O
hábito da leitura de Nabuco, o meditar suas lições de humanista e o exemplo de
sua mais conhecida obra confessional me animaram a refletir sobre a minha própria
fortuna e nem mesmo a pretensão absurda que é o confessar uma qualquer comparação
entre as duas reflexões, dele e minha, e o tentar impregnar-me de seu estilo
literário, me torna difícil ver arredondarem-se tantos lustros de existência sem
constatar, de maneira muito natural, que à magistratura até aqui dediquei a
minha vida.
Para
tanto tive exemplos de berço, como foi, na prática, do meu tio Sylvio Péllico,
desembargador, fustigado já na fase descendente da sua trajetória profissional ao
não ter podido sacrificar suas convicções pessoais a conveniências prenunciadoras
de novos tempos que se avizinhavam; e como foi, na essência, do meu pai Gélice
Aucyrones, que a par do combativo advogado que sempre foi e que todos, mas principalmente
os adversários, sempre reconheceram nele, trazia na sua concepção do que fosse conduzir-se
com justiça a ponderação das razões do adverso, qualidade esta indicadora da elevação
de um espírito naturalmente predisposto à tarefa de julgar.
Apesar
disso, essa dedicação à magistratura só me revelou como inclinação natural do espírito depois de percorrer paragens a que, como estudante de Engenharia, a curiosidade
própria da idade e um grande quê de entusiasmo pelo engenho humano me conduziram,
deixando lições que, como todo o conhecimento que alguém adquira, vieram somar ao
amálgama de que se compõe hoje o meu cogito.
Se
aquelas atividades de cunho literário, próprias aos Institutos Históricos e
Academias de Letras que integro, sobressaem dentre as notícias das ocupações a
que me dedico, é que a inclinação para a magistratura e a realização dessa
inclinação no exercício diário do meu mister é-me tão inconsútil quanto o fato
mesmo de respirar, pois assim como o inalar porções do ar que nos envolve é natural e independe de
consciência do sujeito sobre a própria realização do ato, assim a vivência dos requisitos
intrínsecos à tarefa de julgar deve impregnar de tal sorte o magistrado que
isto lhe seja inconsciente.
Recorda-me
que a dada altura do curso de Engenharia na Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro meu ânimo foi-se naturalmente voltando para as aulas de
Legislação Social e de Ética Profissional o que, não sendo do agrado da
unanimidade dos meus colegas de turma, logo me fez desconfiar de alguma falha
vinda à tona na urdidura da minha até então indiscutível vocação para as
Ciências Exatas.
Ao
trancar matrícula, já após ter iniciado os tratos acadêmicos na Metalurgia
Extrativa e na Ciência dos Materiais (cujos meandros teóricos ainda hoje me atraem) e
retornando à casa paterna, com a condescendência de meu pai, lembra-me logo no
início do curso de Direito a revelação, em diálogo com professor da
Universidade Federal, juiz de direito, de ter-me motivado tão radical mudança
de rumo justamente a atração pela carreira da magistratura. Naquela altura, era
1986, não vêm ao caso suas ponderações sobre as alegrias da carreira comparadas
à sua – então – pouca valorização em termos financeiros.
Meu
tio, já por antiguidade feito desembargador e meu pai, advogando mesmo aprovado
em concurso do Tribunal de Justiça no ano do meu nascimento, por isto mesmo não
tendo assumido o cargo – o que parece não lhe ter sido perdoado por outros que
da sua decisão dependiam para iniciar carreira – eram antecedentes próximos em
que eu me reconhecia. Mas colho na família antecedente mais recuado no trato das
coisas da Justiça: o meu bisavô paterno, Francisco Pereira das Neves, esteve
presente em 24/12/1889 à instalação da Comarca de Santa Leopoldina, ocupando em
seguida o cargo de 2.º tabelião do Público Judicial e Notas, escrivão de
Registro do Juri, Execuções Cíveis e Crime, e funcionou como curador no
interrogatório da ré Guilhermina Lubke, acusada de infanticídio pela Justiça Pública.
