Noite dessas (registrei na memória, foi de uma terça para quarta-feira),
sonhei com Miguel Marvilla. Amigo, poeta, mordaz, Miguel Marvilla. Suas
qualidades de escritor e de poeta escusam ser enumeradas. É de referir, apenas,
que nos anos 80 integrou o Grupo Letra, de Vitória, juntamente com outros
pesos-pesados de mesmo calibre: Renato Pacheco, Reinaldo Santos Neves, Marcos
Tavares, Luiz Busatto, Oscar Gama Filho, José Augusto Carvalho.
Mas o sonho. No sonho, sonhava eu com o Miguel e ele, barba por fazer, me
dizia algo, por detrás dos óculos que concorriam para aquele olhar profundo, e
eu atinei num trecho em que ele falava normalmente, como se na continuação de uma
narração. Por isto mesmo é que, ao que pareceu, palestrávamos.
Ao que pareceu, porque eu não ouvia o que Miguel falava. Via-lhe os
lábios se movendo no modo mesmo de articular palavras, tinha consciência de que
palavras eram articuladas por ele, mas eu não as distinguia. E por isto mesmo,
contando essa passagem a amigos, alguém sugeriu que talvez a circunstância
fosse vantajosa, arrematando – “assim você pode imaginar um diálogo com ele”.
Pois. E depois, pus-me a imaginar o que poderia querer me dizer: estaria,
por acaso, marcando a nossa ida ao Guaramare, do Vicente Bojowski, que, como
amigo do proprietário, ficou de me convidar e ficou me devendo, ao
descaradamente nos faltar de uma hora para outra? Estaria cobrando minha
ausência na sua "despedida" - eu, que não conhecia a localização de onde ele foi
sepultado (sequer sabia que o município de Cariacica era tão provido de
cemitérios), e depois de visitar outros, numa angústia crescente, não consegui
chegar a tempo de falar-lhe última vez? Ou estaria tecendo comentários sobre a minha
eleição para a Academia Espírito-santense de Letras - ele, acadêmico, que belo
dia, num Sabalogos, declarou, sem nunca termos conversado antes, que fazia
questão de ir à Academia, de onde estava afastado, para votar em mim?
É, Miguel, sua partida atabalhoada deixou assuntos para acertarmos, e não
são poucos. Exemplo: sua faceta religiosa, o conhecimento pessoal com prelados
da Igreja Católica, que acabou culminando na sua dissertação de mestrado, uma faceta
para mim tão interessante quanto a sua poética, e que nunca mais poderei
explorar. Me dou conta de tantos assuntos ficados assim, pelo meio, já que
ficamos, nossa amizade, também ela pelo meio do caminho. Enfim.
Seja generoso com este amigo mais uma vez, Miguel, e do alto do seu elevado
senso poético receba estas linhas, traçadas dia seguinte à onírica experiência
que deu pretexto a essa digressão:
Eu
sonhei com o Marvilla.
Sonhar
com poetas talvez não aflija
Porque
lh’ ignorem a pena precisa
Talvez
não lhes venham à mente os achados
Perdidos
no tempo, que o poeta busca,
E
apara e registra
E
que nos ficam pra sempre.
Sonhar
com poetas pode não fazer sentido.
Marvilla,
outrossim, sentia; e ao fim
E
ao cabo, teus sonhos não medrarão,
Miguel,
em seara inculta:
Sonhar
com poetas, a fala de esteta,
Possa
ser coisa capaz de emoção.
Bem
haja aonde vá, lembrança do amigo, e
Dos
ditos perdidos
Nos
fique intenção.