27 de dezembro de 2017

Crônica


Via-o diariamente. Ou melhor, via-o todos os dias que me era possível gastar minutos na praça, a descansar do desenrolar dos dias.

Então me lembrava de que a praça fora, tempos idos, o coração da cidade, lugar de notícias e de flertes durante o footing, quando iam moças para um lado, rapazes para o outro. Fora o lugar onde esteve assentado tão pouco tempo o nosso teatro em pinho de Riga, destruído, consta, por pavoroso incêndio. Ainda antes era o lugar do Largo da Conceição, e o mar vinha lamber as fraldas do morro, que já foi guardado por um forte contra incursões hostis. A praça fica ao pé da Cidade Alta, o centro do povoado antigo de onde irradiara a cidade toda.

Regurgitava, aziado, o almoço, e pensando nisso tudo o meu olhar era invariavelmente atraído por ele. Passava a impressão de compor o mobiliário da praça, como as estátuas de bronze escurecido que lhe guarnecem os cantos.

É que a praça era uma balbúrdia. Intentei dizer “uma balbúrdia àquela hora”, mas tenho evidências bastantes para suspeitar que tamanha balbúrdia se espalhava um pouco ao longo do dia. Entre ambulantes, pregadores políticos e religiosos, gente que passa apressada, apresada aos inafastáveis afazeres, entre todos sobressaía a sua figura. Sóbria, sem dúvida; magro, nem jovem nem velho, tom de pele mais para escuro, trajando terno azul marinho, camisa branca e gravata preta, a extremidade elegantemente lhe chegando até a altura do cinto. Os óculos de aro fininho eram brilhantemente rebatidos do quadrante de baixo do rosto pelo bigode, escuríssimo, e muito fino. Os olhos vivos por traz daqueles óculos sensacionais eram a única coisa que nele se mexia açodadamente; no mais, movia-se gracioso como um dançarino dos bons de um qualquer estabelecimento da carioquíssima Lapa.

Talvez tivesse prestado atenção nele por acaso, não sei. Mas logo da primeira vez distingui-o pelo que era: um poeta. Das primeiras vezes que o vi declamava versos, contido num espaço exíguo na praça, por cima das falas políticas e religiosas. E as pessoas acercavam-se e paravam para ouvir, e algumas até lhe compravam os folhetos onde fizera imprimir o saldo da sua inspiração. Muitos dias foram assim, e seu semblante então traía certo contentamento distinto, espécie de agradecimento reverente ao público, às pessoas comuns como ele, que se alheavam por instantes da vida real para ouvi-lo.

Mas como não poderia deixar de ser o tempo passou para nós; os cabelos foram-lhe pintando de cinza, o tom empedernido do bigode foi-lhe esmaecendo, e então foi-se tornando cada vez mais raro que alguém parasse um momento que fosse para ouvi-lo. E o ar distinto que mantinha plantado no semblante não parecia trair sentimento de decepção ou de tristeza. Os folhetos ele passou a expô-los num tabique improvisado, menos visitado por curiosos do que eu mesmo poderia desejar. Foi nessa época que adquiri dois dos folhetos, e me agradeceu com o olhar afável, mas mudo, e o entendi dirigido ao vizinho de praça que afinal nós éramos. Foi quando passei a cumprimentá-lo, e a tratá-lo por Poeta.

Ultimamente o via, já mudo, ar abatido, embora o olhar traísse a mesma dignidade sóbria de sempre. Os movimentos, ainda graciosos, agora pareciam custar-lhe executá-los. A vida parecia-lhe pesada então. Não mais declamava, não mais expunha os folhetos, agora os trazia numa pasta sob o braço, movimentando-se sempre na mesma faixa de terreno que escolhera no início da carreira que fez ali ao longo do tempo.

Um dia não o vi mais. As pessoas têm problemas, ou podem adoecer, ou que sei mais eu, pensava comigo. Tinha consciência de que os meus cabelos, como os dele, estavam esbatidos pela passagem do tempo. E a repetição monótona da sua ausência daquele lugar que era dele na praça fazia um enorme vazio no vai-e-vem corrido de todos os dias.

E então surgiu ela.

Moça magrinha, óculos plantados na carinha bonita, cabeleira longa, sobressaíam-lhe os lábios caprichosamente desenhados. Aproximou-se de mim e, pedindo desculpas, disse que há dias vinha à praça, e todas as vezes me via ali, no mesmo banco. Se eu poderia dizer que é de um senhor, um Poeta, que seu pai havia dito que podia ser encontrado ali. É que seu pai lhe declamara uns versos que não lhe saíam da cabeça, e os atribuíra a esse senhor. Respondi-lhe simplesmente que ninguém mais declama versos hoje em dia.


Vencido, pedi licença e, levantando-me do banco para ir-me, percebi nela o mesmo ar de pena com que eu devia ter passado a olhar a praça, agora deserta de poesia.      

(publicado na Revista da Academia Espírito-santense de Letras, 2017, p. 46/48)