6 de fevereiro de 2011

UMA CIDADE-ILHAS



Vitória é uma das três capitais brasileiras situada numa ilha, não é novidade. Mas embora Vitória seja uma cidade-ilha, o município de Vitória não ocupa só uma ilha, mas um arquipélago: os pouco mais de 93 quilômetros quadrados de área municipal se estendem, na verdade, por trinta e quatro ilhas, ilhotas e formações rochosas, além de áreas localizadas no continente. Mesmo que não se cuide, aqui, de uma aula de geografia, declinamos os nomes das ilhas e ilhotas que compõem o arquipélago, por amor à curiosidade e como introdução à nossa digressão: Ilha de Vitória, Ilha da Pólvora, Ilha do Cal, Pedra dos Ovos, Ilha das Pombas, Ilha do Urubu, Ilha das Tendas, Ilha das Cobras, Ilha Maria Catoré, Pedra da Baleia, Ilha dos Práticos, Ilha dos Itaitis, Ilha dos Igarapés, Ilha Galheta de Dentro, Ilha Galheta de Fora, Ilha das Andorinhas, Ilha Rasa, Ilha do Fato, Ilha dos Índios, Ilha do Socó, Ilha do Frade, Ilha do Chrisógono (Santa Cruz), Ilha do Paraíso, Ilha da Baleia (Cavalo), Ilha do Meio, Ilha do Campinho, Ilha do Apicum (Lameirão), Ilha Guruçá, Ilha Margarida, Ilha Solteira, Ilha Grande (Delta do Rio Santa Maria), Ilha de Trindade, Arquipélago Martin Vaz, Ilha da Fumaça. Encontram-se já integradas à ilha principal, onde se localiza a cidade de Vitória: Ilha de Santa Maria, Ilha de Monte Belo, Ilha do Boi, Ilha do Papagaio, Ilha do Sururu, Ilha do Príncipe, Ilha do Bode, Ilha da Rainha, Ilha da Palha (Madeira), Ilha das Caieiras, Ilha do Caju, Ilha Wetzel, Ilha Rabello, Ilha do Cercado, Ilha da Forca, Ilha Cinzenta, Ilha Gonçalves Martins.

Embora a média do cidadão vitoriense possa, com alguma razão, não saber localizar cada uma delas no mapa, os pescadores, os velejadores, os marinheiros, os práticos, da capital o sabem, ao menos grande parte delas. E alguém menos amigo desta coisa de curiosidades há de perguntar – e daí?

Como não tenho resposta para essa pergunta, abandonemos desde logo essa linha de exposição e permita-me chamar sua atenção, caro leitor, para o fato de que me referi, acima, a “ilha principal”. Que não se chama, originalmente (isto depois da Ilha do Mel dos índios) Ilha de Vitória, mas Ilha de Santo Antônio, de Santo Antônio de Lisboa, o santo guerreiro que, nascido em Lisboa, viveu a maior parte de sua vida pública em Padova, na Itália. E interveio, em favor de Portugal, na Batalha de Aljubarrota, em agosto de 1385, quando o reino português rechaçou mais uma tentativa castelhana de sua anexação. Justamente por lograr fama de guerreiro, na conta dessa intervenção sobrenatural e vitoriosa, Santo Antônio sentou praça em várias localidades do reino, e na Companhia de Infantaria paga de Vitória foi matriculado em fevereiro de 1752, vencendo soldo de soldado raso, conforme documento colecionado por José Teixeira de Oliveira em seu História do Estado do Espírito Santo.

Aliás, a tradição dos santos guerreiros era cultuada na antiga Ilha de Santo Antônio, e outro exemplo é a consagração a Santiago - o discípulo de Jesus que foi ter à costa ocidental da Europa, na Galiza - da igreja dos Jesuítas, na Cidade Alta. Santiago era santo de especial devoção dos castelhanos envolvidos na guerra santa contra os árabes, que ocuparam por oito séculos a Península Ibérica. Rezavam eles ao “matamoros”, invocação mais famosa do santo. Sua devoção veio transportada para a América nas embarcações dos conquistadores de territórios aos indígenas, estes últimos muito menos ingênuos e pobrezitos que se os costuma pintar hoje em dia.

