I – Introdução:
Neste texto pretende-se referir como a experiência profissional na área do Direito pode inspirar, condicionar e auxiliar na elaboração de trabalhos acadêmicos e até literários, no sentido estrito do termo. Sem explorar questões referentes à metodologia do trabalho científico, serão referidos exemplos de bem sucedida utilização da experiência cotidiana por parte de quatro profissionais, todos eles acadêmicos, todos tendo atuado no Espírito Santo como magistrados e todos deixando trabalhos até hoje reconhecidos e utilizados, em áreas diversas.
São eles os capixabas e juízes de direito Renato Pacheco, João Baptista Herkenhoff e Waldir Vitral, da Academia Espírito-santense de Letras, e o maranhense juiz municipal José Pereira da Graça Aranha, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. Refira-se que, na organização Judiciária da época, final do Império, o juiz municipal tinha competência para conhecer de processos de inventários, órfãos, menores e preparo de processos criminais para o júri, isto é, a instrução até a pronúncia. O juiz de direito tinha competência revisora, em determinadas matérias, sobre as decisões do juiz municipal.
Os trabalhos elaborados pelos dois primeiros e sua influência na elaboração da dissertação de mestrado que em 2001 apresentei à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa foram referidos no meu texto “Dois Estudos de Sociologia Jurídica no Espírito Santo e sua Atualidade”, publicado originalmente no n.º 55, de 2001, da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Pacheco e Herkenhoff, juízes de direito em atuação no interior do Espírito Santo, tiveram sua atenção despertada para as peculiaridades da comunidade sobre que atuavam: o primeiro se ocupou da diversidade cultural observada nos descendentes de imigrantes alemães em Santa Leopoldina, que constituíam significativa parcela de destinatários de sua jurisdição; o segundo preocupou-se com as diferenças sociais e econômicas entre a população interiorana destinatária de sua jurisdição.
Ambos, em seus estudos, ocuparam-se do como deve o juiz de direito posicionar-se perante essas diferenças, e qual o seu papel na atividade de integração dessas diferenças – já que, ambos colocando-se inicialmente eles próprios como juízes de direito, tinham em mente o papel do magistrado como administrador das tensões sociais.
O terceiro, o juiz municipal Graça Aranha, atuando no final do século XIX, demonstra em sua obra máxima como a observação e a intensa vivência de um fato que veio até ele em virtude de sua atuação profissional acabou por influenciar de maneira decisiva a argumentação que expôs num romance que tinha muito mais pretensões que as usualmente correntes entre os romancistas. O Canaã é um romance de tese, que preconiza um futuro alvissareiro para o país quando se chegar a conseguir uma integração das forças sociais - representadas, no texto, pelas diferentes etnias prestes a se miscigenar. Essa tese é bastante atual, porque os grupos étnicos foram substituídos, desde a refutação à obra sociológica de Gilberto Freyre pela escola paulista de Florestan Fernandes, pelas classes sociais permanentemente em atrito, pensamento este que orienta os ideólogos das políticas públicas do governo atual.
Os três autores se preocuparam de uma maneira ou de outra com o tema da integração dos grupos sociais à sociedade. Foi, também, o tema da dissertação de mestrado, cujo título foi Aplicação da Lei Penal num Ambiente Multicultural: o Caso do Estado do Espírito Santo, que defendi em 2002 e foi aprovada pela banca presidida pelo Prof. Dr. José de Oliveira Ascensão na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Então, na exposição da idéia deste texto, o exemplo de Graça Aranha será usado como condutor do tema.
II – O Canaã de Graça Aranha:
É bem conhecida a história do Canaã, em que as teses filosóficas e sociológicas do autor são expostas de permeio a um enredo romântico que tem origem num caso criminal que ele, como juiz municipal no então Porto do Cachoeiro de Santa Leopoldina, teve oportunidade de decidir. O Acadêmico Renato Pacheco fez um relato das peças do processo respectivo - hoje, ao que consta, perdido, restando no Cartório Criminal da Comarca de Santa Leopoldina apenas o traslado – no texto “A Justiça contra Guilhermina Lubke”, publicado no n.º 28/30, de 1967/1969, da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Guilhermina Lubke (a Maria Perutz do romance) dá à luz um filho que aparece morto.
Na ação penal, o Superior Tribunal da Relação do Distrito Federal, no Rio de Janeiro, acabou por concluir não haver provas de que a criança tenha nascido com vida, o que determinou a absolvição, ao final, da ré, por falta de um dos elementos do delito de infanticídio (confirmando o veredicto do júri da Comarca de Porto do Cachoeiro de Santa Leopoldina, de 10 de dezembro de 1890 - veredicto este, aliás, posto em discussão pelo Acadêmico Augusto Lins no seu Graça Aranha e o Canaã, onde sustenta ter ocorrido na ata de julgamento “erro judicial, maliciosamente aproveitado, num jogo para o menor esforço” (p. 144).
