8 de dezembro de 2013

Da Imortalidade Acadêmica


Leem-se, vez em quando, comentários irônicos sobre os ditos imortais, os ocupantes das cadeiras vitalícias das Academias de Letras, que felizmente pululam pelo Brasil afora. Felizmente, porque o letrar-se (no sentido de adquirir luzes, ou seja, instrução) não tem sido das atividades mais prezadas por estas paragens, onde não profissionais guindados a postos públicos de destaque não se dão conta, por exemplo, do que um museu possa ter a ver com educação. Console-nos o fato de que, na construção do processo dialético da história da sociedade brasileira, certamente essa quadra que atravessamos se prestará a algum fim.

Mas de que se trata essa imortalidade que as Academias de Letras se autoproclamam, numa aparente afronta aos reles mortais, que somos todos nós, e mais ainda os que não pertencem a tais confrarias?

Camões, poeta maior da língua, na segunda oitava do Canto Primeiro d’Os Lusíadas, esclarece que o objeto de seu louvor ali são os mandatários sob cujas ordens o Império Português dilatou-se em terras de África e Ásia (terras viciosas, porque não guardavam os costumes lusitanos); mas também todos aqueles que, por seus feitos, por suas “obras valerosas”, “se vão da lei da Morte libertando”.

Ora, qual é a lei da Morte? Ou, qual a consequência desta? Sabemos todos: extinção física da pessoa, seu desaparecimento debaixo de nossas vistas, de tal sorte que, com o decorrer desse derradeiro desfecho da existência terrena, resta-nos tão somente a lembrança do extinto. Que, é certo, poderá ser distinta, nas distintas esferas da sua atuação, a pública e a privada. De início não é esta última que está em causa, aqui: não há mérito maior (ou não deveria haver) no alguém ter sido em vida bom pai, bom marido, cumpridor de seus deveres e ciente de seus direitos.

A atuação destacada na esfera pública, aquela externa à vida privada de cada um, é o que lhe granjeia fama, a repercussão da sua conduta, dos seus bons e maus feitos. Como, para o poeta, “as vitórias que tiveram” Alexandre, o Grande, da Macedônia, e Trajano, Imperador de Roma, titulado pelo Senado “Optimus Princeps”.

Ovídio descreve Fama como uma divindade que habita um palácio de bronze, nos confins da terra, do mar e do céu, palácio este que tinha mil aberturas, por onde entravam todas as vozes, por mais débeis que fossem, ressoando incessantemente nas paredes metálicas. Como permanecia aberto, esse palácio amplificava todas as vozes que até lá chegavam. Essa metáfora do gênio clássico é bastante para entendermos o mecanismo que rege o fenômeno. Hoje, tempos que se desejam racionais, em que os mitos não servem mais para explicar os fatos humanos, a fama alça voo nas asas da opinião pública, ou seja, os meios de comunicação, que a sustentam e a repercutem como as paredes de bronze do palácio mítico de Ovídio.

Grandes feitos se faziam da pena ou de armas, e já lembrava Gregório de Matos ser questão “mui antiga e altercada” entre letrados e milicianos saber-se quais os mais destacados. Eram estes os feitos que então granjeavam fama a seus autores. Ao contrário do que ocorre hoje, depois da eleição da vida comum, do cotidiano, como objeto preferencial de cogitação da História. A consequência é que a esfera privada, com seus feitos no varejo, passou ultimamente a ressoar no palácio de bronze da opinião pública com a mesma intensidade que os grandes feitos, porque o homem tem necessidade de reconhecer-se nos exemplos, e não há dúvida quanto a ser mais fácil realizar pequenos do que grandes feitos.

Assim, não é estranho ao humano o guardar a fama de grandes feitos ou de algum que se destaque (se vá da lei da Morte libertando), seja por estes mesmos feitos, ou, o mais comum hoje em dia, por dotes pessoais, aliás, desde sempre valorizados, como astúcia e beleza física. É fato que a fama nascida destes dotes pessoais, via de regra, empalidece com o tempo, ao passo que aquela que decorre da prática de grandes feitos se estende. É, por vezes, imorredoura. Isto é, a obra, boa ou má, sobrevive ao homem, na fama que lhe vem dessa mesma obra.

