16 de fevereiro de 2021

Vitória na literatura de Renato Pacheco: sobre "Reino não conquistado"

 


Matutando dia desses me dei conta de que a primeira vez que vi Renato Pacheco pessoalmente estava com o meu pai. Não me lembro ao certo onde foi, mas provavelmente na Livraria Logos da Nestor Gomes, onde meu pai tinha conta. Lembra-me que, no meio da conversa que os entretinha, meu pai apontou para mim e disse: “Renato, Getúlio é seu leitor”. Era fato; acompanhava nas páginas de um dos diários vitorienses uma publicação seriada de Renato Pacheco. Que só tempos depois desse fato é que consegui identificar: tratava-se de Reino não conquistado, publicado entre 1981 e 1982 na forma de folhetim no jornal A Tribuna. Dado o meu interesse, meu pai separava os textos e guardava para mim. Posteriormente, quando da publicação em forma de livro, corria o ano de 1984 e já não me encontrava em Vitória, tinha ido estudar no Rio de Janeiro. Dezesseis anos depois, em 1997, adentrava eu o Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo pelas mãos de Renato Pacheco. Mas não é de reminiscências que tratarei aqui.

Reino não conquistado é o terceiro romance de Renato Pacheco, publicado exatos vinte anos após a sua estreia no gênero, que se dera com A oferta e o altar (1964). Quinze anos depois publicaria um terceiro romance “geográfico” – chamo assim à sua ficção urdida em torno de uma cidade, uma localidade, como personagem condutora da trama – Pedra Menina (1999), e assim contemplando de norte a sul o Espírito Santo na sua produção literária.

Para melhor apreender esse viés interpretativo da prosa de ficção de Renato Pacheco necessário se ter em conta o projeto literário que o autor traçou para si, conforme entrevista publicada na revista Você, n.º 50: “Eu assumi, há 50 anos, o compromisso de escrever sobre o Espírito Santo, sentindo a falta que havia aqui de escritores que procurassem fazer trabalhos de ficção mais profundos e abrangentes sobre a nossa terra”.

Mas se as localidades de Ponta d’Areia, a nordeste, lugar da ação de A Oferta e o Altar, e Pedra Menina, ao sul, lugar de ação do romance homônimo, são localidades imaginadas (portanto menos que imaginárias, pois se passam em lugares reais, “rearranjados” pela imaginação do autor), Reino não conquistado se passa explicitamente em Vitória. Renato Pacheco viveu em Vitória, onde nasceu, quase toda a vida, à exceção dos quase dois anos em que esteve em São Paulo para estudos e os quase dezessete anos em que percorreu o Espírito Santo como juiz de direito.

É fácil constatar que as localidades por que passava, vida e ocorrências locais, atiçavam-lhe a escrita. E não só a ficcional: produziu artigos jurídicos, da área da Sociologia Jurídica, como resultado da sua passagem ao menos por São Mateus, Colatina e Santa Leopoldina (onde se desenrola a trama do romance Fuga de Canaan (1981), espécie de continuação do romance de Graça Aranha). Sendo assim, não é de estranhar que Reino não conquistado, ambientado na cidade que o viu nascer e onde viveu, se revele o mais autobiográfico de todos. Aliás, confessadamente autobiográfico: em entrevista sobre sua obra para o livro Nomes para viagem (2002) o autor revela sobre o romance de que nos ocupamos que “a parte de 1942 pra frente tem muito de minha vivência, mas é minha, a minha visão da Vitória do meu tempo”.

Como não poderia ser diferente, Vitória tem significado especial na sua obra. De fato, desafiou os labores tanto do historiador, externados em Os dias antigos (1998), uma visão da cidade na era Vargas, como os do ficcionista, na obra enfocada.

Reino não conquistado se trata de romance em três partes que conta a história de uma família vitoriense em três tempos distintos: desde o navegador inglês vindo pesquisar a navegação no Rio Doce, à sua filha, educada na Inglaterra e retornada a Vitória, até à terceira parte, chamada pelo autor “Folhas ao vento”, onde a narrativa se inicia em 1941. Essa última é a parte em que o autor nos proporciona a sua visão da sua terra - impressão bioficcional útil ao historiador e agradável ao literato -, falando pelas palavras de Guilherme Pimentel Pereira, o narrador. Até que ponto o que se passa na trama é “o relato de algo que não aconteceu, feito por alguém que não estava lá”, da citação “anônima” que introduz essa parte do romance, cabe ao leitor julgar.  Afinal, esse jogo ficção x realidade permeia em maior ou menor grau toda a prosa ficcional do autor, sem dúvida perpassando os romances a que chamei “geográficos” como verdadeira matéria prima de elaboração.

Depois de percorrer a trabalho de norte a sul a terra cujos fatos pretendeu registrar na sua escrita, Renato Pacheco, em meados da carreira literária e já de volta à cidade natal, dispõe-se então a contar uma história de Vitória. Se alguém já disse (e se não disse digo eu agora) que a obra de Renato Pacheco se nos revela um preito de amor à sua terra, Reino não conquistado será talvez o mais bem elaborado encontro do historiador com o ficcionista, interesses confessos e vertentes marcantes na escrita do autor.   

(publicado em Escritos de Vitória n.º 35 - Escritores e obras literárias de Vitória)