5 de fevereiro de 2011

VITÓRIA CIDADE SOL. E MAR, PORTO, ILHA, PRESÉPIO...


Já alguma vez lhe aconteceu de cogitar, leitor, que é que poderá sentir um possível viajante imaginário vindo primeira vez a Vitória? Ocorreu-me isto agora ao lembrar que uma vez presenciei, num vôo que aterrava e que por acaso me trazia de volta para casa, o “cicerone” capixaba de um súdito inglês, sentados ambos lado a lado, esclarecer a este que não, o nome da nossa cidade não tinha a ver com a Rainha Vitória deles, mas se devia a uma “portuguese victory against indians”, o que é extremamente correto do ponto de vista da tradição.

De fato, é da História que Vasco Fernandes voltara às pressas do reino, nos idos de 1547 ou 1548, ao saber das novas da destruição dos engenhos que aqui deixara produzindo a todo vapor – ou, antes, a todo melado - e quase sem nenhuns recursos materiais nem humanos (que os que não foram mortos na sua ausência se passaram para a vizinha Porto Seguro) acabou, na seqüência, por fundar Vitória. Quer dizer, passando-se para a humilde povoação de colonos já existente na ilha de Duarte Lemos, por ocasião de uma daquelas intermináveis escaramuças contra os goitacazes, que se iam aos poucos novamente assenhoreado dos entornos deles retirados desde a chegada da “Grória” ao pé do Morro da Penha, na Vila Velha.

Se a tradição guarda a data de 8 de setembro de 1551 como da fundação da povoação, numa vitória espetacular dos colonos contra os indígenas que se coroou no local mesmo da edificação da Igreja, por seu turno a historiografia registra documento daqui mesmo datado do ano da Graça de 1550. A propósito, uma provisão do provedor-mor nestas partes do Brasil, vindo com o primeiro governador-geral, mandando pagar os emolumentos de direito ao clérigo de missa da Vila.

O fato é que a tradição fala muito mais ao coração do povo, que prefere referir-se a Rômulo e Remo amamentados pela loba no episódio da fundação de Roma. E das éguas velocíssimas que se emprenhavam pelo vento, lá da região aonde Ulisses foi buscar Aquiles para o conduzir ao teatro da Guerra de Tróia, e passando por isto o povo a se referir ao lugar como Ulissipo, Olissipone, Lissabone, Lisbone... Nossa vitória contra os índios, da mesma forma, é incontestável, mesmo para um súdito britânico, que aliás teve aqui mesmo, nesta baía, fragorosamente batido pela população armada da terra de Nossa Senhora da Vitória uma das flores do corso inglês, o capitão Thomas Cavendish.

Provavelmente o nosso viajante imaginário que desceu da aeronave comigo ignorará logo à chegada os fatos destacados da fundação e dos primeiros tempos da Vila de Nossa Senhora da Vitória. Mas sem dúvida se verá inundado de sol e do calor viscoso da cidade que lhe abre os braços para o receber, assim que acabar de descer as escadas de bordo. Se tiver sorte, poderá mesmo ouvir, dos alto-falantes do nosso defasadíssimo campo de pouso, a festejar-lhe a chegada, os versos imortais de Pedro Caetano, dos mais notórios entre os inúmeros outros paulistas, goianos, cariocas, pernambucanos, alagoanos, mineiros - que se encantaram pela terra inundada de luz:


“Cidade Sol, com o céu sempre azul
Tu és um sonho de luz norte a sul
Meu coração te namora e te quer
Tu és Vitória um sorriso de mulher...”
Que as cidades, amigo, são como as mulheres: cada uma nos agrada de um jeito diferente, e no que uma me atrai a mim, você ou outro pode não pôr nisto a menor atenção. É corrente, imagem poética batida, que a cidade - terra, lugar de origem -, tem paralelo com a mulher, que gera, que origina. Mas, e prossegue o bom poeta, para gerar a mulher tem, antes, de seduzir. A sedução que vem de uma e outra é, assim, semelhante: sorriem, atraem-nos, e assim ficamos. E só.