No romance, Maria dá à luz uma criança, trabalhando solitariamente num cafezal (não retornou à casa dos patrões por medo de ser maltratada, como mãe solteira que era) e cai, esvaindo-se em sangue. Alguns porcos que estavam por perto correm a lambê-los e acabam por morder o bebê, que falece. A filha dos patrões chega neste momento e vê a cena, correndo a dizer em casa que Maria matara a criança e a dera de comer aos porcos.
Presa dois dias depois, Maria é pronunciada pelo juiz Paulo Maciel, alter ego do autor, e já meio louca acaba fugindo da prisão pelas mãos de Milkau - aquele que, no romance, acredita na miscigenação das raças como futuro da civilização, em oposição a seu amigo Lentz, que acredita firmemente na superioridade racial alemã (numa época em que às nacionalidades eram atribuídas características psicológicas pelos autores europeus). Essa fuga se dá então em busca de um lugar em que os homens possam viver em harmonia, o “canaã” do título, “onde as feras não fossem homens”.
É o Canaã um romance de idéias, e por isto acusado até mesmo de má estrutura ficcional. A linguagem é bastante adjetivada, e reúne elementos das estéticas realista e impressionista, esta última num quase simbolismo. Mas também é ponto pacífico que justamente esta síntese de estéticas e a oposição de idéias antagônicas das personagens, forçando, ao mesmo tempo, a um debate mais profundo das condições psicológicas e sociais do Brasil, acabaria por ter sua parcela de influência na tomada de consciência dos que, vinte anos depois, inaugurariam o Modernismo entre nós.
III – A “aridez intelectual” do jurista
Interessante é que é opinião difundida a de que a prática do Direito, por causa de seu raciocínio de cunho eminentemente lógico, acaba por tornar árida a mente do seu cultor, de tal maneira que não favorece a elaboração literária, no sentido estrito. Some-se a isto o fato de que, para Renan, o público tende a ser mais receptivo ao trabalhador intelectual de gênero único, aquele que, com disciplina e rigor, se fixa em apenas uma área do saber. A este respeito vale referir discurso proferido por Barbosa Lima Sobrinho na sede da Academia Brasileira de Letras, em homenagem ao centenário de Inglês de Souza, precursor do Realismo no Brasil, em que exclama: “se pudéssemos ao menos libertar a memória do romancista Inglês de Souza dos prejuízos, ou da influência da autoria de livros de direito”... [1]
Refira-se aqui, de passagem, como refutação a este preconceito, e acrescentando ao exemplo de Graça Aranha, o exemplo de um outro romancista, também profissional do Direito e que usou sua experiência no foro, como promotor de justiça, para buscar o tema de um de seus romances. Trata-se do romancista cabo-verdiano Germano Almeida, mais conhecido no Brasil pelo livro O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo, adaptado para o cinema, em que o papel título foi vivido por Nélson Xavier. No romance Os dois Irmãos, de 1995, o autor resgata um caso criminal em que atuou. Palavras suas, no preâmbulo:
“A história que serve de suporte a esta estória aconteceu lá pelos idos de 1976, algures na ilha de Santiago. Como agente do Ministério Público fui responsável pela acusação de ‘André’ pelo crime de fratricídio. Só muitos anos depois percebi que ‘André’ nunca mais me tinha deixado em paz. Devo-lhe por isso este livro no qual a realidade se confunde com a ficção”
O enredo do romance é totalmente do domínio da Sociologia Jurídica: André, natural da ilha de Santiago, deixou esposa e outros familiares e migrou para Portugal, indo fixar-se em Lisboa. Passando lá algum tempo como imigrante, retornou a sua terra e percebeu uma certa reserva de todos no trato com a sua pessoa. Até que lhe foi revelado que seu irmão tinha mantido relações sexuais com sua esposa, e todos na comunidade, incluídos aí os seus pais, esperavam uma reação em desagravo à afronta que sofrera. O livro narra o julgamento de André pelo ato que cometeu, muitos dias depois de sua chegada, ao não resistir mais à pressão da comunidade sobre sua pessoa.
IV – Investigações acadêmicas
Referido mais este exemplo de cunho literário, e do arquipélago de Cabo Verde de volta ao Espírito Santo, cabe aprofundar agora alguns exemplos de como a experiência no foro pode inspirar da mesma forma, e até mesmo com muito mais freqüência, a concepção e elaboração de trabalhos de caráter acadêmico, no exame dos trabalhos citados na Introdução.
