7 de abril de 2015

Breves notas quase-literárias (VI): Miguel Marvilla


Noite dessas (registrei na memória, foi de uma terça para quarta-feira), sonhei com Miguel Marvilla. Amigo, poeta, mordaz, Miguel Marvilla. Suas qualidades de escritor e de poeta escusam ser enumeradas. É de referir, apenas, que nos anos 80 integrou o Grupo Letra, de Vitória, juntamente com outros pesos-pesados de mesmo calibre: Renato Pacheco, Reinaldo Santos Neves, Marcos Tavares, Luiz Busatto, Oscar Gama Filho, José Augusto Carvalho.

Mas o sonho. No sonho, sonhava eu com o Miguel e ele, barba por fazer, me dizia algo, por detrás dos óculos que concorriam para aquele olhar profundo, e eu atinei num trecho em que ele falava normalmente, como se na continuação de uma narração. Por isto mesmo é que, ao que pareceu, palestrávamos.

Ao que pareceu, porque eu não ouvia o que Miguel falava. Via-lhe os lábios se movendo no modo mesmo de articular palavras, tinha consciência de que palavras eram articuladas por ele, mas eu não as distinguia. E por isto mesmo, contando essa passagem a amigos, alguém sugeriu que talvez a circunstância fosse vantajosa, arrematando – “assim você pode imaginar um diálogo com ele”.

Pois. E depois, pus-me a imaginar o que poderia querer me dizer: estaria, por acaso, marcando a nossa ida ao Guaramare, do Vicente Bojowski, que, como amigo do proprietário, ficou de me convidar e ficou me devendo, ao descaradamente nos faltar de uma hora para outra? Estaria cobrando minha ausência na sua "despedida" - eu, que não conhecia a localização de onde ele foi sepultado (sequer sabia que o município de Cariacica era tão provido de cemitérios), e depois de visitar outros, numa angústia crescente, não consegui chegar a tempo de falar-lhe última vez? Ou estaria tecendo comentários sobre a minha eleição para a Academia Espírito-santense de Letras - ele, acadêmico, que belo dia, num Sabalogos, declarou, sem nunca termos conversado antes, que fazia questão de ir à Academia, de onde estava afastado, para votar em mim?

É, Miguel, sua partida atabalhoada deixou assuntos para acertarmos, e não são poucos. Exemplo: sua faceta religiosa, o conhecimento pessoal com prelados da Igreja Católica, que acabou culminando na sua dissertação de mestrado, uma faceta para mim tão interessante quanto a sua poética, e que nunca mais poderei explorar. Me dou conta de tantos assuntos ficados assim, pelo meio, já que ficamos, nossa amizade, também ela pelo meio do caminho. Enfim.

Seja generoso com este amigo mais uma vez, Miguel, e do alto do seu elevado senso poético receba estas linhas, traçadas dia seguinte à onírica experiência que deu pretexto a essa digressão:

Eu sonhei com o Marvilla.
Sonhar com poetas talvez não aflija
Porque lh’ ignorem a pena precisa
Talvez não lhes venham à mente os achados
Perdidos no tempo, que o poeta busca,
E apara e registra
E que nos ficam pra sempre.

Sonhar com poetas pode não fazer sentido.
Marvilla, outrossim, sentia; e ao fim
E ao cabo, teus sonhos não medrarão,
Miguel, em seara inculta:
Sonhar com poetas, a fala de esteta,
Possa ser coisa capaz de emoção.
Bem haja aonde vá, lembrança do amigo, e
Dos ditos perdidos
Nos fique intenção.