Leem-se,
vez em quando, comentários irônicos sobre os ditos imortais, os ocupantes das
cadeiras vitalícias das Academias de Letras, que felizmente pululam pelo Brasil
afora. Felizmente, porque o letrar-se (no sentido de adquirir luzes, ou seja,
instrução) não tem sido das atividades mais prezadas por estas paragens, onde
não profissionais guindados a postos públicos de destaque não se dão conta, por
exemplo, do que um museu possa ter a ver com educação. Console-nos o fato de
que, na construção do processo dialético da história da sociedade brasileira,
certamente essa quadra que atravessamos se prestará a algum fim.
Mas
de que se trata essa imortalidade que as Academias de Letras se autoproclamam,
numa aparente afronta aos reles mortais, que somos todos nós, e mais ainda os
que não pertencem a tais confrarias?
Camões,
poeta maior da língua, na segunda oitava do Canto Primeiro d’Os Lusíadas, esclarece que o objeto de
seu louvor ali são os mandatários sob cujas ordens o Império Português
dilatou-se em terras de África e Ásia (terras viciosas, porque não guardavam os
costumes lusitanos); mas também todos aqueles que, por seus feitos, por suas “obras
valerosas”, “se vão da lei da Morte libertando”.
Ora,
qual é a lei da Morte? Ou, qual a consequência desta? Sabemos todos: extinção
física da pessoa, seu desaparecimento debaixo de nossas vistas, de tal sorte
que, com o decorrer desse derradeiro desfecho da existência terrena, resta-nos
tão somente a lembrança do extinto. Que, é certo, poderá ser distinta, nas
distintas esferas da sua atuação, a pública e a privada. De início não é esta
última que está em causa, aqui: não há mérito maior (ou não deveria haver) no
alguém ter sido em vida bom pai, bom marido, cumpridor de seus deveres e ciente
de seus direitos.
A
atuação destacada na esfera pública, aquela externa à vida privada de cada um, é
o que lhe granjeia fama, a repercussão da sua conduta, dos seus bons e maus
feitos. Como, para o poeta, “as vitórias que tiveram” Alexandre, o Grande, da
Macedônia, e Trajano, Imperador de Roma, titulado pelo Senado “Optimus
Princeps”.
Ovídio
descreve Fama como uma divindade que habita um palácio de bronze, nos confins
da terra, do mar e do céu, palácio este que tinha mil aberturas, por onde
entravam todas as vozes, por mais débeis que fossem, ressoando incessantemente
nas paredes metálicas. Como permanecia aberto, esse palácio amplificava todas as
vozes que até lá chegavam. Essa metáfora do gênio clássico é bastante para
entendermos o mecanismo que rege o fenômeno. Hoje, tempos que se desejam
racionais, em que os mitos não servem mais para explicar os fatos humanos, a
fama alça voo nas asas da opinião pública, ou seja, os meios de comunicação, que
a sustentam e a repercutem como as paredes de bronze do palácio mítico de
Ovídio.
Grandes
feitos se faziam da pena ou de armas, e já lembrava Gregório de Matos ser
questão “mui antiga e altercada” entre letrados e milicianos saber-se quais os
mais destacados. Eram estes os feitos que então granjeavam fama a seus autores.
Ao contrário do que ocorre hoje, depois da eleição da vida comum, do cotidiano,
como objeto preferencial de cogitação da História. A consequência é que a
esfera privada, com seus feitos no varejo, passou ultimamente a ressoar no
palácio de bronze da opinião pública com a mesma intensidade que os grandes
feitos, porque o homem tem necessidade de reconhecer-se nos exemplos, e não há
dúvida quanto a ser mais fácil realizar pequenos do que grandes feitos.
Assim,
não é estranho ao humano o guardar a fama de grandes feitos ou de algum que se
destaque (se vá da lei da Morte libertando), seja por estes mesmos feitos, ou, o
mais comum hoje em dia, por dotes pessoais, aliás, desde sempre valorizados,
como astúcia e beleza física. É fato que a fama nascida destes dotes pessoais,
via de regra, empalidece com o tempo, ao passo que aquela que decorre da prática
de grandes feitos se estende. É, por vezes, imorredoura. Isto é, a obra, boa ou
má, sobrevive ao homem, na fama que lhe vem dessa mesma obra.
