18 de novembro de 2017

Breves Notas Quase-Literárias (XII): Em Camburi, com Urublues, os sons da cidade


Houve um tempo em que em Camburi ia-se à praia pela manhã e aos bares à noite. Tempos idos, de menos poluição e menos especulação imobiliária. A mim, chegado de uma temporada fora daqui, aquilo me impressionava. Sobretudo o movimento noturno, as idas e vindas que começavam na orla e iam dar na Rua da Lama, em Jardim da Penha, celeiro de gestação e florescimento da arte que se fazia à altura em Vitória. Meus tempos de universitário.

Entre tudo aquilo, o movimento musical sobressaía. Movimento a que me integrei, a bordo de uma das guitarras do Urublues. O clima já na altura me induzia reflexões, algumas idas ao papel. A propósito, colho das páginas do notebook texto já longamente gestado (quem sabe não volto a trabalhá-lo), inspirado naquilo tudo:
        
“Eu digo, a cidade tem seus próprios encantos à noite. Gosto sobretudo de vê-la cheia de luzes e de cores, e por isto prefiro sair a pé, olhando tudo, ouvindo os sons, sentindo as sensações que ela possa transmitir. E, acima de tudo, conhecer os tipos que fazem da noite o seu elemento, o seu alimento... os bares cheios, as luzes de neon, os acordes do blues que o guitarrista despeja sobre a plateia, e que ressoam por entre as janelas dos apartamentos, até ir dar na praia e se perder no mar... tudo me impressiona, e me faz sentir uma estranha sensação de nostalgia, como se já tivesse vivido antes cada emoção”.

De fato, vivemos; entre a minha geração, eu acho, mais intensamente.

Talvez, já me disseram, eu devesse gravar o que abaixo transcrevo, como espécie de homenagem àquela cena. Não se trata de saudosismo, mas de reconhecer a importância de um momento em que a criatividade falava alto, e ia-se e fazia-se: saídos das aulas na UFES, todo dia era de festa, e no vai e vem dentro daquele espaço que ia dos portões da Universidade até a orla de Camburi soavam trepidantes os sons da cidade:

“Todo dia é de festa
A gente olha e sorri
A juventude perde noites e noites
Bebendo em Camburi
Todo esse clima te irrita
Você não quer badalar
E nunca para pra ouvir a beleza desses
Sons da cidade

Às vezes você chora
E diz que vai embora

À noite você acorda
Bebe uma dose de rum
E ouve da sua janela
Um cara tocando blues
O frio da madrugada
Já não vai lhe alcançar
Alguma coisa lhe diz que você devia estar
Na estrada”

Na estrada estávamos. Coisas aconteciam, amores floresciam. Tempos que a cidade deixou para trás, na marcha do desenvolvimento. De minha parte, a guarnecer a orla continuo a preferir bares e discotecas a bancos e outro tipo de comércio.

Pois foi também em Camburi, na extinta boate Stravaganza, que lançamos, em 2002, o segundo cd do Urublues: Fluido. Ao escrever Bebe Bem, canção que dentre todas do álbum acabou muito tocada, penso que consegui – era intenção – captar a essência daquele tipo de tipos urbanos com quem convivíamos e que um pouco não deixávamos de ser:

“Você é um cara sério
Trabalha pra viver
Consome vitamina
É discreto pra comer
Mas bebe bem
Meu Deus como bebe bem
Essa sede de álcool ainda pode te levar pro além

Você frequenta a Lama
E o meio cultural
Não entra em roubada
É um cara normal
Mas bebe bem
Meu Deus como bebe bem
Essa sede de álcool ainda pode te levar pro além

Em termos de mulheres até manda legal
Dizem mesmo que é tarado
Mas troca qualquer uma por um gole de rum
Bebe bem
Meu Deus
Como bebe bem

Eu vejo em seu futuro algumas nuvens, irmão
Espero que você me entenda
E se em alguns anos eu lembrar de você
Vou brindar
À memória
De um bom rapaz”

Hoje é que me dou conta dessa afetividade geográfica que me faz estender Camburi até a Rua da Lama: à medida que nos distanciávamos do mar, no rumo dos muros da Universidade, o gosto de sal e maresia se misturava ao gosto do álcool servido nos bares e naquele trailer que marcou época.  Indistintas, as sensações como que se misturavam e se completavam.

Muito mais que uma ida à praia (como era a Camburi “quase selvagem” dos tempos em que, eu criança, vínhamos de Colatina ver minha avó e aproveitávamos para um mergulho), a Camburi que vivi com mais intensidade - estendida, como a tracei acima -, foi a do “meio cultural”. A daqueles efervescentes anos.

E se, ao cogitar, continuo considerando esse alargamento territorial, muito menos geográfico que sentimental, me dou conta de que esse tempo, de alguma maneira, permanece: é que nessa mesma Camburi alargada, num ponto geograficamente a meio caminho entre a orla e os muros da Universidade, de uns tempos para cá reúnem-se aos sábados os remanescentes da tertúlia chamada Sabalogos.


O que vem a ser uma outra história.   

(publicado no Escritos de Vitória, n.º 31 - Praias)