava não criar animosidades com o governo imperial, até mesmo para não atrair má vontade para as causas que propunha.

Acreditando que o desenvolvimento do Espírito Santo estaria ligado, inicialmente, à implantação da via férrea entre Vitória e Natividade, a fim de proporcionar o escoamento da produção, Muniz Freire inicia sua peroração referindo o recente arquivamento, pelo Senado do Império, de um projeto que concedia subvenção a uma empresa de navegação do Rio Doce. Relembra, então, ao Imperador, que não é de pouco tempo que a província “solicitava a escala de todos os paquetes da Companhia Brazileira pelo porto da Victória”, como forma de incrementar o comércio local, e lembra que “a Capital do Amazonas foi dotada com essa navegação, por ocasião da renovação do contrato”.

Ao logo dos sete editoriais, Muniz Freire faz ver a necessidade de se implantar um mínimo de infraestrutura para permitir a exploração das potencialidades da província. Para demonstrar a viabilidade da canalização de verbas públicas para o Espírito Santo, apresenta dados contábeis que demonstram que as rendas aqui geradas integravam-se ao caixa geral do Tesouro, sem maiores proveitos locais – antes, vendo-se a nível nacional o simples arquivamento/adiamento de pleitos que considerava serem direitos da província, a exemplo do referido projeto sobre a recorrente questão da navegação do Rio Doce, o adiamento da construção dos prédios da Caixa Econômica e da Alfândega e a substituição do projeto de construção da via férrea da Natividade por um outro, mais oneroso e demorado.

Encampando a opinião de Inglês de Souza, que no seu Relatório de Governo, em 1882, propugnava para Vitória um papel de centralização na atividade comercial da província (como constatei em “O Acadêmico Inglês de Souza e a presidência da Província do Espírito Santo”, Revista da Academia Espírito-santense de Letras, 2007, p. 55 e ss) Muniz Freire observa que “o engrandecimento desta província depende da concentração de suas forças, da convergência de todos os elementos prósperos para esta capital”. Sugere, ao final das Cartas, a subvenção da navegação do Rio Doce para o escoamento da produção do norte de Minas Gerais e o prolongamento da estrada de ferro de Carangola a Cachoeiro de Itapemirim, como meio de trazer ao Baixo Itapemirim, e daí até Vitória, a produção do sul, bem como a subvenção da navegação entre os portos da província e entre Vitória e a Corte, por um lado, e portos estrangeiros, por outro.

Como referido, a divulgação das ideias de Muniz Freire na província e fora dela foram determinantes na formatação de sua vitoriosa carreira política, que contemplou demandas de interesse geral, a exemplo da questão do voto secreto.

A atualidade das Cartas ao Imperador:

Os tempos são outros, mas as dificuldades a nível nacional para o Espírito Santo parecem se mostrar as mesmas. Para Muniz Freire, estas dificuldades tinham sua gênese na equivocada percepção, pelo governo central, de que a província era deficitária, o que provou ao longo dos textos não ser verdade.

A cruzada de Muniz Freire é uma questão recorrente e atual. As demandas estaduais, passados quase cento e trinta anos da publicação das Cartas, permanecem, no fundo, as mesmas. Os infindáveis problemas de ordem burocrática impedem a implantação de uma infraestrutura moderna e mais eficiente no Espírito Santo. As questões referentes ao aeroporto da Capital, da duplicação da BR -101 e da modernização dos portos, da rediscussão de alíquotas de impostos estaduais e da regulação do marco exploratório de petróleo no seu litoral, como noticiado regularmente na imprensa local, parecem obstruir a plena concretização da vocação de entreposto comercial do estado. Esse papel, preconizado por muitos ao Espírito Santo, depende de eficiência na utilização de seus recursos naturais e de uma logística que possa lançar mão de infraestrutura adequada, sem o que os índices de desenvolvimento regional parece restarão sempre dificultados.

A reversão desse quadro passa, também, pela conscientização da população, visando a uma maior participação de todos nos debates e notadamente na fiscalização dos gastos públicos. E a conscientização se faz, também, pelo resgate das origens do problema e da atuação dos que dele se ocuparam ao longo do tempo, o que pretende o Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo com esta reedição dos escritos de Muniz Freire.       

A presente edição:

Este volume trata-se da reedição de Cartas a S. M. o Imperador: Editoriaes da “A Província do Espírito Santo”, publicado em Vitória na forma de livro em 1885, edição da Tipografia d’ A Província, originalmente em 33 páginas; reúne sete editoriais redigidos por Muniz Freire para o jornal de que era diretor e redator.