O sorriso da mulher que seduz é radioso, e o de Vitória também é, ou o nosso poeta, que de fato era dos bons, não a compararia ao sorriso de mulher nenhuma. Porque o sol aqui, nesta terra à beira-mar plantada, é constante, e a cidade toda ela irradia de cara num sorriso aberto, luminoso.

A bem da verdade, leitor amigo, como sabemos este sorriso é quase constante: já se disse também que em Vitória há verão e vento sul. E a propósito, este vento sul, que nos traz a chuva, já foi antigamente infalível quando à cidade chegava um circo, sabia disto? Ou seja, a molecada corria era na chuva para ver os animais, que circo chegando a cidade sem molecada correndo em volta, seja aqui ou em qualquer outro lugar do mundo civilizado (e que por isto mesmo tenha circo) é algo que não se concebe.

Ilha. Antiga Ilha do Mel dos tupiniquins. Antes de mais nada, - será mesmo aqui a Cidadilha de Luis Guilherme Santos Neves? Ladeiras, cais e igrejas tanto Vitória quanto a cidade fantástica do romancista têm de sobra. Mas a propósito dessa indagação diz o autor que cabe a cada um descobrir, e assim que fique cada um com suas cogitações, depois de lê-lo. Guananira, princesa índia que aqui aportou, vinda do norte, do Rio-mar, e aqui seduziu Penedo, que por ela se apaixonou - conforme me contava em pequeno minha avó Doralice de Oliveira Neves. Transformados, ele em colosso de pedra, para sempre velá-la, ela na bela ilha, para estar sempre ao pé dele. Muito depois - seguia a narradora - aqui aportou a primeira mãe capixaba, de fado semelhante ao de Iracema, dos lábios de mel. Vinha no propósito de salvar a filha, a dos cabelos semelhantes à espiga do milho, da vingança dos seus...

O mar é uma constante no imaginário da cidade. Cidade-porto, local seguro, como o fora para a mãe índia escorraçada, da lenda de minha avó. A cidade vive voltada para o porto, como vivera outrora à volta de seus inúmeros cais, onde aportavam pescadores e comerciantes. A pesca é atividade recorrente, o capixaba era sobretudo o comedor de marisco, de peixe com pirão de farinha da mandioca. Isto até se ver invadido de volta, com suas tropas de burro, pelos mineiros, esses antigos capixabas que mandáramos há séculos para o lado de lá da Serra dos Aimorés, atrás de ouro. Na volta, isto é, descendo de volta para o litoral, foram eles povoando os sertões que sobraram dos imigrantes europeus e tornando vulgares os pratos à base de carne de gado, que hoje integram também nossa culinária local.

Cidade portuária por excelência, Vitória inspirou inúmeros cantos que disso davam conta. O Padre Marcelino Duarte, poeta capixaba, patrono da cadeira n.º 1 da Academia Espírito-Santense de Letras, caído em desgraça junto ao governador Rubim, despede-se de sua terra no seu Derrota de uma Viagem ao Rio de Janeiro em 1817:

Adeus, Vitória! Digo então comigo,
Sultana que sobr’ o mar o colo inclina!
O mesmo poeta, ao retornar à pátria muitos anos depois, tem daqui a seguinte impressão:

Surgindo da flor d’água lentamente
Vai a linda cidade de Vitória.
Que vista pitoresca!
Um montão de edifícios
Cobre a rasa colina!
Já num prenúncio, talvez, da “cidade-presépio”, de Adolfo Fraga, “pequenina e tão cheinha que é”... Ou já foi. A cidade cresceu, os problemas aumentaram, entre eles a criminalidade. Saiba, leitor, que com relação a crimes Vitória já teve também o seu Sherlock, o famoso detetive Machuca, elemento das relações do Acadêmico Adelpho Monjardim, ex-prefeito da cidade, que começou a narrar as proezas investigativas do nosso policial na sua coleção de “Contos Fantásticos”.