Toda essa argumentação até aqui é de fatos sabidos, é corriqueiro, não depende de demonstração, é premissa de que se parte para outras argumentações. As Academias de Letras, assim, funcionam como arquivos de grandes obras, grandes a critério não só da opinião pública, a dos meios de comunicação, mas também da opinião popular; do gosto contemporâneo, em suma. E é nela que vai buscar ressonância a fama dos acadêmicos, na repetição de sua obra assim guardada, e isso de acordo com o gosto dos tempos.

Então, e como é óbvio, a imortalidade cultivada nas Academias de Letras não é a física, impossível, mas aquela dos feitos de Letras praticados em vida pelo imortal. Nas palavras autorizadas de Josué Montelo: “Nossa imortalidade, ao contrário do que se presume lá fora, não é a vida perene – é apenas o nome repetido”. As Academias de Letras são, portanto, perenes na materialização de um ideal, o de conservar no tempo as boas obras do extinto, de repetir-lhe o nome, mantendo-lhe a fama das vitórias que teve no campo das Letras.

Como se pretende essa conservação? Na prática, por meio do ritual de substituição, materializado nas palavras “do companheiro que chega para substituir o companheiro que se foi”, que é de praxe no discurso de posse do novel acadêmico. É que, prossegue Montelo, “a repetição do nome, que conduz à ressurreição da glória literária, constitui todo o nosso mistério. Uma geração vai, outra geração vem, e assim como repetimos os nomes dos nossos antecessores, nossos sucessores repetirão o nosso nome, com igual sentimento de veneração afetuosa”.   

Neste sentido, as Academias de Letras são casas de memória, da memória que importa guardar para conservação de obras intelectuais tidas por grandes pelos contemporâneos. É que, lembrava Barbosa Lima Sobrinho, também “nas Academias se passam as obras [...] e se passa o rumor da glória à sua volta”. A lei da Morte é implacável: o que fica é a memória.

E como se chega à Academia? Não há dúvida de que, sendo um local de convívio, as características pessoais do candidato hão de ser sopesadas pelos eleitores. Não se desejará conviver com alguém cujo convívio não nos seja agradável. Mas isso nem de longe significa exigência de uniformidade de pensamento ou de gosto estético; já chamava a atenção Viriato Correia para o fato de que, sob este aspecto, a Academia é bastante democrática: “Assim como no mar fanejam as bandeiras de todas as nacionalidades, as bandeiras de todas as escolas literárias tremulam aqui dentro”.

Como instituição democrática, a Academia acolhe até mesmo aqueles que atentam contra ela própria, geralmente acusando-a de conservadorismo, de emperrar a evolução estética do gosto, etc, como no caso do rompimento público de Graça Aranha com a Academia Brasileira. Era dos tempos: o grande Graça Aranha é tido na conta de precursor do movimento Modernista que na década de 20 do século passado soprou novos ares sobre a cultura brasileira em geral. Interessante é que, sobre este ponto em particular, vaticinava Josué Montelo que “a originalidade da Academia, como instituição conservadora, é que ela aceita os revolucionários, sem exigir que reneguem a revolução.” É fato: Graça Aranha, mesmo rompido com a Academia, continuou acadêmico para os estatutos da instituição, até que sua cadeira vagasse com o seu passamento, como é de regra. Ou seja, o bom e velho Graça, sem se dar conta, nada mais fez que encarnar, à sua maneira desastrada, o próprio espírito da Academia: como advertia Josué Montelo, “[a polêmica] faz parte da condição acadêmica. É por espírito polêmico que nos metemos neste fardão. É por espírito polêmico que entramos aqui. É por espírito polêmico que aqui permanecemos.”

