Matutando
dia desses me dei conta de que a primeira vez que vi Renato Pacheco
pessoalmente estava com o meu pai. Não me lembro ao certo onde foi, mas
provavelmente na Livraria Logos da Nestor Gomes, onde meu pai tinha conta.
Lembra-me que, no meio da conversa que os entretinha, meu pai apontou para mim
e disse: “Renato, Getúlio é seu leitor”. Era fato; acompanhava nas páginas de
um dos diários vitorienses uma publicação seriada de Renato Pacheco. Que só tempos
depois desse fato é que consegui identificar: tratava-se de Reino não
conquistado, publicado entre 1981 e 1982 na forma de folhetim no jornal A
Tribuna. Dado o meu interesse, meu pai separava os textos e guardava para mim.
Posteriormente, quando da publicação em forma de livro, corria o ano de 1984 e
já não me encontrava em Vitória, tinha ido estudar no Rio de Janeiro. Dezesseis
anos depois, em 1997, adentrava eu o Instituto Histórico e Geográfico do
Espírito Santo pelas mãos de Renato Pacheco. Mas não é de reminiscências que
tratarei aqui.
Reino
não conquistado é o terceiro romance de Renato Pacheco,
publicado exatos vinte anos após a sua estreia no gênero, que se dera com A
oferta e o altar (1964). Quinze anos depois publicaria um terceiro romance
“geográfico” – chamo assim à sua ficção urdida em torno de uma cidade, uma
localidade, como personagem condutora da trama – Pedra Menina (1999), e
assim contemplando de norte a sul o Espírito Santo na sua produção literária.
Para
melhor apreender esse viés interpretativo da prosa de ficção de Renato Pacheco
necessário se ter em conta o projeto literário que o autor traçou para si, conforme
entrevista publicada na revista Você, n.º 50: “Eu assumi, há 50 anos, o
compromisso de escrever sobre o Espírito Santo, sentindo a falta que havia aqui
de escritores que procurassem fazer trabalhos de ficção mais profundos e
abrangentes sobre a nossa terra”.
Mas
se as localidades de Ponta d’Areia, a nordeste, lugar da ação de A Oferta e
o Altar, e Pedra Menina, ao sul, lugar de ação do romance homônimo, são
localidades imaginadas (portanto menos que imaginárias, pois se passam em
lugares reais, “rearranjados” pela imaginação do autor), Reino não
conquistado se passa explicitamente em Vitória. Renato Pacheco viveu em
Vitória, onde nasceu, quase toda a vida, à exceção dos quase dois anos em que
esteve em São Paulo para estudos e os quase dezessete anos em que percorreu o
Espírito Santo como juiz de direito.
É
fácil constatar que as localidades por que passava, vida e ocorrências locais,
atiçavam-lhe a escrita. E não só a ficcional: produziu artigos jurídicos, da
área da Sociologia Jurídica, como resultado da sua passagem ao menos por São
Mateus, Colatina e Santa Leopoldina (onde se desenrola a trama do romance Fuga
de Canaan (1981), espécie de continuação do romance de Graça Aranha). Sendo
assim, não é de estranhar que Reino
não conquistado, ambientado na cidade que o viu nascer e
onde viveu, se revele o mais autobiográfico de todos. Aliás, confessadamente
autobiográfico: em entrevista sobre sua obra para o livro Nomes para viagem
(2002) o autor revela sobre o romance de que nos ocupamos que “a parte de 1942
pra frente tem muito de minha vivência, mas é minha, a minha visão da Vitória
do meu tempo”.
Como
não poderia ser diferente, Vitória tem significado especial na sua obra. De
fato, desafiou os labores tanto do historiador, externados em Os dias
antigos (1998), uma visão da cidade na era Vargas, como os do ficcionista,
na obra enfocada.
Reino
não conquistado se trata de romance em três partes que conta
a história de uma família vitoriense em três tempos distintos: desde o navegador
inglês vindo pesquisar a navegação no Rio Doce, à sua filha, educada na
Inglaterra e retornada a Vitória, até à terceira parte, chamada pelo autor
“Folhas ao vento”, onde a narrativa se inicia em 1941. Essa última é a parte em
que o autor nos proporciona a sua visão da sua terra - impressão bioficcional
útil ao historiador e agradável ao literato -, falando pelas palavras de
Guilherme Pimentel Pereira, o narrador. Até que ponto o que se passa na trama é
“o relato de algo que não aconteceu, feito por alguém que não estava lá”, da
citação “anônima” que introduz essa parte do romance, cabe ao leitor
julgar. Afinal, esse jogo ficção x
realidade permeia em maior ou menor grau toda a prosa ficcional do autor, sem
dúvida perpassando os romances a que chamei “geográficos” como verdadeira matéria
prima de elaboração.
Depois
de percorrer a trabalho de norte a sul a terra cujos fatos pretendeu registrar
na sua escrita, Renato Pacheco, em meados da carreira literária e já de volta à
cidade natal, dispõe-se então a contar uma história de Vitória. Se alguém já
disse (e se não disse digo eu agora) que a obra de Renato Pacheco se nos revela
um preito de amor à sua terra, Reino não conquistado será talvez o mais bem
elaborado encontro do historiador com o ficcionista, interesses confessos e vertentes
marcantes na escrita do autor.
(publicado em Escritos de Vitória n.º 35 - Escritores e obras literárias de Vitória)