Toda
essa argumentação até aqui é de fatos sabidos, é corriqueiro, não depende de
demonstração, é premissa de que se parte para outras argumentações. As
Academias de Letras, assim, funcionam como arquivos de grandes obras, grandes a
critério não só da opinião pública, a dos meios de comunicação, mas também da
opinião popular; do gosto contemporâneo, em suma. E é nela que vai buscar
ressonância a fama dos acadêmicos, na repetição de sua obra assim guardada, e
isso de acordo com o gosto dos tempos.
Então,
e como é óbvio, a imortalidade cultivada nas Academias de Letras não é a
física, impossível, mas aquela dos feitos de Letras praticados em vida pelo
imortal. Nas palavras autorizadas de Josué Montelo: “Nossa imortalidade, ao
contrário do que se presume lá fora, não é a vida perene – é apenas o nome
repetido”. As Academias de Letras são, portanto,
perenes na materialização de um ideal, o de conservar no tempo as boas obras do
extinto, de repetir-lhe o nome, mantendo-lhe a fama das vitórias que teve no
campo das Letras.
Como
se pretende essa conservação? Na prática, por meio do ritual de substituição,
materializado nas palavras “do companheiro que chega para substituir o
companheiro que se foi”, que é de praxe no discurso de posse do novel acadêmico.
É que, prossegue Montelo, “a repetição do nome, que conduz à ressurreição da
glória literária, constitui todo o nosso mistério. Uma geração vai, outra
geração vem, e assim como repetimos os nomes dos nossos antecessores, nossos
sucessores repetirão o nosso nome, com igual sentimento de veneração afetuosa”.
Neste
sentido, as Academias de Letras são casas de memória, da memória que importa guardar
para conservação de obras intelectuais tidas por grandes pelos contemporâneos.
É que, lembrava Barbosa Lima Sobrinho, também “nas Academias se passam as obras
[...] e se passa o rumor da glória à sua volta”. A lei da Morte é implacável: o
que fica é a memória.
E
como se chega à Academia? Não há dúvida de que, sendo um local de convívio, as
características pessoais do candidato hão de ser sopesadas pelos eleitores. Não
se desejará conviver com alguém cujo convívio não nos seja agradável. Mas isso
nem de longe significa exigência de uniformidade de pensamento ou de gosto
estético; já chamava a atenção Viriato Correia para o fato de que, sob este
aspecto, a Academia é bastante democrática: “Assim como no mar fanejam as
bandeiras de todas as nacionalidades, as bandeiras de todas as escolas literárias
tremulam aqui dentro”.
Como
instituição democrática, a Academia acolhe até mesmo aqueles que atentam contra
ela própria, geralmente acusando-a de conservadorismo, de emperrar a evolução
estética do gosto, etc, como no caso do rompimento público de Graça Aranha com
a Academia Brasileira. Era dos tempos: o grande Graça Aranha é tido na conta de
precursor do movimento Modernista que na década de 20 do século passado soprou
novos ares sobre a cultura brasileira em geral. Interessante é que, sobre este
ponto em particular, vaticinava Josué Montelo que “a originalidade da Academia,
como instituição conservadora, é que ela aceita os revolucionários, sem exigir
que reneguem a revolução.” É fato: Graça Aranha, mesmo rompido com a Academia,
continuou acadêmico para os estatutos da instituição, até que sua cadeira
vagasse com o seu passamento, como é de regra. Ou seja, o bom e velho Graça,
sem se dar conta, nada mais fez que encarnar, à sua maneira desastrada, o
próprio espírito da Academia: como advertia Josué Montelo, “[a polêmica] faz
parte da condição acadêmica. É por espírito polêmico que nos metemos neste
fardão. É por espírito polêmico que entramos aqui. É por espírito polêmico que
aqui permanecemos.”
Mas
não se pretenda chegar à Academia só pela amizade dos demais acadêmicos, sem
ter na bagagem uma obra com que se apresentar a eles. Obra, aqui, não como
sinônimo de livro, simplesmente, mas como sinônimo de um trabalho, construído
ao longo do tempo de atuação do candidato, e que geralmente é materializado, no
ramo das Letras, em livros publicados – neste sentido, o estatuto da Academia
Brasileira, bem como o da Espírito-santense, exige obra publicada para alguém
candidatar-se a uma cadeira. Mas se, via de regra, não se pode dizer que o
autor de um só livro publicado já seja detentor de uma obra, é perfeitamente
possível que a publicação de um só livro materialize a obra de um candidato.