Mas não se pretenda chegar à Academia só pela amizade dos demais acadêmicos, sem ter na bagagem uma obra com que se apresentar a eles. Obra, aqui, não como sinônimo de livro, simplesmente, mas como sinônimo de um trabalho, construído ao longo do tempo de atuação do candidato, e que geralmente é materializado, no ramo das Letras, em livros publicados – neste sentido, o estatuto da Academia Brasileira, bem como o da Espírito-santense, exige obra publicada para alguém candidatar-se a uma cadeira. Mas se, via de regra, não se pode dizer que o autor de um só livro publicado já seja detentor de uma obra, é perfeitamente possível que a publicação de um só livro materialize a obra de um candidato. Por isso não se fala expressamente em obra do candidato quando da seleção para uma cadeira vaga, mas da sua pessoa. Implícito aí está o conjunto das suas realizações materiais.

Frise-se, portanto: não se chega à Academia sem uma obra. Viriato Correia já advertia, no seu discurso de posse, que “a Academia não permite que alguém transponha de mãos vazias os seus umbrais. Aqui só se entra carregando a bagagem. A bagagem é o Abre-te Sésamo destas portas”; ou, por outra: “A Academia não dá nome a ninguém. Aqui dentro ninguém edifica a sua glória”, acrescentou. É exatamente sobre que estamos falando.

Se na apreciação da candidatura a obra não pode deixar de ser considerada, como se aquilata da obra do candidato? A verdade é que todas essas considerações sobre obra se mostrariam extremamente subjetivas se não se pudesse materializá-la, a obra, numa forma objetiva. Como referido, no ramo das Letras esse trabalho pessoal se materializa, via de regra, na forma de livros publicados. Não por outro motivo o art. 2.º do Estatuto da Academia Brasileira dispõe “só podem ser membros efetivos da Academia os brasileiros que tenham, em qualquer dos gêneros de literatura, publicado obras de reconhecido mérito ou, fora desses gêneros, livro de valor literário”. Mérito e valor literário são noções subjetivas, de cada um dos eleitores e do público em geral. Nesta matéria há de prevalecer, sempre, o gosto dominante na Academia em cada época, pela maioria dos acadêmicos eleitores. Assim, e na tentativa de uma resposta à indagação acima, o que garante a possibilidade de convivência na Academia de obras tão distintas, e mesmo de gosto duvidoso para uns mais que para outros, é justamente o caráter democrático da Casa, o seu perfil de abrigar igualmente as diversas correntes estéticas, como referido por Viriato Correia.

Mas se a fama de seus feitos é cogitada ao lhe abrirem as portas, não se espera do que chega mantenha-se estabilizado no berço esplêndido da repercussão que o levou até lá. Dele, ao contrário, se espera perseverança no trabalho, para engrandecimento da Casa que doravante lhe dará abrigo. Joaquim Nabuco, por ocasião da instalação da Academia Brasileira, refletia sobre o ponto com seus pares: “porque, senhores, qual é o princípio vital literário que precisamos criar por meio desta Academia, como se compõe a matéria orgânica em laboratórios de química? É a responsabilidade do escritor, a consciência dos seus deveres para com sua inteligência, o dever superior da perfeição, o desprezo da reputação pela obra”, alertando exatamente para o ponto de que a obra do acadêmico não está acabada. Ainda que Nabuco tenha concedido ao acadêmico a não obrigação de exceder-se a si próprio (“não o forcemos, querendo que se exceda a si mesmo, a refazer-se, uma e mais vezes, a viver da sua reputação, diminuindo-a sempre”), um princípio permanece inalterado desde o início do movimento acadêmico entre nós: “a uma Academia importa mais elevar o culto das letras, o valor do esforço, do que realçar o talento do escritor”, nas palavras do primeiro secretário-geral da Academia Brasileira.

Posto isto, avanço conclusão possível sobre a questão inicialmente posta: o que leva à imortalidade acadêmica é a participação, desde o ingresso na Casa, no ideal de preservação de grandes momentos das Letras cristalizados nas obras dos que ali foram ter. Porque é a operação de soma das obras dos acadêmicos, para engrandecimento da Academia, que dá sentido a relembrar-se a obra de cada um, não permitindo que desapareça com o tempo. Afinal, como advertiu Nabuco, “nós pretendemos somente defender as fontes do gênio, da poesia e da arte, que estão quase todas no prestígio, ou, antes, na dignidade da profissão literária”. O que, convenhamos, não é pouca coisa.