14 de setembro de 2013

Omissão Imprópria no Direito Penal Militar

1) A problemática da Omissão:

Crimes ditos omissivos constituem um dos problemas de maior complexidade na doutrina penal moderna. Quando se fala em matar alguém pensa-se no fazer ativo, no cometer, quer o agente alveje esse alguém mediante disparos de arma de fogo, ou desferindo-lhe golpes de arma branca, ou produzindo-lhe asfixia por estrangulamento, ou mesmo ministrando-lhe veneno.

No entanto, não deixa de ser menos óbvio para o senso comum que o pai que vê o filho se afogar e não toma qualquer providência para evitar o resultado também é responsável por causar a morte da criança. Quer dizer que, de alguma maneira, o matar alguém tanto pode ter o sentido de agir, produzindo ativamente o resultado, como o de, podendo atuar, não evitá-lo.

Deste modo é que fica posta a problemática inerente à categoria dos crimes que se perpetram pela via de um omitir-se do agente: se na conduta comissiva sua atuação é positiva, palpável (no sentido de exteriorização por um movimento corporal) na omissiva a sua atuação, a nível de movimento, a rigor não existe. E na elaboração da teoria da infração se torna difícil estabelecer até que ponto a simples inação do agente é causa de um resultado.

Este problema se reveste de relevância para o Direito Penal Militar, em que, via de regra, o agente que pratica a conduta inquinada de criminosa está acompanhado de um ou mais companheiros de guarnição, que nem sempre participam ativamente do processo que deflagra o resultado. Até que ponto essa não participação do militar que acompanha a ocorrência é penalmente relevante na causação do resultado, é o problema que ora se põe.

2) Delitos comissivos e omissivos:

Os tipos penais descrevem, em sua maioria, condutas positivas, consistentes no fazer alguma coisa. Neste sentido, os delitos de homicídio (art. 121 do Código Penal, art. 205 do Código Penal Militar), lesão corporal (art. 129 do Código Penal, art. 209 do Código Penal Militar), furto (art. 155 do Código Penal, art. 240 do Código Penal Militar), roubo (art. 157 do Código Penal, art. 242 do Código Penal Militar etc. Excepcionalmente, em alguns casos, descrevem também condutas onde o núcleo da ação consiste em deixar de realizar alguma coisa, como é o caso da omissão de socorro (art. 135 do Código Penal, art. 201 do Código Penal Militar

Levando-se em conta a atuação do agente é que se classificam os delitos em comissivos e omissivos, onde os primeiros consistem no realizar a conduta positiva descrita no tipo e os segundos, no realizar a conduta negativa descrita.

2.1) Conduta omissiva:

Obviamente que há muito se percebeu que ação e omissão são condutas contrárias, que uma é, de fato, a negação da outra. Na seara que nos interessa, o direito penal, é fato que as teorias da ação sempre tiveram dificuldade em explicar a conduta omissiva penalmente relevante, sendo o ponto fulcral o delimitar, de maneira inequívoca, o alcance da incidência do mandamento penal sobre uma qualquer inação.

Ultrapassadas que foram, na evolução da doutrina penal, as concepções naturalísticas e fisiológicas da ação, a concepção normativista  concluiu que a inatividade do agente só será penalmente relevante se estiver em desacordo com preceito normativo que, nas circunstâncias, lhe impunha a obrigação de atuar. Esta concepção considera que a simples inação é desprovida de significado jurídico se não há um mandamento legal que, na situação, retire do agente a possibilidade de se omitir.

Em linhas gerais: tomando-se como ponto de partida uma conduta verificável do agente, importa confrontá-la com a norma a fim de se aferir do cumprimento ou não do mandamento dali emanado. Desde que a omissão significa a não execução do tal mandamento, esta pode se dar através de uma conduta positiva (na prática de uma atividade diversa da preconizada pela norma) ou negativa (na inatividade do agente), sendo esta conduta o substrato material do juízo a ser proferido. Num segundo momento, há de se investigar da conformação da conduta à norma que determinava o preceito. Portanto, a valoração da conduta omissiva é um exercício hipotético, posto que se julga não aquilo que foi executado, mas o que deveria ter sido: não tendo sido realizado o preceito determinado, a conduta é omissiva.