Mas o exemplo derradeiro em abono àquela afirmação acima é a consagração do templo principal da então Vila a Nossa Senhora da Vitória, cuja invocação, na época, nada tinha que ver com a vitória do fiel sobre as provações e as vicissitudes em sua vida, mas sim com a vitória militar, nos campos de batalha, que a tradição aponta ter havido aqui dos colonizadores sobre os indígenas. Lembra-me agora o Cristo das Batalhas, cultuado ainda hoje numa capela da Catedral Nova de Salamanca, a primeira cidade universitária espanhola. A fé ibérica é, afinal, melancólica e guerreira.

Permita-me, agora, chamar sua atenção para outros dois nomes que declinei inicialmente naquela lista de acidentes geográficos integrados à nossa Ilha e, consequentemente, ao município de Vitória: a Ilha da Trindade e o Arquipélago de Martim Vaz, tão ao largo, oceano adentro. Firmemos um pouco mais nossa atenção nessa formação: Trindade fica a 1.200 km, em linha reta, de Vitória, e constitui a parte mais ocidental do território brasileiro. Com o tempo claro, dizem os navegadores, vê-se, a 48 km de distância de Trindade, a Ilha de Martim Vaz. Os pouco mais de dez quilômetros quadrados do arquipélago são desabitados, à exceção de uma guarnição da Marinha do Brasil, que da Ilha da Trindade administra a área, depois que o Supremo Tribunal Federal concedeu liminar em Ação Direta de Inconstitucionalidade (n.º 190) para retirar expressões do art. 2.º da Constituição do Estado do Espírito Santo de 1989, que considerava o arquipélago como território do Estado. Em virtude dessa decisão judicial, a nova redação dada ao art. 2.º da Constituição estadual pela EC 14/98 não refere expressamente as ilhas, ficando tudo agora por conta da tradição.

As ilhas já foram ocupadas brevemente pelo Reino Unido, por motivos que remetem a cabos telegráficos; os britânicos, no entanto, se retiraram em 1896, na esteira de negociações com o Brasil intermediadas por Portugal. Sobre essa ocupação, texto da intervenção de Manoel Francisco Correia em sessão do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro pode-se ler no número de 1897 da Revista daquela Casa. E se quiser saber mais a respeito daquele impressionante pedaço de terra perdido no meio do oceano, que tem o ponto culminante do município, o Pico do Desejado, com seiscentos e um metros de altitude, consulte Trindade, Ilha Misteriosa do Trópico, do navegador Emérico Samassa Mayer, escrito no rescaldo do Ano Geofísico Internacional de 1957, o ano da instalação da base científica no local. Tão impressionante, tão misteriosa, que inspirou ao falecido Acadêmico Adelpho Monjardim a criação do romance Tesouro da Ilha da Trindade, ambientado na ilha, cujo fantasma meu pai sempre se lembrava de suas leituras juvenis.

A Ilha de Trindade já serviu de presídio político, abrigando os derrotados do episódio dos Dezoito do Forte de Copacabana: Eduardo Gomes e Juarez Távora por lá estiveram de 1922 a 1926 quando, com a posse de Washington Luis, aos prisioneiros foi concedida liberdade condicional. Aliás, num parênteses, relembre-se que Vitória já serviu de presídio a outro prisioneiro famoso, em outro episódio famoso na historiografia brasileira: como se sabe, o senador padre Diogo Antônio Feijó esteve recolhido à Cadeia Pública de Vitória, após a Revolução de 1842.

Não é sem propósito: a imagem de uma ilha remete a prisão, porque lembra isolamento (lembremos, por exemplo, de Edmond Dantés, o Conde de Monte Cristo). Para evitar esse isolamento quase inerente à sua condição de ilha é que a de Santo Antônio, onde se localiza Vitória, foi incorporando aquelas outras mencionadas acima, a exemplo da Ilha do Príncipe, acessível inicialmente por meio da hoje Ponte Seca. E também que à cidade já foram dadas seis pontes que a ligassem ao continente. A primeira, cronologicamente falando, é a ponte Florentino Avidos, conhecida como Cinco Pontes, toda fabricada na Alemanha, em aço Krupi, e que foi inaugurada em 1928. A Segunda Ponte, de 1979, trouxe o tráfego continental de Vila Velha e Cariacica para Vitória. A terceira, a ponte Deputado Darcy Castelo de Mendonça, é mesmo chamada pelo povo de Terceira Ponte, e consta ser a maior obra de engenharia já realizada no Espírito Santo, concluída em 1989. Há, ainda, a Ponte da Passagem, ao norte, que vem sendo modernizada com o objetivo de se tornar um novo cartão postal da cidade, a exemplo da Basílica de Santo Antônio; a Ponte Ayrton Senna e a Ponte de Camburi – esta, aliás, a única praia localizada na área continental da cidade e a maior em extensão, com aproximadamente seis quilômetros.