Na sua elaboração foi utilizada uma cópia pertencente aos arquivos do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, ficando a digitação a cargo de Luciene Gomes de Sá. A grafia original foi mantida para maior fidelidade".


9 de dezembro de 2013

Sabalogos gastronômico: de volta

Henrique Herkenhoff, Pedro Nunes, Fernando Achiamé,
 o autor, Ivan Borgo, Caco Appel, Carlos Campos Jr.

Era um dia sete de dezembro. Dia, aliás, como outro qualquer, não precedesse ele, no calendário, o dia oito de dezembro, Dia de Nossa Senhora da Conceição, que batizou tantas meninas Brasil afora ao longo dos tempos e é evocação da padroeira (entre outros dignos de menção) do Botafogo de Futebol e Regatas.  E não fosse, esse dia sete de dezembro, um sábado – portanto, dia de Sabalogos. Que, como em todos os outros sábados, já lá se vão mais de vinte anos, realizam-se no recanto Renato Pacheco da Livraria Logos da Praia do Suá.

Nessa véspera da Imaculada Conceição do ano de 2013, porém, dois acontecimentos tornaram esse encontro dos sabalógicos diferente dos demais: primeiro, a presença de um grupo literário que atende pelo nome de “Confraria dos Bardos”, rapazes e moças cheios das melhores intenções; porque, como rapazes e moças saudáveis, poderiam estar a se ocupar de festas regadas a sertanejos e energéticos, mas não, ocupam-se, também, de Literatura. O que autoriza pensar que a derrocada final pode não estar assim tão próxima quanto supomos assistindo ao noticiário televisivo.

Recebido o grupo literário, desfrutada sua companhia, com direito a registro digital devidamente encaminhado ao facebook, impunha-se, então, partir para o segundo acontecimento da sessão sabalógica diferenciada daquele dia sete de dezembro: o almoço agendado entre os confrades.

Ora, não é, um almoço, simples reunião de congraçamento entre amigos que se estimam e se vêm regulamente - e, o melhor de tudo, para tratar de amenidades, de assuntos agradáveis? Não, impõe-se a resposta. Não se tratava de simplesmente acordar um churrasco entre amigos, que de carnes se compôs o cardápio daquele dia. E a explicação: é que esse saudável hábito sabalógico, de uma regularidade a toda prova em tempos pretéritos, foi sendo abandonado há tempos, aproximadamente dez anos, como que num período de luto guardado pelo grupo em honra dos que se foram das reuniões, todos eles muito mais capacitados, em todos os sentidos – garfos, inclusive – que os remanescentes. Atordoados remanescentes, diga-se, que sem os valorosos extintos a lhes capitanear as excursões gastronômicas que se faziam uma vez por mês a pontos escolhidos da capital, deixaram-se abater e assim dispersar aquela que talvez fosse a marca maior dos encontros, uma extensão autorizada destes (descontado aí, Pedro Nunes, o registro material mais perene da tertúlia, o Mulheres: diversa caligrafia).

Mas tudo correu bem naquele dia, e para alegria do núcleo inicial de organizadores registrou-se a adesão de outros confrades que foram se chegando de última hora, ainda ao local da tertúlia, até que a representação gastronômica acabou fechando em sete, como marcava o calendário. Número mágico, cabalístico, evoca mistérios ao menos desde os tempos dos Sete Contra Tebas, mas a que – Ésquilo bem o registrou – havia cidadela que resistisse.

Não o estabelecimento que nos acolheu; esse não pôde resistir ao talento dos sete circunstantes (que a essa condição se passaram então os confrades tertulianos), sempre alertas, porque constantemente desafiados pelos espetos que traziam direto do fogo a carne consumida de montão. Foram muitos os acontecimentos dignos de nota naquelas pouco mais de três horas; o maior de todos, sem dúvida, a prova do vinho, ritual arraigado, a cargo do expert, que o temos: Ivan Borgo, que comemorava ali a distribuição (que só isso sua modéstia permitiu) de seu recém-tirado do prelo Chão de Araguaia.

As palestras entre os circunstantes, a presença de um coral campo-grandense (dos campos do Mato Grosso do Sul), ciceroneado em terras capixabas pela poetisa Valsema Rodrigues da Costa e que nos brindou a todos com um número musical, tudo isso a se conferir na ata a cargo de Pedro J. Nunes, idealizador do encontro e secretário dos trabalhos desde a expedição dos convites. Sua pena afiada e certeira haverá de perenizar o quanto se passou naquela tarde, que registro perene merece esse retorno ao hábito irrepreensível da tertúlia sabadal.