Sol. Luz. Mar. Mas uma cidade que se preza não se faz sem seus mistérios, como as assombrações do Recife velho, resgatadas lá por Gilberto Freyre. A propósito, que se conta em Vitória hoje em dia dos subterrâneos sombrios da Igreja de São Tiago, por onde os jesuítas ameaçados tinham fuga, notadamente para os lados do antigo Porto dos Padres? Por onde teriam ficado as riquezas todas que não puderam carregar com eles quando foram expulsos do Brasil, e portanto de suas propriedades em Vitória? Que se conta em Vitória hoje em dia dos estranhos tesouros escondidos numa ou noutra das sombrias grutas em forma de olhos da Pedra dos Olhos, que vigia a ilha de cima? Ou mesmo do tesouro em prata da catedral de Lima, enterrada por corsários ingleses na Ilha da Trindade - que, embora contestado pela Marinha de Guerra, é território da cidade?

As bolas de fogo que desciam da Fonte Grande nunca mais foram vistas, desde o advento da luz elétrica. De Maria Guaibira, a velha feiticeira que habitava as ruínas do Forte São João e se transformava em pata, não se teve mais notícia desde que uma vez foi surpreendida em sua metamorfose maligna, como nos narrou o mesmo Adelpho Monjardim. Mas que eu saiba subsiste hoje ao menos um ser fantástico em Vitória, o Licantropo do Parque Moscoso. Corre a boca-pequena tratar-se da transmutação terrível do próprio romancista que deu notícia de suas proezas. Criatura esta aliás que, fora das noites de lua-cheia, é afável no trato e não seria capaz de beber sangue de suas vítimas, talvez por esta substância não conter álcool...

Viver, já disse o Acadêmico Marien Calixte, é ver Vitória. Assim, sem se dar conta, o nosso viajante imaginário veio até aqui vivendo entre nós, e é desejo meu, que o imaginei e vim guiando em minha argumentação, que acabe seu primeiro contato com a cidade-sol sob os raios de sol que queimam o asfalto da Praça João Clímaco, na Cidade Alta.

Dali, do alto, o viajante poderá ver o braço de mar do antigo rio do Espírito Santo, poderá ver o porto, os morros que ponteiam a geografia da ilha, dali conseguirá perceber os primeiros tempos da cidade. É, mesmo, o coração dela, que bate sob o asfalto, no muito antigo largo entre a antiga igreja de São Tiago, a de São Gonçalo, a antiga Igreja da Misericórdia e o mar, abaixo. Olhar lá para adiante, para os lados da velha Igreja Matriz, demolida e hoje remodelada na Catedral de Nossa Senhora da Vitória, mesmo ao lado do antigo Pelourinho, que também não se vê mais – outrora um símbolo do poder real, que Maria Ortiz defendeu repelindo os invasores holandeses que subiam pela ladeira, hoje escadaria com seu nome. Maria Ortiz, que não era prostituta, porque só aos ficcionistas é dado cogitar que se erguesse um prostíbulo ao lado de um símbolo máximo do poder real.

Dali, da Praça João Clímaco, coração da cidade, verá o nosso viajante que Domingos José Martins continua a velar pelos ideais dos vitorienses, e de todo capixaba. Dali, mesmo ao lado de onde José de Anchieta fez encenar seus autos, de sobre o pátio do antigo colégio, poderá o viajante perceber que irradia ainda uma outra luz, que como a do sol desce também sobre a cidade - mesmo dali, da casa de Kosciuzko Barbosa Leão, onde José de Anchieta tem assento para sempre. E onde os vates capixabas para sempre cantarão a tradição, os mistérios e as belezas da sua cidade.


(publicado no n.º 25 dos "Escritos de Vitória": Vitória, Cidade Sol, Vitória: 2008)