  3) Delitos omissivos próprios e impróprios:

Das codificações penais vê-se uma diferenciação entre duas espécies de crimes praticados mediante conduta omissiva: aqueles que estão tipificados e outros cuja causação do tipo comissivo (homicídio, lesões corporais) pode se dar pela omissão do agente.
                                                          
Deixando de lado discussões doutrinárias, os crimes omissivos são classificados exatamente em omissivos próprios e omissivos impróprios, conforme esteja ou não a conduta omissiva expressamente tipificada. Conquanto seja este, da previsão legal, o critério mais instintivo de classificação, há um segundo, que leva em conta o sujeito da norma. Desta forma, nos crimes omissivos próprios há um dever geral, dirigido a todos quantos possam se desincumbir dele, enquanto que nos omissivos impróprios há um particular dever de impedir que o resultado se produza, dirigido a sujeitos determinados.

Um outro critério, levando em conta o resultado, talvez seja o mais utilizado: o crime omissivo próprio constitui, para JESCHECK (1981, p.832-833), a contrapartida, no domínio da omissão, do crime de mera atividade, posto que se o escopo da norma é, em última análise, evitar a produção do resultado, o legislador nem por isso erige a produção do resultado em elemento do tipo. Por outro lado, nos crimes omissivos impróprios, a produção do resultado pertence ao tipo legal. Portanto, os delitos de omissão imprópria exigem que a conduta do agente seja de molde a produzir o resultado lesivo, não pela violação de uma norma posta em termos de comando, mas violando-se indiretamente uma proibição legal.

4) Causalidade omissiva:
                                                          
O problema da causalidade não se põe na totalidade dos delitos omissivos, mas tão somente nos omissivos impróprios, em que a causação do resultado faz parte do tipo. A questão pode ser posta da seguinte maneira: até que ponto uma causa negativa pode produzir um efeito positivo? Isto é, até que ponto a omissão, a negação de um movimento, pode ocasionar uma transformação no mundo objetivo?

A equiparação da omissão à ação como causa de um resultado está expressamente prevista nas legislações penais modernas. Assumiu-se, ao longo da evolução do pensamento jurídico, que ação e omissão são espécies distintas de conduta. Da mesma forma que somente se pode conceber a omissão como conduta penalmente relevante num plano normativo, assim também somente no mesmo universo sistemático se poderá conceber a causalidade omissiva.

É bem claro que se ação é potencialmente causa de um resultado qualquer e omissão é ato contrário à ação, depreende-se que a omissão não pode ser causa de um resultado passível de ser causado por ação; antes, é uma condição de atuação da causa, na medida em que irá ou não permitir que aquela opere. Assim, e em suma, desde que o agente se omite, uma causa pode vir a operar para produzir o resultado, o que se fica não no campo da probabilidade naturalística, mas da causalidade penal, por força da disposição normativa.

 5) A posição de garante: 
Mas sendo a inação um estado natural, a quem incumbe, para o direito penal, o dever de evitar o resultado tachado de criminoso? Diz-se dos crimes omissivos impróprios serem de omissão qualificada, porque o agente deve possuir uma qualidade específica, que não é inerente nem existe nas pessoas em geral (TAVARES, 1996; p. 65. Esta qualidade significa uma especial relação com a vítima, de tal forma que obrigue o agente, como garantidor de que o resultado danoso não aconteça àquela. Ou seja, a posição de garantidor está fundada no dever de impedir o resultado.

Essa defesa que se espera do agente colocado em posição de garante pode advir de duas situações distintas: a primeira diz respeito à obrigação de proteção de um bem jurídico contra lesões vindas de onde quer que venham, e a segunda, à obrigação de exercer controle sobre determinadas fontes de perigo, consistindo sua obrigação na eliminação dessa fonte de perigo, independentemente de qual seja o bem ameaçado, só depois se seguindo a proteção ao bem.
                                                          
No primeiro grupo, estão incluídas posições de garante oriundas diretamente da lei ou do contrato, como, por exemplo, no caso de relações familiares. No segundo grupo estão incluídos os casos de ingerência, de responsabilidade dos pais pelos atos dos filhos, de manipulação de elementos químicos tóxicos ou poluentes etc.