Ao ir judicar na Comarca de Santa Leopoldina, o Acadêmicos Renato Pacheco já tinha sua formação no mestrado da Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Seu primeiro trabalho publicado na revista Sociologia, daquela instituição, foi “Alguns aspectos legais do casamento no Brasil”, em 1954, e portanto pode-se dizer que desde logo seu interesse acadêmico foi atraído pelas questões afetas à área da Sociologia Jurídica.
Trabalhando no interior do Estado como juiz de direito, lastreado numa formação em ciências sociais, tendo consciência do papel que desempenhava, por sua função, na comunidade em que atuava, naturalmente observador, Renato Pacheco começou a recolher material para elaborar o texto que posteriormente publicou na mesma revista Sociologia, no número XXVI, intitulado “Assimilação de alemães no Espírito Santo – Brasil”. Já na introdução dá conta de que o projeto, idealizado anos antes, era possível de ser realizado àquela altura em virtude da “oportunidade que nossa remoção, como magistrado, nos propiciou de reiniciar os trabalhos de campo”. Dá notícia, também, das dificuldades que enfrentou, dizendo que
“mister se faz consignar uma observação metodológica quanto as dificuldades de o pesquisador estar investido de função pública de status elevado e não obstante isto olhada com desconfiança pelos grupos em vias de assimilação, situação que se não modificou muito, desde o relato famoso de Graça Aranha”.
No entanto cabe referir um estudo preliminar que Renato Pacheco fez, em preparação à elaboração do estudo acima. É o texto intitulado “Atitudes perante a lei, em uma subcultura brasileira”, publicado no n.º 21, de 1961, da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Nesse texto o autor alia às suas qualidades de observador a sua preocupação de conhecimento da comunidade na qual atuava, como uma das formas de conseguir uma maior integração do subgrupo (formado pelos descendentes de imigrantes teutos) à estrutura externa – isto é, a comunidade nacional.
De suas observações no dia-a-dia no foro levantou alguns problemas que apareciam - entre outros, é certo - como obstáculo ao processo de assimilação da comunidade observada: a) o elevado índice de alcoolismo entre os colonos, inclusive do sexo feminino (o que não era, no entanto, característica isolada do grupo, pelo contrário); b) o descompasso entre a lei sucessória brasileira e o costume do morgadio; c) a problemática dos delitos sexuais, porque o conceito de honestidade da mulher era diferente do luso-brasileiro; d) o receio da autoridade, principalmente do “soldado de polícia” (o policial militar).
Os trabalhos citados de Renato Pacheco podem ser classificados como pesquisa descritiva. Já o outro trabalho acadêmico acima referido, a dissertação de mestrado que em 1976 o Acadêmico João Batista Herkenhoff apresentou à Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, parte de algumas hipóteses formuladas por ele, servindo-se também da observação no seu dia-a-dia no foro, e utiliza-se de questionários aplicados a juízes e jurisdicionados, na capital e no interior, para comprovar sua validade.
Como já referi no trabalho de minha autoria que citei mais acima, Herkenhoff “partiu da idéia central da convivência, no interior do Brasil, do direito formal, emanado da produção legislativa, com um direito não formal, ‘marcado por peculiaridades locais, consagrado pelo costume’ e que tem o respaldo da ‘autoridade local’”. A partir daí, procura, de maneira empírica, estudar o papel do juiz de direito na mediação entre as duas ordens normativas, partindo do pressuposto de ser este um agente capaz de operar, com sua atuação, a redução dos desencontros daí resultantes.
Algumas das hipóteses inicialmente formuladas por ele foram confirmadas, outras só em partes. As conclusões a que chegou, em síntese, foram: a) no interior as pessoas tendem a distinguir mais entre a pessoa do juiz de direito e a Justiça, sendo que nessas comunidades o juiz de direito é liderança que só perde em prestígio para o prefeito municipal; b) a maioria dos juízes na época tinha uma posição de conservadorismo moderado, e noção da necessidade de se adaptar o direito nacional e os valores em que se baseia a vida interiorana; c) em alguns temas, as comunidades interioranas encontram-se à frente dos juízes em termos de reforma social.
Esta última conclusão demonstra que Herkenhoff estava preocupado com a inserção de grupos sociais e sua interação na sociedade, e sob este aspecto a atividade daquele que dela se desincumbe – isto é, o juiz de direito – faz dele o mediador dos conflitos inevitáveis nesta convivência entre classes sociais.
