Houve
um tempo em que em Camburi ia-se à praia pela manhã e aos bares à noite. Tempos
idos, de menos poluição e menos especulação imobiliária. A mim, chegado de uma
temporada fora daqui, aquilo me impressionava. Sobretudo o movimento noturno,
as idas e vindas que começavam na orla e iam dar na Rua da Lama, em Jardim da
Penha, celeiro de gestação e florescimento da arte que se fazia à altura em
Vitória. Meus tempos de universitário.
Entre
tudo aquilo, o movimento musical sobressaía. Movimento a que me integrei, a
bordo de uma das guitarras do Urublues. O clima já na altura me induzia
reflexões, algumas idas ao papel. A propósito, colho das páginas do notebook
texto já longamente gestado (quem sabe não volto a trabalhá-lo), inspirado
naquilo tudo:
“Eu digo, a cidade tem
seus próprios encantos à noite. Gosto sobretudo de vê-la cheia de luzes e de
cores, e por isto prefiro sair a pé, olhando tudo, ouvindo os sons, sentindo as
sensações que ela possa transmitir. E, acima de tudo, conhecer os tipos que
fazem da noite o seu elemento, o seu alimento... os bares cheios, as luzes de
neon, os acordes do blues que o guitarrista despeja sobre a plateia, e que
ressoam por entre as janelas dos apartamentos, até ir dar na praia e se perder
no mar... tudo me impressiona, e me faz sentir uma estranha sensação de
nostalgia, como se já tivesse vivido antes cada emoção”.
De fato, vivemos; entre a
minha geração, eu acho, mais intensamente.
Talvez, já me disseram,
eu devesse gravar o que abaixo transcrevo, como espécie de homenagem àquela
cena. Não se trata de saudosismo, mas de reconhecer a importância de um momento
em que a criatividade falava alto, e ia-se e fazia-se: saídos das aulas na
UFES, todo dia era de festa, e no vai e vem dentro daquele espaço que ia dos
portões da Universidade até a orla de Camburi soavam trepidantes os sons da
cidade:
“Todo dia é de festa
A gente olha e sorri
A juventude perde noites
e noites
Bebendo em Camburi
Todo esse clima te irrita
Você não quer badalar
E nunca para pra ouvir a
beleza desses
Sons da cidade
Às vezes você chora
E diz que vai embora
À noite você acorda
Bebe uma dose de rum
E ouve da sua janela
Um cara tocando blues
O frio da madrugada
Já não vai lhe alcançar
Alguma coisa lhe diz que
você devia estar
Na estrada”
Na estrada estávamos.
Coisas aconteciam, amores floresciam. Tempos que a cidade deixou para trás, na
marcha do desenvolvimento. De minha parte, a guarnecer a orla continuo a
preferir bares e discotecas a bancos e outro tipo de comércio.
Pois foi também em
Camburi, na extinta boate Stravaganza,
que lançamos, em 2002, o segundo cd do Urublues: Fluido. Ao escrever Bebe Bem,
canção que dentre todas do álbum acabou muito tocada, penso que consegui – era
intenção – captar a essência daquele tipo de tipos urbanos com quem convivíamos
e que um pouco não deixávamos de ser:
“Você é um cara sério
Trabalha pra viver
Consome vitamina
É discreto pra comer
Mas bebe bem
Meu Deus como bebe bem
Essa sede de álcool ainda
pode te levar pro além
Você frequenta a Lama
E o meio cultural
Não entra em roubada
É um cara normal
Mas bebe bem
Meu Deus como bebe bem
Essa sede de álcool ainda
pode te levar pro além
Em termos de mulheres até
manda legal
Dizem mesmo que é tarado
Mas troca qualquer uma
por um gole de rum
Bebe bem
Meu Deus
Como bebe bem
Eu vejo em seu futuro
algumas nuvens, irmão
Espero que você me
entenda
E se em alguns anos eu
lembrar de você
Vou brindar
À memória
De um bom rapaz”
Hoje é que me dou conta
dessa afetividade geográfica que me faz estender Camburi até a Rua da Lama: à
medida que nos distanciávamos do mar, no rumo dos muros da Universidade, o
gosto de sal e maresia se misturava ao gosto do álcool servido nos bares e
naquele trailer que marcou época. Indistintas,
as sensações como que se misturavam e se completavam.
Muito mais que uma ida à
praia (como era a Camburi “quase selvagem” dos tempos em que, eu criança,
vínhamos de Colatina ver minha avó e aproveitávamos para um mergulho), a
Camburi que vivi com mais intensidade - estendida, como a tracei acima -, foi a do “meio cultural”. A daqueles
efervescentes anos.
E se, ao cogitar,
continuo considerando esse alargamento territorial, muito menos geográfico que
sentimental, me dou conta de que esse tempo, de alguma maneira, permanece: é
que nessa mesma Camburi alargada, num ponto geograficamente a meio caminho
entre a orla e os muros da Universidade, de uns tempos para cá reúnem-se aos
sábados os remanescentes da tertúlia chamada Sabalogos.
O que vem a ser uma
outra história.
(publicado no Escritos de Vitória, n.º 31 - Praias)