27 de março de 2015

Breves notas quase-literárias (V): "A Oferta e o Altar", de Renato Pacheco


Reli A Oferta e o Altar, que se encaixará de alguma maneira num novo texto, cuja ação se passa lá pelos lados de Itaúnas, aos poucos tomando forma nas páginas do meu notebook. Romance de estreia de Renato Pacheco (1964), desta última leitura pareceu-me agradavelmente cru, mas por isto mesmo sem muitas incursões no campo psicológico.

Pura ação; a compreendê-lo, não se pode desviar dos apressados resumos de obras literárias que se lê por aí, principalmente de obras que se prestam a trabalhos escolares, exames vestibulares e sucedâneos: em suma, A Oferta e o Altar é a descrição da pequeneza da vida numa pequena cidade do interior do Brasil (para nosso gáudio, do interior do Espírito Santo), num momento de sua existência em que era surpreendida pela chegada de uma Companhia Petrolífera a lhe prospectar óleo no subsolo arenoso.

Ponta d’Areia, o lugar do romance, existiu mesmo?  

Se é que a ação se passa mesmo onde todos – leitores e crítica – achamos que tenha passado, isto é, no município a nordeste do Espírito Santo onde Renato Pacheco foi juiz de direito no final dos anos 50 do século passado, então a paisagem local (a geográfica e também a humana), nos é pintada em cores difusas, meio que embaçada sob o véu criador da imaginação do autor. Diluída a realidade, movemo-nos, os leitores, no campo diáfano da criação literária.

Frases diretas, estilo cortante, “de fluência quase coloquial”, disse José Ramos Tinhorão no A música popular no romance brasileiro: século XX, a leitura flui com facilidade. Ponta d’Areia nos é apresentada como um campo de batalha eleitoral, a política condicionando o seu dia-a-dia; sob este viés, comparações com o clima de O Coronel Sangrado, de Inglês de Souza, e Brejal dos Guajas, de José Sarney, são seriam descabidas, se guardadas as devidas proporções.

Em meio à aridez da disputa dos maiorais pelo mando da terra, o desenrolar da vida comum de Antonieta, a fogosa filha do estivador Bibi, tido por todos como meio maluco, e de Lina, filha de pescador que volta a sua terra formada em professora, no sonho de ajudar seus conterrâneos a ultrapassar as limitadas condicionantes do meio. A cruzar seus destinos, amigas que são, a personagem de Zé Roberto, funcionário da Companhia Petrolífera, agente provocador cuja conduta precipita a perdição de uma e o desencanto da outra, caída nas más línguas da população.

Realidade ou ficção, o Santo Eduardo em cuja bacia se situa Ponta d’Areia avizinha-se da bacia do São Mateus; do Evangelho de Mateus (23, 19) o autor pinçou o título: “Cegos! Qual vale mais, a oferta ou o altar, que santifica a oferta”?

O contraponto ao estado de coisas reinante vem da ação de Padre Fernando, o pastor daquele rebanho: tenta fazê-los dignos do altar, tentando impingir-lhes pela palavra o entendimento (pelas palavras do padre dirigia-se o autor a suas personagens). Joaninha do Muxá, a mexeriqueira local, devota contrita que sintetiza o perfil dos habitantes, achava lindas as expressões do padre, mas não as entendia.

Onde, então, a compaixão do povo? Mais valendo o altar, não é certo que deve a oferta ser digna dele? Por isso Padre Fernando, pastor daquele rebanho, “perseverava”. Achava que “algum dia aquele povo a que o senhor lhe destinara o compreenderia”.  

Não é a mesma esperança do escritor que entrega o texto aos leitores? Haverá aqui, também, uma metáfora sobre a esperança na fortuna da criação literária dada a público pelo autor, neste caso e em todos os casos, já que uma hora ou outra o texto literário deve ser externado. Porque, como dizia Renato Pacheco: “texto concluído, por que ficar engavetado”?