O problema do dever de garante é tratado de maneira diferente nas legislações penais que estabelecem essa equivalência entre o fazer e o omitir na causação do resultado. Na Alemanha e em Portugal, por exemplo, o dispositivo legal referente à omissão faz menção ao dever jurídico de evitar o resultado, enquanto que no Brasil o dispositivo esclarece, também, as situações em que o agente se encontra na posição de garante. Discussões se põem, neste ponto, sobre se resta ou não contemplado, em cada um dos casos, o princípio da legalidade, o que foge do propósito deste texto.

6) Observações quanto ao Direito Penal Militar:

Importa é que a mesma fórmula adotada no Código Penal Brasileiro é repetida no art. 29, § 2.º, do Código Penal Militar, este último assim redigido:

“§ 2.º A omissão é relevante como causa quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; a quem, de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; e a quem, com seu comportamento anterior, criou o risco de sua superveniência.”

É função constitucional das polícias militares a manutenção da ordem pública; daí decorre a obrigação legal de agir, o que consta expressamente, por exemplo, do art. 301 do Código de Processo Penal Brasileiro. Portanto, do policial militar espera-se em tese que, pela sua atuação, seja evitado o resultado danoso. Mas como consta da disposição legal, se essa atuação deve observar o preceito da obrigação de agir, deve observar, também, o da possibilidade de agir, o que depende das circunstâncias no caso concreto.

Especificamente na seara do direito militar, a delimitação do alcance da norma incriminadora agrega ainda outra condicionante, que advém das peculiaridades da função, e é levada em conta pela jurisprudência na investigação das circunstâncias fáticas da prática do delito por militar em serviço: a presença ou não, na ocorrência, de superior em condições de agir para evitar o resultado. É o que se depreende do seguinte julgado, do TJM-MG:

A simples presença de um militar no local em que a outro militar se atribui a conduta criminosa não é razão suficiente para incluí-lo na denúncia a título de responsabilidade por omissão, se havia presente outro militar graduado a quem cabia o dever de oposição, nos termos do art. 29, § 2º, do CPM. (Processo 18.644/ 2.ª AJME; Relator Juiz José Joaquim Benfica; publicado em 02/03/2002).

A contrario sensu, estando presente na ocorrência o superior que se omita no evitar o resultado, é passível de responsabilização nos termos do § 2.º do art. 29 do CPM, como se vê deste outro julgado do TJM-MG:

Em uma ocorrência policial, atendida por dois militares, se o superior não coíbe, ou pelo menos não tenta impedir ato ilícito ou criminoso de seu subordinado, não tomando, outrossim, nenhuma providência, incide, nos termos do § 2º do art. 29 do CPM, em omissão relevante, ficando sujeito, em co-autoria, às mesmas penas a ele cominadas (Processo nº 18.702/1ª AJME, Relator o juiz Cel PM Jair Cançado Coutinho, publicado em 09.08.2002)

Vê-se, assim, que a tormentosa questão da delimitação da incidência da norma penal incriminadora da omissão conhece, no Direito Penal Militar, uma outra condicionante, derivada de peculiaridade inerente ao regramento castrense, todo ele voltado à manutenção da hierarquia e disciplina. Essa obrigação de evitar o resultado danoso pelo subordinado é cometida ao superior presente no local da ocorrência como consequência lógica de sua posição hierárquica: o excesso na conduta frente a superior constitui, em tese, ato de indisciplina, na medida que a atuação do policial militar, como agente público que é, deve-se cingir aos estritos limites legais.

Como já referido, se, em termos de atendimento ao princípio da legalidade, as objeções teóricas opostas à fórmula consagrada no art. 13 do Código Penal Brasileiro são menos contundentes, o mesmo se dá com relação ao texto do Código Penal Militar, que repete aquela. Portanto, a questão que põe na prática, na aplicação do dispositivo penal castrense, é justamente a delimitação da incidência da norma penal, sopesando-se a circunstância da obrigação legal de agir do militar empenhado na ocorrência, por um lado, e a excepcionalidade da norma que incrimina a omissão, por outro.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS:

1) JESCHECK, H.H. Tratado de Derecho Penal. Trad. Mir Puig e Muñoz Conde. Barcelona: Bosch, 1981.

2) TAVARES, Juarez. As Controvérsias em torno dos Crimes Omissivos. Rio de Janeiro: Imprenta, 1996 

(publicado na Revista Direito Militar n.º 101, mai/jun 2013, p. 7/10)