Eu creio que alguns dos ausentes podem nos ter invejado saudavelmente naquelas horas. Ao menos tenho para mim que alguns deles invejariam, se por aqui estivessem, porque daqueles encontros passados me lembro muito bem de como prezavam o vinho, o convívio, a comida, ainda que não seja essa a ordem apropriada de enumerar as coisas, e ainda que não interesse muito qual seja.

Continuemos, é o que se pode dizer a todos. Que os que não compareceram dessa vez possam comparecer da próxima, que é o que esperamos - que muitas próximas ocasiões se apesentem. Até porque, eu penso, é o retorno a essas excursões gastronômicas, ao hábito que abandonamos não se sabe bem como, que vai realçar e valorizar o silêncio dos garfos e facas e copos por todo esse tempo que não nos animamos a celebrar à mesa a memória daqueles dias.

No mais, aguardemos a ata.

8 de dezembro de 2013

Da Imortalidade Acadêmica


Leem-se, vez em quando, comentários irônicos sobre os ditos imortais, os ocupantes das cadeiras vitalícias das Academias de Letras, que felizmente pululam pelo Brasil afora. Felizmente, porque o letrar-se (no sentido de adquirir luzes, ou seja, instrução) não tem sido das atividades mais prezadas por estas paragens, onde não profissionais guindados a postos públicos de destaque não se dão conta, por exemplo, do que um museu possa ter a ver com educação. Console-nos o fato de que, na construção do processo dialético da história da sociedade brasileira, certamente essa quadra que atravessamos se prestará a algum fim.

Mas de que se trata essa imortalidade que as Academias de Letras se autoproclamam, numa aparente afronta aos reles mortais, que somos todos nós, e mais ainda os que não pertencem a tais confrarias?

Camões, poeta maior da língua, na segunda oitava do Canto Primeiro d’Os Lusíadas, esclarece que o objeto de seu louvor ali são os mandatários sob cujas ordens o Império Português dilatou-se em terras de África e Ásia (terras viciosas, porque não guardavam os costumes lusitanos); mas também todos aqueles que, por seus feitos, por suas “obras valerosas”, “se vão da lei da Morte libertando”.

Ora, qual é a lei da Morte? Ou, qual a consequência desta? Sabemos todos: extinção física da pessoa, seu desaparecimento debaixo de nossas vistas, de tal sorte que, com o decorrer desse derradeiro desfecho da existência terrena, resta-nos tão somente a lembrança do extinto. Que, é certo, poderá ser distinta, nas distintas esferas da sua atuação, a pública e a privada. De início não é esta última que está em causa, aqui: não há mérito maior (ou não deveria haver) no alguém ter sido em vida bom pai, bom marido, cumpridor de seus deveres e ciente de seus direitos.

A atuação destacada na esfera pública, aquela externa à vida privada de cada um, é o que lhe granjeia fama, a repercussão da sua conduta, dos seus bons e maus feitos. Como, para o poeta, “as vitórias que tiveram” Alexandre, o Grande, da Macedônia, e Trajano, Imperador de Roma, titulado pelo Senado “Optimus Princeps”.

Ovídio descreve Fama como uma divindade que habita um palácio de bronze, nos confins da terra, do mar e do céu, palácio este que tinha mil aberturas, por onde entravam todas as vozes, por mais débeis que fossem, ressoando incessantemente nas paredes metálicas. Como permanecia aberto, esse palácio amplificava todas as vozes que até lá chegavam. Essa metáfora do gênio clássico é bastante para entendermos o mecanismo que rege o fenômeno. Hoje, tempos que se desejam racionais, em que os mitos não servem mais para explicar os fatos humanos, a fama alça voo nas asas da opinião pública, ou seja, os meios de comunicação, que a sustentam e a repercutem como as paredes de bronze do palácio mítico de Ovídio.

Grandes feitos se faziam da pena ou de armas, e já lembrava Gregório de Matos ser questão “mui antiga e altercada” entre letrados e milicianos saber-se quais os mais destacados. Eram estes os feitos que então granjeavam fama a seus autores. Ao contrário do que ocorre hoje, depois da eleição da vida comum, do cotidiano, como objeto preferencial de cogitação da História. A consequência é que a esfera privada, com seus feitos no varejo, passou ultimamente a ressoar no palácio de bronze da opinião pública com a mesma intensidade que os grandes feitos, porque o homem tem necessidade de reconhecer-se nos exemplos, e não há dúvida quanto a ser mais fácil realizar pequenos do que grandes feitos.

