Num dos primeiros SABALOGOS deste ano de 2014 tivemos a ideia (generosa, é verdade) de dar a público um outro livro de autoria dos frequentadores, a se juntar ao Mulheres: diversa caligrafia. E que desta vez o tema pudesse ser Livrarias. Não Bibliotecas, mas Livrarias, estabelecimento comercial onde se adquirem livros, como é o caso da Livraria Logos, que sedia as nossas reuniões desde os primórdios (palavra pomposa esta última, utilizada aqui somente para dar mais pomposidade à crônica).
De minha parte, submeti à organização da empreitada um texto chamado "Do que pode suceder em livrarias, e do sucedido numa delas no interior do estado envolvendo obra de um grande escritor capixaba", e esse texto acabou ficando em forma de ensaio (com vocabulário escorreito, linha de argumentação e tudo...).
Ora, como por problemas técnicos (problemas esses debitáveis à organização) nossa obra coletiva ainda não veio a público, resolvi recolher do meu texto alguns trechos que se referem a experiências pessoais que já vivi em estabelecimentos dessa natureza. É bom alertar, no entanto, que os tais trechos foram pinçados de uma linha de argumentação desenvolvida no texto, mas que mesmo assim acredito que possam fazer algum sentido se forem lidos de maneira autônoma, como proponho aqui. Por fim, transcrevo dali também um causo envolvendo o livro A Oferta e o Altar, de Renato Pacheco, ele mesmo frequentador assíduo do SABALOGOS. Tudo como vai muito bem explicado (vocês verão) no "Do que pode suceder em livrarias...", que outra saída não tem que não aguardar publicação.
Sendo assim, seguem-se os trechos que selecionei:
"Sobre o
comprar livros (hábito que, graças a meu pai, advogado, e minha mãe, professora
de História, adquiri desde cedo), recordo-me da primeira vez em que fui eu
mesmo comprar um livro: era presente de Natal, e minha mãe me pediu (talvez
para aliviar os trabalhos dela com a festa) que eu fosse até a livraria fazer a
aquisição - está claro que de posse do valor em dinheiro, já que era presente.
E lá fui eu à Livraria Brasil, na avenida principal de Colatina, anos 70, e sem
maiores emoções fui pedindo ao balconista Os
Lusíadas, de Camões.
Este, que
aparentemente não ligou o nome à obra, pediu ajuda a outro vendedor, até que
após alguns minutos de confabulações veio de lá o próprio gerente (que mais
tarde seria meu colega na Faculdade de Ciências Econômicas, onde ambos
lecionamos), portando uma edição de bolso da obra, da Tecnoprint, com notas de
Silveira Bueno. Perguntou ao atendente de quem se tratava, chegou-se até mim e
disse que nunca, até aquela data, tinha vendido um exemplar d’ Os Lusíadas,
e que por isto gostaria de me fazer oferta do livro (situação decerto já
ultrapassada, porque Colatina é, atualmente, um importante pólo acadêmico do
Norte do estado). Guardo até hoje esse primeiro exemplar, já meio amarelado, em
local de destaque entre outras edições do clássico que fui adquirindo ao longo
dos anos.
[...]
Não foi
sem uma sensação agradável que me vi, pela primeira vez, numa livraria em que
se poderia estar simplesmente a folhear, ou até mesmo a ler inteiro um livro,
sem que fosse preciso comprá-lo. Foi na Livraria Barata, na Avenida de Roma, em
Lisboa, onde tinha marcado encontro com a minha sortuda consorte; cheguei, para
variar, um tanto atrasado, e apressadamente entrei e pus-me a procurá-la, até
que, depois de voltas pelos cantos e recantos do recinto a vejo,
descuidadamente sentada numa poltrona, “bebendo um café” e folheando um álbum
de quadrinhos, lembro-me bem. Quando lhe perguntei se iria comprar o álbum que
estava lendo ela me respondeu “não necessariamente”, e tentando argumentar com
ela por folhear o exemplar e depois devolvê-lo foi que me chamou a atenção para
tantas outras pessoas por ali que faziam o mesmo – bebedores de café que
pegavam carona numa leitura, nem todas ligeiras como a dela, nem todos esperando
alguém que se atrasara, como era o caso dela.
Pode ser
que eu estivesse defasado no tempo, que eu sequer precisasse sair daqui para
desfrutar de uma experiência semelhante. Mas aquela experiência acabou
acrescentando alguma coisa à minha concepção de livraria, que eu até então
tomava como um estabelecimento em que simplesmente se comercializam livros.
[...]
Refiro só
mais uma experiência que tive a propósito disso de frequentar livrarias.
