Meu pai deixou
Vitória ainda jovem para se estabelecer em Colatina. Como funcionário do Banco
do Brasil, tirou o curso de Direito pela então Faculdade de Direito do Espírito
Santo e ingressou no serviço jurídico do Banco naquela cidade. Encerrou as
atividades, depois de 36 anos de serviço, como assessor jurídico regional do
Banco do Brasil no Espírito Santo, na última graduação da carreira.
Na assessoria jurídica do Banco em Vitória chefiava um corpo qualificado de advogados cuja amizade sobreviveu à relação de trabalho. Recebendo pressões para se aposentar, pois que ocupando o posto que ocupava travava a ascensão funcional dos colegas, foi sucedido no cargo de chefia por outros ilustres advogados, entre eles o hoje ministro do Superior Tribunal de Justiça João Otávio de Noronha.
Paralelamente à sua atuação funcional patrocinava causas particulares - desde que, claro, não envolvessem interesse do empregador. Combativo, tinha grande capacidade de apreensão e de síntese. Sua capacidade de trabalho e sua cultura jurídica eram reconhecidas por julgadores e pelos adversos.
Recordo-me,
por alto, de ações que patrocinou, entre elas a de um proprietário de posto de
gasolina em Colatina litigando contra a poderosa Esso Brasileira de Petróleo.
Derrotada nos tribunais, a empresa impressionou-se tanto com a tese defendida
que lhe ofereceu contrato para que a defendesse em outras ações semelhantes. O
êxito nessas demandas fez com que quisessem levá-lo para a sede da empresa, na
capital paulista, o que recusou. Seu amor pela terra natal falava mais alto,
nunca tendo concordado em alçar voos por céus que não fossem os do Espírito
Santo.
Tive oportunidade de acompanhá-lo por comarcas do
interior do Estado, aonde ia para acompanhar processos e atender a intimações. De
algumas dessas viagens ainda me recordo. Embora fosse muito novo, lembro de uma
ocasião indo a Santa Teresa no nosso fusca verde claro, ano 1963, que ficou na
família até 1974. Não sei por que cargas d’água o cliente do meu pai ia comigo
no banco de trás - provavelmente porque ia alguém no banco do carona. Paramos num
estabelecimento de beira de estrada para um lanche. Prosseguindo viagem, as
curvas da estrada começaram a me fazer mal, e a tal ponto que em dado momento
não consegui mais controlar o mal-estar e vomitei. Justamente sobre o cliente
do meu pai, cujas calças receberam a maior parte do refluxo. Meu pai
aborreceu-se, perguntando por que não tinha pedido para parar o carro.
Desculpava-se com o cliente, emprestando-lhe o lenço para ajudar na tentativa
de limpeza em que este se ocupava. E que, para minha gratidão, foi quem pôs
panos quentes: “ora, dr. Gélice, é uma criança, não se incomode com isso”. Meu
pai me socorreu com o que restava do lenço e prosseguindo viagem, não sei
quanto tempo mais adiante conseguimos um lugar para nos lavarmos, eu e o
cordato senhor.
Mais ou menos por esta época foi a primeira vez que interrompi
minhas preocupações infantis para pensar em Direito. A Faculdade de Ciências
Econômicas de Colatina, recém-fundada, funcionava no bairro São Vicente,
próximo ao cemitério. Recebiam na ocasião um professor de fora, que tinha ido
realizar uma atividade acadêmica qualquer. Meu pai o ciceroneava. Fomos, então
– eu junto – mostrar a cidade ao visitante, no nosso fusca 63. Percorremos a região de Vila Lenira, onde, lá
no final do bairro, vivia a nossa lavadeira. Na volta do recanto o assunto
tinha recaído sobre ela, inclusive um problema que enfrentava, na área de
sucessões ou de vizinhança. Sei é que meu pai expunha os fatos, e então, animadamente,
indagou ao visitante: “o senhor, professor, que gosta de Direito, como
resolveria a situação”? Palestravam ambos animadamente; eu, olhando a paisagem,
pensei com os meus botões: “como é que alguém pode gostar de Direito”? E
continuei nos – com certeza – graves pensamentos que me ocupavam a mente durante
o passeio.
De outra vez meu pai tinha afazeres a tratar, pelo
Banco do Brasil, em alguma comarca do norte. Nesta época chefiava a assessoria
jurídica do Banco na região norte do Estado (havia outra chefia no sul, em
Cachoeiro de Itapemirim). Recordo-me que, eu muito jovem (são passados mais de quarenta
anos), me convidou a acompanhá-lo. Na viagem passaríamos pela localidade de
Montanha, onde no restaurante de um amigo dele almoçaríamos, com direito a
cupim de boi – o móvel do convite. A propósito, o cupim é o corte de carne da
parte dianteira do gado bovino, localizado atrás do pescoço nas raças zebuínas.
Fibroso, a gordura fica entremeada nas fibras, o que lhe confere grande maciez
e sabor. A esta altura da vida eu nunca tinha provado, e meu pai queria me
proporcionar a experiência.
Pois viajamos. Cumpriu as tarefas que tinha a cumprir
e fomos até o restaurante em Montanha, de que me lembro vagamente. Sentamos,
salvo engano mais alguém na mesa conosco, e o pedido foi cupim. Ao que o garçom
respondeu que infelizmente não tinham cupim naquele dia. Não sei qual de nós
dois ficou mais desapontado. De qualquer sorte comemos um belo churrasco, que
tratei de elogiar para amenizar um pouco o sentimento de frustração que lhe
transparecia dos modos, me lembro bem.
Já em Vitória, na assessoria jurídica regional do Banco, patrocinou uma ação de inventário numa Comarca do Sul, salvo engano Venda Nova do Imigrante. Eu cursava o terceiro ano do segundo grau, estava às portas do vestibular para Engenharia. A ação judicial tratava-se da sucessão de um cidadão suíço, assassinado por motivo de terras – o que reforçava a sua prevenção contra sítios e chácaras e fazendas. Íamos acompanhados de um outro advogado, que seguia no banco do carona. Era uma manhã bonita, a viagem transcorria agradável. Chegamos à Comarca, fomos ao Fórum e nos dirigimos ao cartório. É a primeira lembrança que tenho de esperar no balcão para consultar um processo. Espera, aliás, muito rápida, provavelmente se tratava de um dos processos mais notórios da comarca. Na época não tinha como saber que esta - manusear processos - seria a minha ocupação de toda a vida.
Meu pai é hoje
nome de rua num novo bairro de Colatina e dá nome ao Diretório Acadêmico das
Faculdades Castelo Branco: Diretório Acadêmico Gélice Aucyrones d’Oliveira
Neves. As lembranças que guardo dele, além de um ou outro caso de que não
recordo maiores detalhes, compõem espécie de relicário pessoal onde identifico
a gênese do meu interesse pelo Direito e da minha curiosidade pelo Espírito
Santo. No meu primeiro romance publicado, o Memória
Repartida, cuja ação se passa numa Vila às margens de um grande rio no
noroeste do Espírito Santo, fiz a ele uma homenagem por conta dessa sua labuta
profissional pelo interior do nosso Estado.
Grafei na Dedicatória:
“AO MEU
PAI, que como advogado do Banco do Brasil viveu uma parte da vida a serviço em
terras do noroeste do Espírito Santo, leste de Minas Gerais e sul da Bahia.
Muito provavelmente esteve na Vila e conheceu os seus habitantes, como conheceu
o autor destas notas.”