Assim, não é estranho ao humano o guardar a fama de grandes feitos ou de algum que se destaque (se vá da lei da Morte libertando), seja por estes mesmos feitos, ou, o mais comum hoje em dia, por dotes pessoais, aliás, desde sempre valorizados, como astúcia e beleza física. É fato que a fama nascida destes dotes pessoais, via de regra, empalidece com o tempo, ao passo que aquela que decorre da prática de grandes feitos se estende. É, por vezes, imorredoura. Isto é, a obra, boa ou má, sobrevive ao homem, na fama que lhe vem dessa mesma obra.

Toda essa argumentação até aqui é de fatos sabidos, é corriqueiro, não depende de demonstração, é premissa de que se parte para outras argumentações. As Academias de Letras, assim, funcionam como arquivos de grandes obras, grandes a critério não só da opinião pública, a dos meios de comunicação, mas também da opinião popular; do gosto contemporâneo, em suma. E é nela que vai buscar ressonância a fama dos acadêmicos, na repetição de sua obra assim guardada, e isso de acordo com o gosto dos tempos.

Então, e como é óbvio, a imortalidade cultivada nas Academias de Letras não é a física, impossível, mas aquela dos feitos de Letras praticados em vida pelo imortal. Nas palavras autorizadas de Josué Montelo: “Nossa imortalidade, ao contrário do que se presume lá fora, não é a vida perene – é apenas o nome repetido”. As Academias de Letras são, portanto, perenes na materialização de um ideal, o de conservar no tempo as boas obras do extinto, de repetir-lhe o nome, mantendo-lhe a fama das vitórias que teve no campo das Letras.

Como se pretende essa conservação? Na prática, por meio do ritual de substituição, materializado nas palavras “do companheiro que chega para substituir o companheiro que se foi”, que é de praxe no discurso de posse do novel acadêmico. É que, prossegue Montelo, “a repetição do nome, que conduz à ressurreição da glória literária, constitui todo o nosso mistério. Uma geração vai, outra geração vem, e assim como repetimos os nomes dos nossos antecessores, nossos sucessores repetirão o nosso nome, com igual sentimento de veneração afetuosa”.   

Neste sentido, as Academias de Letras são casas de memória, da memória que importa guardar para conservação de obras intelectuais tidas por grandes pelos contemporâneos. É que, lembrava Barbosa Lima Sobrinho, também “nas Academias se passam as obras [...] e se passa o rumor da glória à sua volta”. A lei da Morte é implacável: o que fica é a memória.

E como se chega à Academia? Não há dúvida de que, sendo um local de convívio, as características pessoais do candidato hão de ser sopesadas pelos eleitores. Não se desejará conviver com alguém cujo convívio não nos seja agradável. Mas isso nem de longe significa exigência de uniformidade de pensamento ou de gosto estético; já chamava a atenção Viriato Correia para o fato de que, sob este aspecto, a Academia é bastante democrática: “Assim como no mar fanejam as bandeiras de todas as nacionalidades, as bandeiras de todas as escolas literárias tremulam aqui dentro”.

Como instituição democrática, a Academia acolhe até mesmo aqueles que atentam contra ela própria, geralmente acusando-a de conservadorismo, de emperrar a evolução estética do gosto, etc, como no caso do rompimento público de Graça Aranha com a Academia Brasileira. Era dos tempos: o grande Graça Aranha é tido na conta de precursor do movimento Modernista que na década de 20 do século passado soprou novos ares sobre a cultura brasileira em geral. Interessante é que, sobre este ponto em particular, vaticinava Josué Montelo que “a originalidade da Academia, como instituição conservadora, é que ela aceita os revolucionários, sem exigir que reneguem a revolução.” É fato: Graça Aranha, mesmo rompido com a Academia, continuou acadêmico para os estatutos da instituição, até que sua cadeira vagasse com o seu passamento, como é de regra. Ou seja, o bom e velho Graça, sem se dar conta, nada mais fez que encarnar, à sua maneira desastrada, o próprio espírito da Academia: como advertia Josué Montelo, “[a polêmica] faz parte da condição acadêmica. É por espírito polêmico que nos metemos neste fardão. É por espírito polêmico que entramos aqui. É por espírito polêmico que aqui permanecemos.”