Sucedeu-se por ocasião de um congresso internacional da minha área profissional
e assim estava eu em Luanda, muito entusiasmado por conhecer a África, e mais
ainda por começar esse conhecimento por terras de Angola, cujo passado
histórico se une de forma tão estreita ao passado histórico brasileiro. Daí
que, tendo em mente as reminiscências todas desse passado entre nós, no Brasil
e no Espírito Santo, e aproveitando a oportunidade, solicitei à organização do
evento (o Ministério da Defesa) a ida a uma livraria qualquer da cidade, em que
se pudessem adquirir livros sobre a história de Angola.
Eu não
esperava o que se seguiu: aquele simples pedido rendeu quase que uma operação
militar, a depender de logística de transporte, de segurança etc. Resultado:
uns quinze minutos depois estava à disposição um veículo do Exército (uma van),
equipada de motorista e co-piloto, e mais um militar armado e uma simpática
funcionária civil do Ministério da Defesa. Ainda, um policial exímio na
pilotagem de sua Harley Davidson, como batedor, para abrir caminho naquele
trânsito complicado da capital angolana. Saímos e seguimos, e estacionando lá
onde devíamos ir, desci do veículo e fui acompanhado a uma grande livraria,
precedido do co-piloto, acompanhado pela jovem simpática e seguido pelo militar
armado, como se fosse uma incursão em
terreno desconhecido (e para mim não deixava de ser isso mesmo...).
Ora,
movimentado todo aquele aparato, pensei comigo mesmo que deveria justificá-lo o
máximo possível, e assim só parei de explorar os recantos todos da livraria
quando a simpática funcionária civil do Ministério da Defesa sugeriu que
voltássemos para o local das palestras (aliás, o quartel-general do Exército
Angolano). Sugestão aceita, retornamos, eu carregando alguns livros sobre o
antigo Reino do Congo, mas sentindo falta de um volume que considerava
fundamental, um dicionário de kikongo, uma das várias línguas faladas naquela
confusão de reinos, ducados e marquesados, cuja história é tão intrincada.
Felizmente, e para minha surpresa, dias depois de retornar recebi em casa o
dicionário que não havia encontrado, uma oferta da organização do evento,
lisonjeados que ficaram do meu interesse pelas coisas do país irmão.
[...]
Vou
referir por último um caso que me contaram tempos atrás e que se sucedeu num
estabelecimento livreiro, envolvendo importante obra do repositório literário
local: era numa cidadezinha do interior do estado, já lá se vão bons anos.
O meu
informante, um advogado, ia passar alguns dias na localidade por conta de uns
processos judiciais que estava acompanhando, com audiências designadas etc.
Logo na chegada se deu conta de que não havia muito a se fazer por ali, e daí cuidou
de se inteirar de como seria possível matar o tempo da forma mais satisfatória.
Encerrados os afazeres no fórum, ele a pé pela cidadezinha, fuçando aqui e ali
o comércio e as residências, entrou para tomar um refresco num armazém que lhe
pareceu ser o mais sortido de secos, molhados e afins. E foi como soube, pela
conversa dos fregueses, que alguma coisa sem importância para o nosso caso
tinha acontecido a fulano, o da livraria. Um tanto surpreso de existir por ali
um estabelecimento que se designasse livraria, interessou-se mais pela
conversa, e apresentando-se, que vinha sendo olhado com curiosidade pelos
presentes, perguntou onde é que podia encontrar a tal casa livreira. De posse
das informações, acabado o refresco, dirigiu-se até o endereço - “com certa
facilidade”, acrescentou - que ao que entendi não havia tantos endereços assim
por lá.
Contou-me
ter achado interessante, sim, a livraria da cidadezinha, e isso descontado o
fato de não serem muitas as cidades do interior do Espírito Santo que naqueles
idos ostentassem uma livraria na sua lista de endereços. Pois entrou, e foi
logo recebido por um senhor de certa idade - “tinha uma cara boa” - que veio
recebê-lo na porta e perguntar-lhe que é que desejava. Inteirando-se dos
motivos da visita do advogado, de seu interesse por livros e de sua satisfação
por ver ali uma livraria tão bem montada, deram uma circulada olhando as
estantes a esmo e acabaram-se sentando os dois para um dedo de prosa, que já
estava se ressentindo o meu informante de alguém para uma conversazita.
Nisto
estavam há um tempo razoável quando entram duas senhoras com ar distinto,
portando véu, inclusive, e, sendo atendidas pelo livreiro, que se levantara à
chegada delas, pediram o livro de um escritor capixaba, “de Vitória, parece”,
informando que tinha alguma coisa a ver com religião. O livreiro coçou a
cabeça, que assim ficava difícil, e pediu mais detalhes. Conversando estavam,
tentando “recuperar a informação”, quando uma delas, a mais calada das duas,
lembrou-se da palavra “altar”. Ao que o nosso simpático vendedor iluminou-se
num sorriso, pediu-lhes um instante de paciência, foi a uma das estantes e de
lá retirou A Oferta e o Altar, de
Renato Pacheco, edição da Ática, entregando-o às freguesas, que de sua parte
admiraram a capa e o folhearam rapidamente, e acabaram decidindo levá-lo.
