13 de fevereiro de 2014

Reflexões de Carreira


O hábito da leitura de Nabuco, o meditar suas lições de humanista e o exemplo de sua mais conhecida obra confessional me animaram a refletir sobre a minha própria fortuna e nem mesmo a pretensão absurda que é o confessar uma qualquer comparação entre as duas reflexões, dele e minha, e o tentar impregnar-me de seu estilo literário, me torna difícil ver arredondarem-se tantos lustros de existência sem constatar, de maneira muito natural, que à magistratura até aqui dediquei a minha vida.

Para tanto tive exemplos de berço, como foi, na prática, do meu tio Sylvio Péllico, desembargador, fustigado já na fase descendente da sua trajetória profissional ao não ter podido sacrificar suas convicções pessoais a conveniências prenunciadoras de novos tempos que se avizinhavam; e como foi, na essência, do meu pai Gélice Aucyrones, que a par do combativo advogado que sempre foi e que todos, mas principalmente os adversários, sempre reconheceram nele, trazia na sua concepção do que fosse conduzir-se com justiça a ponderação das razões do adverso, qualidade esta indicadora da elevação de um espírito naturalmente predisposto à tarefa de julgar.

Apesar disso, essa dedicação à magistratura só me revelou como inclinação natural do espírito depois de percorrer paragens a que, como estudante de Engenharia, a curiosidade própria da idade e um grande quê de entusiasmo pelo engenho humano me conduziram, deixando lições que, como todo o conhecimento que alguém adquira, vieram somar ao amálgama de que se compõe hoje o meu cogito.

Se aquelas atividades de cunho literário, próprias aos Institutos Históricos e Academias de Letras que integro, sobressaem dentre as notícias das ocupações a que me dedico, é que a inclinação para a magistratura e a realização dessa inclinação no exercício diário do meu mister é-me tão inconsútil quanto o fato mesmo de respirar, pois assim como o inalar porções do ar que  nos envolve é natural e independe de consciência do sujeito sobre a própria realização do ato, assim a vivência dos requisitos intrínsecos à tarefa de julgar deve impregnar de tal sorte o magistrado que isto lhe seja inconsciente.

Recorda-me que a dada altura do curso de Engenharia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro meu ânimo foi-se naturalmente voltando para as aulas de Legislação Social e de Ética Profissional o que, não sendo do agrado da unanimidade dos meus colegas de turma, logo me fez desconfiar de alguma falha vinda à tona na urdidura da minha até então indiscutível vocação para as Ciências Exatas.

Ao trancar matrícula, já após ter iniciado os tratos acadêmicos na Metalurgia Extrativa e na Ciência dos Materiais (cujos meandros teóricos ainda hoje me atraem) e retornando à casa paterna, com a condescendência de meu pai, lembra-me logo no início do curso de Direito a revelação, em diálogo com professor da Universidade Federal, juiz de direito, de ter-me motivado tão radical mudança de rumo justamente a atração pela carreira da magistratura. Naquela altura, era 1986, não vêm ao caso suas ponderações sobre as alegrias da carreira comparadas à sua – então – pouca valorização em termos financeiros.

Meu tio, já por antiguidade feito desembargador e meu pai, advogando mesmo aprovado em concurso do Tribunal de Justiça no ano do meu nascimento, por isto mesmo não tendo assumido o cargo – o que parece não lhe ter sido perdoado por outros que da sua decisão dependiam para iniciar carreira – eram antecedentes próximos em que eu me reconhecia. Mas colho na família antecedente mais recuado no trato das coisas da Justiça: o meu bisavô paterno, Francisco Pereira das Neves, esteve presente em 24/12/1889 à instalação da Comarca de Santa Leopoldina, ocupando em seguida o cargo de 2.º tabelião do Público Judicial e Notas, escrivão de Registro do Juri, Execuções Cíveis e Crime, e funcionou como curador no interrogatório da ré Guilhermina Lubke, acusada de infanticídio pela Justiça Pública. Este processo criminal, hoje extraviado, mas de que resta o traslado, serviu de tema ao juiz municipal Graça Aranha, presidente da instrução, na urdidura da trama de seu célebre Canaã.

São, portanto, mais de cento e vinte anos de dedicação do ramo paterno da família ao Poder Judiciário do Espírito Santo, e tal responsabilidade eu hoje compartilho com a minha irmã, integrante da carreira e cujo destaque profissional e reconhecimento público as exigências da modéstia me impedem de gabar aqui condignamente, mas cujo blog indico: www.noscaminhosdainfancia.blogspot.com Desses mais de cento e vinte anos, presenciei pessoalmente atuante os últimos vinte, completados no passado dia dois de fevereiro, consagrado a Nossa Senhora dos Navegantes.

Se o Direito, assim como a Medicina e a predisposição para o ensino, está no sangue da família, a magistratura é a forma como no meu caso esse pendor jurídico se consolidou. Desses vinte anos, dez foram dedicados à judicatura especializada na justiça castrense, ramo jurisdicional de antecedentes indiscutivelmente singulares e que por isto mesmo sofre ataques de forma cíclica desde os inícios da República no Brasil.

Renato Pacheco, ele mesmo servidor público, professor, advogado e magistrado deste estado, cargo em que se aposentou, deixou consignado que “a magistratura é a mais bela das profissões. Mas também a mais difícil”. Não se trata da simples valorização de uma atividade, que todas têm quem lhas valorize de maneira mais ou menos eficiente, louvando-lhes as vantagens e lamentando-lhes as vicissitudes. Ao magistrado, como contraponto à parcela de poder estatal que decorrente da Constituição detém, são vedadas toda sorte de iniciativas, em troca de remuneração sem dúvida não comparável à praticada nas redações.

É dos tempos que as prerrogativas da magistratura, as garantias constitucionais que lhe permitem o exercício regular de sua função, voltem a ser postas em causa. Lembra-me, quando da entrevista no concurso de provas e títulos, ter sido indagado pelo presidente da banca logo inicialmente a respeito. À onipresente campanha de esclarecimento público quanto à remuneração dos magistrados somou-se nos últimos tempos uma outra, pondo em causa a vitaliciedade, por conta de desvios de conduta criminosos praticados por um ou outro concursado punido administrativamente e à espera de sentença judicial que lhe casse a função, mas cujo exemplo é lançado aos ventos como justificativa para atentar contra disposição constitucional mais que centenária. Refiro ligeiramente a respeito Afonso Cláudio de Freitas Roza, para quem “a independência dos atos, a imparcialidade e justiça nos julgamentos, a circunspecção na conduta social, seriam descabidas se a magistratura não tivesse o amparo da vitaliciedade [...]” (in http://gtneves.blogspot.com.br/2010/04/nunca-antes-na-historia-deste-pais-ii.html). 

Nem a exposição pública nem toda a sorte de limitações que me impõe a função (não impostas a outras carreiras que à da magistratura todos os dias se equiparam em termos de garantias e vantagens, mas não de vedações), somadas às demais dificuldades que o exercício de qualquer função traz ao que a exerce, não são de molde a arrefecer em mim o gosto por ela. Atestam-no os vinte e oito livros de sentenças publicadas somente durante o exercício no posto que ocupo nos últimos anos o que, se não é mais que tem feito qualquer outro magistrado, no entanto é a prova de não me ser possível deter-me a todo momento para refletir a respeito de como tudo se tem desenrolado até aqui. 

Apenas iniciada a reflexão para recontar mentalmente a mim mesmo os dias da minha sorte, prossigo no exercício da função, serenamente à espera de que me seja concedido outro tanto de tempos que venham compor outras  recordações, se Deus permitir bem mais adiante.