1)
A problemática da Omissão:
Crimes ditos omissivos constituem
um dos problemas de maior complexidade na doutrina penal moderna. Quando se fala
em matar alguém pensa-se no fazer ativo, no cometer, quer o agente alveje esse
alguém mediante disparos de arma de fogo, ou desferindo-lhe golpes de arma
branca, ou produzindo-lhe asfixia por estrangulamento, ou mesmo ministrando-lhe
veneno.
No entanto, não deixa de ser menos
óbvio para o senso comum que o pai que vê o filho se afogar e não toma qualquer
providência para evitar o resultado também é responsável por causar a morte da
criança. Quer dizer que, de alguma maneira, o matar alguém tanto pode ter o
sentido de agir, produzindo ativamente o resultado, como o de, podendo atuar,
não evitá-lo.
Deste modo é que fica posta a
problemática inerente à categoria dos crimes que se perpetram pela via de um
omitir-se do agente: se na conduta comissiva sua atuação é positiva, palpável (no
sentido de exteriorização por um movimento corporal) na omissiva a sua atuação,
a nível de movimento, a rigor não existe. E na elaboração da teoria da infração
se torna difícil estabelecer até que ponto a simples inação do agente é causa
de um resultado.
Este problema se reveste de
relevância para o Direito Penal Militar, em que, via de regra, o agente que
pratica a conduta inquinada de criminosa está acompanhado de um ou mais
companheiros de guarnição, que nem sempre participam ativamente do processo que
deflagra o resultado. Até que ponto essa não participação do militar que
acompanha a ocorrência é penalmente relevante na causação do resultado, é o
problema que ora se põe.
2) Delitos comissivos e omissivos:
Os tipos penais descrevem, em sua
maioria, condutas positivas, consistentes no fazer alguma coisa. Neste sentido,
os delitos de homicídio (art. 121 do Código Penal, art. 205 do Código Penal
Militar), lesão corporal (art. 129 do Código Penal, art. 209 do Código Penal
Militar), furto (art. 155 do Código Penal, art. 240 do Código Penal Militar),
roubo (art. 157 do Código Penal, art. 242 do Código Penal Militar etc.
Excepcionalmente, em alguns casos, descrevem também condutas onde o núcleo da
ação consiste em deixar de realizar alguma coisa, como é o caso da omissão de socorro
(art. 135 do Código Penal, art. 201 do Código Penal Militar
Levando-se em conta a atuação do
agente é que se classificam os delitos em comissivos e omissivos, onde os
primeiros consistem no realizar a conduta positiva descrita no tipo e os
segundos, no realizar a conduta negativa descrita.
2.1) Conduta omissiva:
Obviamente que há muito se percebeu
que ação e omissão são condutas contrárias, que uma é, de fato, a negação da
outra. Na seara que nos interessa, o direito penal, é fato que as teorias da
ação sempre tiveram dificuldade em explicar a conduta omissiva penalmente
relevante, sendo o ponto fulcral o delimitar, de maneira inequívoca, o alcance
da incidência do mandamento penal sobre uma qualquer inação.
Ultrapassadas que foram, na
evolução da doutrina penal, as concepções naturalísticas e fisiológicas da
ação, a concepção normativista concluiu que a inatividade do agente só será
penalmente relevante se estiver em desacordo com preceito normativo que, nas
circunstâncias, lhe impunha a obrigação de atuar. Esta concepção considera que
a simples inação é desprovida de significado jurídico se não há um mandamento
legal que, na situação, retire do agente a possibilidade de se omitir.
Em linhas gerais: tomando-se como
ponto de partida uma conduta verificável do agente, importa confrontá-la com a
norma a fim de se aferir do cumprimento ou não do mandamento dali emanado.
Desde que a omissão significa a não execução do tal mandamento, esta pode se
dar através de uma conduta positiva (na prática de uma atividade diversa da
preconizada pela norma) ou negativa (na inatividade do agente), sendo esta
conduta o substrato material do juízo a ser proferido. Num segundo momento, há
de se investigar da conformação da conduta à norma que determinava o preceito.
Portanto, a valoração da conduta omissiva é um exercício hipotético, posto que
se julga não aquilo que foi executado, mas o que deveria ter sido: não tendo
sido realizado o preceito determinado, a conduta é omissiva.