Mencionem-se, para não parecer falho ou falto de informação, mais duas ilhas habitadas: a do Boi, ligada à ilha principal por aterros, e a do Frade, local onde ainda existem casas e sobrados, numa região bastante central da cidade.

Mas essa geografia entrecortada, espremida a cidade entre o mar e o maciço central, a Fonte Grande, e que continua sendo representada pelos geógrafos como um entrave ao desenvolvimento, não augurava, a princípio, o progresso que Vitória apresenta hoje. Inglês de Souza, presidente da Província do Espírito Santo em 1882, e que seria, quinze anos mais tarde, o primeiro tesoureiro da Academia Brasileira de Letras, sugeriu, no seu relatório de governo, a transferência da capital para um ponto central do nosso território, ligando este ponto a Vitória por meio de vias férreas, e permanecendo a cidade como entreposto comercial. Para tanto, dava duas razões, que cada um poderá julgar, mas utilizando-se dos parâmetros daqueles 1882: a situação geográfica da capital, “situada na encosta de uma montanha, apertada pelo mar em uma estreita língua de terra” e também suas condições de salubridade, já que “muito brevemente, e segundo o parecer dos entendidos, a água há de faltar para o abastecimento da população, principalmente na estação calmosa, ou pelo menos se há de reduzir irreparavelmente a quantidade suficiente para o consumo de uma população ligeiramente aumentada”. Se interessar, consulte na Revista da Academia Espírito-santense de Letras, edição de 2007, “O Acadêmico Inglês de Souza e a Presidência da Província do Espírito Santo”, deste que vos escreve.

Quanto à situação geográfica, o município expandiu-se pela região continental e quanto à salubridade, em nome do saneamento a cidade vem sendo perfurada em todos seus quadrantes neste último ano, transtornando o trânsito já semi-caótico pelas “humanizações” das vias públicas, esquecidos os planejadores e humanizadores que automóvel atualmente está muito longe de ser artigo de luxo, utilizado pelas elites etc, antes é um dos principais pontos de apoio da política pública atualmente no poder em Brasília. O aumento exponencial do tráfego de veículos comprados com redução de tributos é inevitável, ao menos até a próxima eleição presidencial, e já que não teremos o metrô de superfície.

Se o tráfego urbano está semi-caótico, e a tendência humanizadora com certeza acabará certo ou tarde eliminando este “semi”, o tráfego comercial desde sempre manteve a cidade. Se é fato que a agricultura, e a certa altura a indústria, mantiveram a economia da cidade em períodos distintos de sua história, Vitória foi sempre um entreposto comercial, e hoje conta com dois portos que estão entre os mais modernos e eficientes do país: o porto de Vitória e o porto de Tubarão, que atualmente simbolizam a tradição mercantil da cidade.

Um dos núcleos iniciais de colonização da Capitania, defendida tantas vezes de invasões - por Mem de Sá, contra os goitacazes que a sitiavam, pelo padre Brás Lourenço e por Maria Ortiz, contra invasores estrangeiros que a quiseram saquear -, é fato que a cidade jamais foi invadida. Mas se abriu, ao longo dos séculos, aos visitantes, como o entreposto comercial e a cidade cosmopolita que veio sendo construída lentamente. O falecido Acadêmico Levy Rocha historiou a presença em Vitória dos mais famosos viajantes estrangeiros, entre eles Biard, Saint-Hilaire, Hart, Teresa da Baviera, em seu Viajantes Estrangeiros no Espírito Santo. E também a visita do Imperador Pedro II, em 1860, em Viagem de Pedro II ao Espírito Santo.