Ambos os autores utilizaram essas suas conclusões, originadas de um trabalho inicial baseado em sua vivência diária, na elaboração de trabalhos mais amplos decorrentes da natural evolução de seu pensamento. Pacheco pregou posteriormente em seu texto “Juiz e Mudança Social”, publicado no n.º 210, de abr/jun 1965, da Revista Forense, a atuação do juiz de direito como verdadeiro pensador social, ou, como chamou, de “sociólogo em ação”. Sempre se ocupando, nesta área, da Sociologia e da Sociologia Jurídica, seu último livro publicado foi Introdução ao Estudo da Sociologia Geral e Jurídica: Sociedade e Direito, publicado postumamente, em 2006, pela FDV e Editora Fundação Boiteux..
Já Herkenhoff aperfeiçoou e utilizou posteriormente a idéia que o norteou (e confirmou em seu trabalho acadêmico) em seu posterior Como aplicar o Direito, publicado pela Editora Forense em 1979, em que propõe a atividade de aplicação da lei sob três perspectivas: a axiológica (levando em conta os valores éticos de que o julgador deve impregnar a decisão); a fenomenológica (levando o julgador a tentar compreender o homem posto a julgamento e o seu mundo) e a sociológico-política (a investigação dos valores da comunidade em que atua, desempenhando o julgador uma função progressista e renovadora). É idéia recorrente em muitos dos diversos livros que escreveu a partir de então.
V – Deontologia jurídca e o dia-a-dia do Foro
Finalmente, de se fazer menção a uma obra que, embora não se tenha originado diretamente de trabalhos de campo nem da observação empírica da realidade fática do foro, origina-se de uma atividade de reflexão e recolha de material de um juiz de direito sobre o dever-ser da atividade forense.
Trata-se de Deontologia do Magistrado, do Promotor de Justiça e do Advogado, publicado pela Editora Forense em 1992, em que o Acadêmico Waldir Vitral expõe o conjunto de deveres profissionais daquelas classes de trabalhadores do Direito através de decálogos, mandamentos, preces, máximas e pensamentos, de sua recolha e seleção.
Mas é de registrar (o que tem total relevância e nos traz de volta ao tema tratado neste texto), que o Acadêmico Waldir Vitral, também ele magistrado aposentado, tem em uma das facetas de sua obra literária a recolha de material referente ao dia-a-dia da sua atividade no Foro. Entre suas obras publicadas se conta, também, um volume de pitoresco judiciário, em que dá o resultado da recolha de casos interessantes que viveu nas suas carreiras de promotor de justiça e juiz de direito, atuando em Comarcas do norte do Espírito Santo, ou de que tomou conhecimento ao longo de seus vários anos de atividade jurídica: o livro Pitorescos, publicado em 2000.
Neste trabalho, Vitral dá testemunho de seu poder de observação e revela sua inclinação de colecionador e sistematizador, numa obra que, em não sendo lida como simples repositório de fatos engraçados, tem também importância como crônica bem humorada do cotidiano da atividade do profissional do Direito no interior do Espírito Santo de então - época da questão de limites geográficos com Minas Gerais na região do Contestado, quando as Comarcas do interior chegavam mesmo a ficar muitos dias de viagem distantes da Capital.
V – Conclusão: atividade acadêmica e atividade profissional
Não é coincidência que todos os autores capixabas referidos sejam, ou tenham sido, membros da Academia Espírito-santense de Letras. O próprio Graça Aranha freqüentou a Academia durante uma parte de sua vida – e, como se sabe, tendo renunciado à cadeira n.º 38 da Academia Brasileira de Letras por discordâncias pessoais com a maioria dos integrantes do silogeu, quando do lançamento das bases da estética modernista no panorama da arte brasileira de inícios do século XX.
Sem falar em maior ou menor grau de sensibilidade - o que é de cada um e de maneira indiscutível condiciona a criação literária, esteticamente falando - o envolvimento maior ou menor do profissional com sua atividade, isto em todas as áreas de atuação, acaba por condicionar (naqueles que têm talento investigativo), os seus esforços nesse domínio de atuação, que se pode dizer paralela à sua atividade principal.
Aliás os exemplos referidos ao longo do texto ocupam lugar de destaque na produção intelectual de seus autores, e adornam também com destaque os registros da produção bibliográfica da Academia Espírito-santense de Letras.
Notas:
[1] Estudei o Acadêmico Inglês de Souza, presidente da Província do Espírito Santo em 1882, no texto “O Acadêmico Inglês de Souza e a Presidência da Província do Espírito Santo”, publicado no n.º de 2007 da Revista da Academia Espírito-santense de Letras.
(publicado originalmente no n.º de 2008 da Revista da Academia Espírito-santense de Letras)