3) Delitos omissivos próprios e impróprios:
Das codificações penais vê-se uma
diferenciação entre duas espécies de crimes praticados mediante conduta
omissiva: aqueles que estão tipificados e outros cuja causação do tipo
comissivo (homicídio, lesões corporais) pode se dar pela omissão do agente.
Deixando de lado discussões
doutrinárias, os crimes omissivos são classificados exatamente em omissivos
próprios e omissivos impróprios, conforme esteja ou não a conduta omissiva
expressamente tipificada. Conquanto seja este, da previsão legal, o critério
mais instintivo de classificação, há um segundo, que leva em conta o sujeito da
norma. Desta forma, nos crimes omissivos próprios há um dever geral, dirigido a
todos quantos possam se desincumbir dele, enquanto que nos omissivos impróprios
há um particular dever de impedir que o resultado se produza, dirigido a
sujeitos determinados.
Um outro critério, levando em conta
o resultado, talvez seja o mais utilizado: o crime omissivo próprio constitui,
para JESCHECK (1981, p.832-833), a contrapartida, no domínio da omissão, do
crime de mera atividade, posto que se o escopo da norma é, em última análise,
evitar a produção do resultado, o legislador nem por isso erige a produção do
resultado em elemento do tipo. Por outro lado, nos crimes omissivos impróprios,
a produção do resultado pertence ao tipo legal. Portanto, os delitos de omissão
imprópria exigem que a conduta do agente seja de molde a produzir o resultado
lesivo, não pela violação de uma norma posta em termos de comando, mas
violando-se indiretamente uma proibição legal.
4) Causalidade omissiva:
O problema da causalidade não se
põe na totalidade dos delitos omissivos, mas tão somente nos omissivos
impróprios, em que a causação do resultado faz parte do tipo. A questão pode
ser posta da seguinte maneira: até que ponto uma causa negativa pode produzir
um efeito positivo? Isto é, até que ponto a omissão, a negação de um movimento,
pode ocasionar uma transformação no mundo objetivo?
A equiparação da omissão à ação
como causa de um resultado está expressamente prevista nas legislações penais
modernas. Assumiu-se, ao longo da evolução do pensamento jurídico, que ação e
omissão são espécies distintas de conduta. Da mesma forma que somente se pode
conceber a omissão como conduta penalmente relevante num plano normativo, assim
também somente no mesmo universo sistemático se poderá conceber a causalidade
omissiva.
É bem claro que se ação é
potencialmente causa de um resultado qualquer e omissão é ato contrário à ação,
depreende-se que a omissão não pode ser causa de um resultado passível de ser
causado por ação; antes, é uma condição de atuação da causa, na medida em que
irá ou não permitir que aquela opere. Assim, e em suma, desde que o agente se
omite, uma causa pode vir a operar para produzir o resultado, o que se fica não
no campo da probabilidade naturalística, mas da causalidade penal, por força da
disposição normativa.
5) A posição de garante:
Mas sendo a inação um estado
natural, a quem incumbe, para o direito penal, o dever de evitar o resultado
tachado de criminoso? Diz-se dos crimes omissivos impróprios serem de omissão qualificada,
porque o agente deve possuir uma qualidade específica, que não é inerente nem
existe nas pessoas em geral (TAVARES,
1996; p. 65. Esta qualidade significa uma especial
relação com a vítima, de tal forma que obrigue o agente, como garantidor de que
o resultado danoso não aconteça àquela. Ou seja, a posição de garantidor está
fundada no dever de impedir o resultado.
Essa defesa que se espera do agente
colocado em posição de garante pode advir de duas situações distintas: a
primeira diz respeito à obrigação de proteção de um bem jurídico contra lesões
vindas de onde quer que venham, e a segunda, à obrigação de exercer controle
sobre determinadas fontes de perigo, consistindo sua obrigação na eliminação
dessa fonte de perigo, independentemente de qual seja o bem ameaçado, só depois
se seguindo a proteção ao bem.
No primeiro grupo, estão incluídas
posições de garante oriundas diretamente da lei ou do contrato, como, por
exemplo, no caso de relações familiares. No segundo grupo estão incluídos os
casos de ingerência, de responsabilidade dos pais pelos atos dos filhos, de
manipulação de elementos químicos tóxicos ou poluentes etc.