Capital dos espírito-santenses, Vitória foi o porto de entrada dos imigrantes europeus que vieram refazer o Espírito Santo, e daqui se espalharam por todo a terra capixaba. Aliás, o gentílico que designa os filhos da terra quem lhes deu foi Vitória: capixaba, originalmente local de plantio, passou a designar indistintamente as roças de milho que se faziam na ilha, e daí aos próprios plantadores e roceiros. Se o interessar, procure ler, do falecido Acadêmico Guilherme Santos Neves, “Por que somos Capixabas”; procure-o pela internet, ou no Coletânea de Estudos e Registros do Folclore Capixaba: 1944-1982, lançado ano passado com o patrocínio da Petrobrás. Ali poderá também se inteirar da tradição das águas da antiga Fonte da Capixaba, que os habitantes da ilha diziam trazer fortuna e felicidade na vida aos recém-nascidos que nelas tomassem seu primeiro banho, o que em muito deve ter contribuído para a propagação do gentílico.

Mas se empresta suas tradições a todo espírito-santense, Vitória também recebe dos entornos um patrimônio que já lhe está sentimentalmente integrado. Exemplo principal é o Convento da Penha, que por séculos atesta a fé do povo espírito-santense e lá do alto do penhasco guarda a entrada da Baía de Vitória, o antigo Rio do Espírito Santo. Baía de Vitória cujo símbolo principal é o Penedo, colosso de pedra de cento e trinta e seis metros de altura situado no território de Vila Velha mas que, fronteiro à entrada da antiga cidade, sustinha do lado de lá as correntes que se estendiam no braço de mar, obrigando as embarcações hostis a se deter em frente à artilharia do Forte de São João.

Esta relação entre ambos, a ilha e o rochedo, é inconsútil, ao menos para mim. É que cresci ouvindo as lendas e histórias de minha avó Doralice de Oliveira Neves, também acadêmica, da sexagenária Academia Feminina Espírito-santense de Letras. Meio como que o avô das Histórias de um Avô Carioca, de Judith Freitas de Almeida Mello, minha avó me dava explicações, à altura satisfatórias, para tudo o que eu não conhecia da terra que adotou, eu que fui criado pelos lados do Rio Doce.

Lembra-me agora a história de Guananira, a princesa índia que veio do norte e se apaixonou pelo gigante guardião da baía. Já não me lembro se a ciou para mim ou não, ela que muitas vezes inventou versões na hora, para me divertir. Se for do seu agrado, leitor, terminemos estas digressões com essa história da minha avó, que evoca Penedo, o colosso de pedra que é o símbolo maior da cidade-ilha, e dá uma explicação lendária para o nome por que passou a ser conhecida a ilha e por conseqüência a cidade:
“Lá no norte, disse-me a voz, vivem nas águas do Rio-Mar umas flores gigantes, que foram lindas princesas das nossas selvas, que, não podendo ser estrelas, transformaram-se em flores...

- As Vitória-Régias? Perguntei.

- Sim, as Vitória-Régias, confirmou a voz, sem se interromper.

... “Entre elas, vivia a Princesa Guananira, linda como as suas irmãs. Seu maior prazer era assistir à luta do rio contra as ondas dominadoras do mar. Com que alegria ela olhava a massa volumosa e descomunal das águas do rio investirem furiosas contra as águas do oceano, espalhando pelo mar o rugido das pororocas!

Um dia, a batalha era tremenda e a princesa flor foi contemplá-la de perto. De repente, uma daquelas colossais ondas, que se confundia entre as águas do Atlântico, pegou Guananira e a levou no seu dorso para bem longe das águas nordestinas...

Depois de muito navegar, a curiosa Princesa foi levada para uma formosa baía, guardada por um poderoso gigante, chamado Penedo.

Era a hora mística do crepúsculo da tarde!... um profundo silêncio caía sobre as coisas e a fragrância divina envolvia a terra!... o gigante, como que narcotizado, caiu em profundo sono.

Guananira, ali jogada pelas ondas e embalada pelos ventos, adormeceu...

Quando Guaraci apareceu, lá no reino de Tupã, para acender a lâmpada poderosa e iluminar o dia, Penedo despertou. Vendo a Princesa Flor, apaixonou-se pela sua beleza e não mais deixou que as ondas entrassem na baía, para não levarem-na para o mar...

Quando, por castigo de Tupã, o gigante foi transformado num monstro de pedra, a formosa Guananira foi transformada numa ilha, para ficar junto de seu amado.

Mais tarde, voltaram os brancos. Houve a luta de disputa. Vencidos os guerreiros dos Goitacases, Guananira recebeu o nome de Vitória, que lembra o de suas irmãs que ainda reinam nas águas do Rio-Mar.”

(publicado no "Escritos de Vitória" n.º 26, Vitória, Cidade Ilha, Vitória, 2009, p. 37-43)