Este processo criminal, hoje extraviado, mas de que resta o traslado, serviu de
tema ao juiz municipal Graça Aranha, presidente da instrução, na urdidura da
trama de seu célebre Canaã.
São,
portanto, mais de cento e vinte anos de dedicação do ramo paterno da família ao
Poder Judiciário do Espírito Santo, e tal responsabilidade eu hoje compartilho
com a minha irmã, integrante da carreira e cujo destaque profissional e
reconhecimento público as exigências da modéstia me impedem de gabar aqui condignamente,
mas cujo blog indico: www.noscaminhosdainfancia.blogspot.com
Desses mais de cento e vinte anos, presenciei pessoalmente atuante os últimos
vinte, completados no passado dia dois de fevereiro, consagrado a Nossa Senhora
dos Navegantes.
Se
o Direito, assim como a Medicina e a predisposição para o ensino, está no
sangue da família, a magistratura é a forma como no meu caso esse pendor
jurídico se consolidou. Desses vinte anos, dez foram dedicados à judicatura
especializada na justiça castrense, ramo jurisdicional de antecedentes
indiscutivelmente singulares e que por isto mesmo sofre ataques de forma cíclica
desde os inícios da República no Brasil.
Renato
Pacheco, ele mesmo servidor público, professor, advogado e magistrado deste
estado, cargo em que se aposentou, deixou consignado que “a magistratura é a
mais bela das profissões. Mas também a mais difícil”. Não se trata da simples valorização
de uma atividade, que todas têm quem lhas valorize de maneira mais ou menos
eficiente, louvando-lhes as vantagens e lamentando-lhes as vicissitudes. Ao
magistrado, como contraponto à parcela de poder estatal que decorrente da
Constituição detém, são vedadas toda sorte de iniciativas, em troca de
remuneração sem dúvida não comparável à praticada nas redações.
É
dos tempos que as prerrogativas da magistratura, as garantias constitucionais
que lhe permitem o exercício regular de sua função, voltem a ser postas em
causa. Lembra-me, quando da entrevista no concurso de provas e títulos, ter
sido indagado pelo presidente da banca logo inicialmente a respeito. À
onipresente campanha de esclarecimento público quanto à remuneração dos
magistrados somou-se nos últimos tempos uma outra, pondo em causa a
vitaliciedade, por conta de desvios de conduta criminosos praticados por um ou
outro concursado punido administrativamente e à espera de sentença judicial que
lhe casse a função, mas cujo exemplo é lançado aos ventos como justificativa
para atentar contra disposição constitucional mais que centenária. Refiro
ligeiramente a respeito Afonso Cláudio de Freitas Roza, para quem “a independência dos atos, a imparcialidade e justiça
nos julgamentos, a circunspecção na conduta social, seriam descabidas se a
magistratura não tivesse o amparo da vitaliciedade [...]” (in
http://gtneves.blogspot.com.br/2010/04/nunca-antes-na-historia-deste-pais-ii.html).
Nem
a exposição pública nem toda a sorte de limitações que me impõe a função (não
impostas a outras carreiras que à da magistratura todos os dias se equiparam em
termos de garantias e vantagens, mas não de vedações), somadas às demais
dificuldades que o exercício de qualquer função traz ao que a exerce, não são
de molde a arrefecer em mim o gosto por ela. Atestam-no os vinte e oito livros
de sentenças publicadas somente durante o exercício no posto que ocupo nos
últimos anos o que, se não é mais que tem feito qualquer outro magistrado, no
entanto é a prova de não me ser possível deter-me a todo momento para
refletir a respeito de como tudo se tem desenrolado até aqui.
Apenas
iniciada a reflexão para recontar mentalmente a mim mesmo os dias da minha
sorte, prossigo no exercício da função, serenamente à espera de que me seja
concedido outro tanto de tempos que venham compor outras recordações, se Deus permitir bem mais adiante.