Compra
feita, saindo as duas, ao que nos pareceu, muito da satisfeitas, meu informante
continuou por ali mais algum tempo, dizendo-se mais uma vez surpreendido, agora
por encontrar lá um livro de doutor Renato Pacheco, de quem tinha sido aluno (aliás,
quase todo mundo em Vitória foi aluno de Renato Pacheco em alguma altura da
vida). Ao despedir-se finalmente, acabou também levando um livro, de que não se
lembrou do titulo para comentar comigo, mas que era de seu interesse há algum
tempo, e assim aproveitava aquela quase insólita oportunidade.
Encerrados
os compromissos na cidade, foi já de volta que tomou conhecimento do desenrolar
do caso; afirmou-me que nunca pensaria que uma situação tão simples pudesse ter
um desenrolar, já que se tratou de uma venda, quando a posse da coisa se
transfere ao comprador mediante paga de um valor etc, conforme testemunhara ter
acontecido. Mas, recordou-me, é que as senhoras procuravam um livro sobre
religião, e cuidaram que desse assunto se tratasse, não só pelo título, mas
também por terem lido, na orelha, que a cidadezinha onde se passava a ação vivia
“há muitas décadas uma rotina de tradições religiosas”. Que, no entanto, ao se
entregarem à leitura do texto, constataram que se tratava mesmo é de um livro
sobre fofocas (expressão delas). Consta que, a partir daí, teve inicio um
desentendimento entre aqueles tão distintos concidadãos.
É que o
bom do livreiro tentou defender o livro, dizendo que A Oferta e o Altar se tratava de um romance moderno e elogiado,
inclusive pelo cronista Rubem Braga, também capixaba, que a obra traçava um
retrato da vida no interior do Brasil, que sua fama transcendia as fronteiras
do nosso estado etc, mas o fato é que nada convencia as freguesas - aliás,
pessoas conhecidas, como eram todos ali entre eles, mas que neste caso tomaram
a argumentação do vendedor como uma recusa em desfazer a venda.
Resumindo,
a situação só se resolveu porque as duas, muito indignadas e não dando chance
ao homem de falar em desfazer o negócio, foram buscar o padre (já que se
tratava de matéria religiosa) e este, inteirando-se dos fatos, propôs-se a
comprar delas o livro, de que já tinha ouvido falar, inclusive rumores sobre
uma suposta queima em praça pública etc. Desta forma as senhoras seriam
reembolsadas e o livreiro não ficaria no prejuízo. Ambas (“acredito que
persignando-se”, acrescentou o meu informante) dispuseram-se a dar um fim à
questão da forma sugerida pelo religioso, que aquilo tudo já atraía à livraria grande
quantidade de populares, provavelmente a maior frequência ao estabelecimento em
toda a sua existência.
Ao fim do
caso, imagino o livreiro, abatido, coçando a calva e cofiando o bigode (que dos
dois atributos era portador o nosso personagem), provavelmente matutando nas
dificuldades do mercado de livros no Brasil. Consta ter surgido daí a ideia,
naquelas paragens, da necessidade de um programa de formação de leitores,
assunto recorrente ainda hoje entre nós e cuja origem fica, assim, esclarecida.
Não sei se
Renato Pacheco chegou a tomar conhecimento de mais essa peripécia do seu
peripécico (eu sei, não deve existir um tal adjetivo, alerta o corretor de
textos) romance; asseguro é que eu, de minha parte, não tive oportunidade de lhe
contar. O que lamento, por se tratar de um típico caso de livraria, como era ao
gosto dele. E que me ocorreu, aliás, pelo transcurso dos dez anos da falta do
amigo e professor, mas que, não fosse isso, é caso que viria bem a calhar,
acredito. E mesmo não sendo adepto de “moral de histórias”, acho que podemos,
sim, arriscar uma Moral da História para arrematar isso tudo:
Leia".
"Nota
post scripta: A Oferta e O Altar é o primeiro romance
escrito por Renato José Costa Pacheco (1928 – 2004) e é considerado um marco na
produção literária local: para Reinaldo Santos Neves, “inaugura o moderno romance regional capixaba”. Baseado no
cotidiano de uma cidade do interior do Espírito Santo dos anos 1960, consta ter
sido repudiado na localidade, cujos habitantes teriam se reconhecido nas personagens".