Por isso não se fala expressamente em obra do candidato quando da seleção para
uma cadeira vaga, mas da sua pessoa. Implícito aí está o conjunto das suas
realizações materiais.
Frise-se,
portanto: não se chega à Academia sem uma obra. Viriato Correia já advertia, no
seu discurso de posse, que “a Academia não permite que alguém transponha de
mãos vazias os seus umbrais. Aqui só se entra carregando a bagagem. A bagagem é
o Abre-te Sésamo destas portas”; ou,
por outra: “A Academia não dá nome a ninguém. Aqui dentro ninguém edifica a sua
glória”, acrescentou. É exatamente sobre que
estamos falando.
Se
na apreciação da candidatura a obra não pode deixar de ser considerada, como se
aquilata da obra do candidato? A verdade é que todas essas considerações sobre
obra se mostrariam extremamente subjetivas se não se pudesse materializá-la, a
obra, numa forma objetiva. Como referido, no ramo das Letras esse trabalho
pessoal se materializa, via de regra, na forma de livros publicados. Não por
outro motivo o art. 2.º do Estatuto da Academia Brasileira dispõe “só podem ser
membros efetivos da Academia os brasileiros que tenham, em qualquer dos gêneros
de literatura, publicado obras de reconhecido mérito ou, fora desses gêneros,
livro de valor literário”. Mérito e valor literário são noções subjetivas, de
cada um dos eleitores e do público em geral. Nesta matéria há de prevalecer,
sempre, o gosto dominante na Academia em cada época, pela maioria dos
acadêmicos eleitores. Assim, e na tentativa de uma resposta à indagação acima,
o que garante a possibilidade de convivência na Academia de obras tão
distintas, e mesmo de gosto duvidoso para uns mais que para outros, é
justamente o caráter democrático da Casa, o seu perfil de abrigar igualmente as
diversas correntes estéticas, como referido por Viriato Correia.
Mas
se a fama de seus feitos é cogitada ao lhe abrirem as portas, não se espera do
que chega mantenha-se estabilizado no berço esplêndido da repercussão que o
levou até lá. Dele, ao contrário, se espera perseverança no trabalho, para
engrandecimento da Casa que doravante lhe dará abrigo. Joaquim Nabuco, por
ocasião da instalação da Academia Brasileira, refletia sobre o ponto com seus
pares: “porque, senhores, qual é o princípio vital literário que precisamos
criar por meio desta Academia, como se compõe a matéria orgânica em
laboratórios de química? É a responsabilidade do escritor, a consciência dos
seus deveres para com sua inteligência, o dever superior da perfeição, o
desprezo da reputação pela obra”, alertando exatamente para o ponto de que a
obra do acadêmico não está acabada. Ainda que Nabuco tenha concedido ao acadêmico
a não obrigação de exceder-se a si próprio (“não o forcemos, querendo que se
exceda a si mesmo, a refazer-se, uma e mais vezes, a viver da sua reputação, diminuindo-a
sempre”), um princípio permanece inalterado desde o início do movimento
acadêmico entre nós: “a uma Academia importa mais elevar o culto das letras, o
valor do esforço, do que realçar o talento do escritor”, nas palavras do primeiro
secretário-geral da Academia Brasileira.
Posto
isto, avanço conclusão possível sobre a questão inicialmente posta: o que leva
à imortalidade acadêmica é a participação, desde o ingresso na Casa, no ideal
de preservação de grandes momentos das Letras cristalizados nas obras dos que ali
foram ter. Porque é a operação de soma das obras dos acadêmicos, para
engrandecimento da Academia, que dá sentido a relembrar-se a obra de cada um,
não permitindo que desapareça com o tempo. Afinal, como advertiu Nabuco, “nós
pretendemos somente defender as fontes do gênio, da poesia e da arte, que estão
quase todas no prestígio, ou, antes, na dignidade da profissão literária”. O que,
convenhamos, não é pouca coisa.