Mas não se pretenda chegar à Academia só pela amizade dos demais acadêmicos, sem ter na bagagem uma obra com que se apresentar a eles. Obra, aqui, não como sinônimo de livro, simplesmente, mas como sinônimo de um trabalho, construído ao longo do tempo de atuação do candidato, e que geralmente é materializado, no ramo das Letras, em livros publicados – neste sentido, o estatuto da Academia Brasileira, bem como o da Espírito-santense, exige obra publicada para alguém candidatar-se a uma cadeira. Mas se, via de regra, não se pode dizer que o autor de um só livro publicado já seja detentor de uma obra, é perfeitamente possível que a publicação de um só livro materialize a obra de um candidato. Por isso não se fala expressamente em obra do candidato quando da seleção para uma cadeira vaga, mas da sua pessoa. Implícito aí está o conjunto das suas realizações materiais.

Frise-se, portanto: não se chega à Academia sem uma obra. Viriato Correia já advertia, no seu discurso de posse, que “a Academia não permite que alguém transponha de mãos vazias os seus umbrais. Aqui só se entra carregando a bagagem. A bagagem é o Abre-te Sésamo destas portas”; ou, por outra: “A Academia não dá nome a ninguém. Aqui dentro ninguém edifica a sua glória”, acrescentou. É exatamente sobre que estamos falando.

Se na apreciação da candidatura a obra não pode deixar de ser considerada, como se aquilata da obra do candidato? A verdade é que todas essas considerações sobre obra se mostrariam extremamente subjetivas se não se pudesse materializá-la, a obra, numa forma objetiva. Como referido, no ramo das Letras esse trabalho pessoal se materializa, via de regra, na forma de livros publicados. Não por outro motivo o art. 2.º do Estatuto da Academia Brasileira dispõe “só podem ser membros efetivos da Academia os brasileiros que tenham, em qualquer dos gêneros de literatura, publicado obras de reconhecido mérito ou, fora desses gêneros, livro de valor literário”. Mérito e valor literário são noções subjetivas, de cada um dos eleitores e do público em geral. Nesta matéria há de prevalecer, sempre, o gosto dominante na Academia em cada época, pela maioria dos acadêmicos eleitores. Assim, e na tentativa de uma resposta à indagação acima, o que garante a possibilidade de convivência na Academia de obras tão distintas, e mesmo de gosto duvidoso para uns mais que para outros, é justamente o caráter democrático da Casa, o seu perfil de abrigar igualmente as diversas correntes estéticas, como referido por Viriato Correia.

Mas se a fama de seus feitos é cogitada ao lhe abrirem as portas, não se espera do que chega mantenha-se estabilizado no berço esplêndido da repercussão que o levou até lá. Dele, ao contrário, se espera perseverança no trabalho, para engrandecimento da Casa que doravante lhe dará abrigo. Joaquim Nabuco, por ocasião da instalação da Academia Brasileira, refletia sobre o ponto com seus pares: “porque, senhores, qual é o princípio vital literário que precisamos criar por meio desta Academia, como se compõe a matéria orgânica em laboratórios de química? É a responsabilidade do escritor, a consciência dos seus deveres para com sua inteligência, o dever superior da perfeição, o desprezo da reputação pela obra”, alertando exatamente para o ponto de que a obra do acadêmico não está acabada. Ainda que Nabuco tenha concedido ao acadêmico a não obrigação de exceder-se a si próprio (“não o forcemos, querendo que se exceda a si mesmo, a refazer-se, uma e mais vezes, a viver da sua reputação, diminuindo-a sempre”), um princípio permanece inalterado desde o início do movimento acadêmico entre nós: “a uma Academia importa mais elevar o culto das letras, o valor do esforço, do que realçar o talento do escritor”, nas palavras do primeiro secretário-geral da Academia Brasileira.

Posto isto, avanço conclusão possível sobre a questão inicialmente posta: o que leva à imortalidade acadêmica é a participação, desde o ingresso na Casa, no ideal de preservação de grandes momentos das Letras cristalizados nas obras dos que ali foram ter. Porque é a operação de soma das obras dos acadêmicos, para engrandecimento da Academia, que dá sentido a relembrar-se a obra de cada um, não permitindo que desapareça com o tempo. Afinal, como advertiu Nabuco, “nós pretendemos somente defender as fontes do gênio, da poesia e da arte, que estão quase todas no prestígio, ou, antes, na dignidade da profissão literária”. O que, convenhamos, não é pouca coisa.