O problema do dever de garante é
tratado de maneira diferente nas legislações penais que estabelecem essa
equivalência entre o fazer e o omitir na causação do resultado. Na Alemanha e
em Portugal, por exemplo, o dispositivo legal referente à omissão faz menção ao
dever jurídico de evitar o resultado, enquanto que no Brasil o dispositivo
esclarece, também, as situações em que o agente se encontra na posição de
garante. Discussões se põem, neste ponto, sobre se resta ou não contemplado, em
cada um dos casos, o princípio da legalidade, o que foge do propósito deste
texto.
6) Observações quanto ao Direito
Penal Militar:
Importa é que a mesma fórmula
adotada no Código Penal Brasileiro é repetida no art. 29, § 2.º, do Código
Penal Militar, este último assim redigido:
“§ 2.º A omissão é relevante como causa
quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir
incumbe a quem tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; a
quem, de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; e a
quem, com seu comportamento anterior, criou o risco de sua superveniência.”
É função constitucional das
polícias militares a manutenção da ordem pública; daí decorre a obrigação legal
de agir, o que consta expressamente, por exemplo, do art. 301 do Código de
Processo Penal Brasileiro. Portanto, do policial militar espera-se em tese que,
pela sua atuação, seja evitado o resultado danoso. Mas como consta da
disposição legal, se essa atuação deve observar o preceito da obrigação de agir,
deve observar, também, o da possibilidade de agir, o que depende das
circunstâncias no caso concreto.
Especificamente na seara do direito
militar, a delimitação do alcance da norma incriminadora agrega ainda outra
condicionante, que advém das peculiaridades da função, e é levada em conta pela
jurisprudência na investigação das circunstâncias fáticas da prática do delito
por militar em serviço: a presença ou não, na ocorrência, de superior em
condições de agir para evitar o resultado. É o que se depreende do seguinte
julgado, do TJM-MG:
A simples presença de um militar no
local em que a outro militar se atribui a conduta criminosa não é razão
suficiente para incluí-lo na denúncia a título de responsabilidade por omissão,
se havia presente outro militar graduado a quem cabia o dever de oposição, nos
termos do art. 29, § 2º, do CPM. (Processo 18.644/ 2.ª AJME; Relator Juiz José
Joaquim Benfica; publicado em 02/03/2002).
A contrario sensu, estando presente
na ocorrência o superior que se omita no evitar o resultado, é passível de
responsabilização nos termos do § 2.º do art. 29 do CPM, como se vê deste outro
julgado do TJM-MG:
Em uma ocorrência policial, atendida por
dois militares, se o superior não coíbe, ou pelo menos não tenta impedir ato
ilícito ou criminoso de seu subordinado, não tomando, outrossim, nenhuma providência,
incide, nos termos do § 2º do art. 29 do CPM, em omissão relevante, ficando
sujeito, em co-autoria, às mesmas penas a ele cominadas (Processo
nº 18.702/1ª AJME, Relator o juiz Cel PM Jair Cançado Coutinho, publicado em
09.08.2002)
Vê-se, assim, que a tormentosa questão
da delimitação da incidência da norma penal incriminadora da omissão conhece,
no Direito Penal Militar, uma outra condicionante, derivada de peculiaridade
inerente ao regramento castrense, todo ele voltado à manutenção da hierarquia e
disciplina. Essa obrigação de evitar o resultado danoso pelo subordinado é
cometida ao superior presente no local da ocorrência como consequência lógica
de sua posição hierárquica: o excesso na conduta frente a superior constitui,
em tese, ato de indisciplina, na medida que a atuação do policial militar, como
agente público que é, deve-se cingir aos estritos limites legais.
Como já referido, se, em termos de
atendimento ao princípio da legalidade, as objeções teóricas opostas à fórmula
consagrada no art. 13 do Código Penal Brasileiro são menos contundentes, o
mesmo se dá com relação ao texto do Código Penal Militar, que repete aquela.
Portanto, a questão que põe na prática, na aplicação do dispositivo penal
castrense, é justamente a delimitação da incidência da norma penal,
sopesando-se a circunstância da obrigação legal de agir do militar empenhado na
ocorrência, por um lado, e a excepcionalidade da norma que incrimina a omissão,
por outro.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS:
1) JESCHECK, H.H. Tratado de
Derecho Penal. Trad. Mir Puig e Muñoz Conde. Barcelona: Bosch, 1981.
2) TAVARES, Juarez. As
Controvérsias em torno dos Crimes Omissivos. Rio de Janeiro: Imprenta, 1996
(publicado na Revista Direito Militar n.º 101, mai/jun 2013, p. 7/10)