13 de fevereiro de 2011

O Juiz de Direito na Justiça Militar Estadual


1) O Órgão Judicante Originário: O Conselho de Justiça Militar:

A respeito da desconhecida Justiça Militar, o que geralmente se sabe é que neste ramo especializado da jurisdição o órgão julgador é colegiado, composto por juízes civil e militares, na forma de um escabinato. Corolário do princípio geral do julgamento do acusado por seus iguais, a composição do órgão vem atender à especificidade da função militar, que não comporta comparação com outras profissões especializadas simplesmente por causa de sua gritante singularidade: o militar é o único servidor público a quem o Estado permite o uso de arma, e o único de quem exige o cumprimento do dever inclusive com o sacrifício da própria vida (art. 27, inciso I, da Lei 6.880/80, Estatuto dos Militares).

Assim, não só ideário e valores desta espécie de servidor são de difícil apreensão por quem não os compartilhe, também as técnicas (potencialmente danosas) de sua atuação regular o são. Junte-se a isso o fato de que a instituição militar tradicionalmente se mantém com base na hierarquia e disciplina, seus pilares básicos, e que a instituição da espécie de delitos chamada militar nada mais faz que cuidar de defendê-la de atentados praticados por agentes seus integrantes ou não (neste último caso apenas na Justiça Militar da União, por imperativo constitucional).

Explica-se a instituição do chamado Conselho de Justiça Militar: não é razoável se exigir do juiz de direito conhecimentos práticos tão especializados, nem raciocínio baseado em ideário formado numa realidade cotidiana – a da caserna – que nem de longe é a sua. Por outro lado, por imperativo democrático ocorre a exigência da legitimação de uma ordem jurídica derivada de procedimento em que não há possibilidade de participação do destinatário: a lei penal militar, bem como os regulamentos disciplinares, as normas procedimentais do âmbito castrense, têm muito pouca possibilidade de mutação por influência direta do seu destinatário, seja isoladamente ou como grupo, a contrário do que ocorre com, entre outras, a lei civil. Este estado de coisas exige então a legitimação de tal ordem jurídica numa segunda fase, a da decisão, o que mais se conseguirá quanto mais esta for proferida por julgador igual ao seu destinatário – idéia já preconizada por Hegel, em seu Fundamentos da Filosofia do Direito, e desde então aperfeiçoada por outros não menos considerados, a exemplo de Habermas .

Com base nisto é que (em momentos de normalidade institucional) a lei brasileira, sucessora da lei portuguesa, cuidou de prestigiar velhíssimas tradições, que já o eram na época do direito romano, e deu assento, junto ao magistrado de carreira, aos comandantes das forças a que pertence o acusado para assim buscar uma decisão o mais possível próximo do legítimo (não se cuidando, aqui, apenas do sentido formal, o de decisão proferida por quem tenha competência legal para expedi-la, pensa-se estar claro).

Os Conselhos de Justiça Militar que atuam nas Auditorias Militares, federais e estaduais, são chamados Permanentes ou Especiais, conforme se destinem ao julgamento das praças ou oficiais das Forças Armadas ou das Forças Auxiliares (Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares dos Estados e do Distrito Federal). Na esfera federal sua composição está prevista no art. 16 da Lei 8.457/92, Lei de Organização Judiciária Militar da União (LOJMU), enquanto que suas atribuições estão traçadas no art. 27 da referida legislação.

Diferentemente da antiga redação da Lei de Organização Judiciária do Espírito Santo (Lei Complementar 234/2002), que adotava expressamente aquela regulamentação na composição (art. 79) e no funcionamento dos Conselhos de Justiça na Auditoria Militar do Espírito Santo (art. 80), a atual redação remete à legislação federal apenas no que pertine à composição do órgão (art. 79), adotando-se as disposições daquela também no que diz respeito a atribuições e ao funcionamento dos Conselhos por questão de tradição, e na ausência de regulamentação específica.

2) O Juiz Auditor:

Chamado até hoje Juiz Auditor, no Estado do Espírito Santo o juiz de direito que atua na Justiça Militar estadual é um juiz de direito da Justiça Estadual, de Entrância Especial, eis que a sede da Auditoria de Justiça Militar é a Comarca da Capital (art. 51, letra “d”, da Lei 234/2002). Esta disposição foi inaugurada na Lei de Organização Judiciária de 1982, eis que a lei anterior, de 1968, instituía uma carreira separada de Juiz Auditor Estadual – que, de resto, não chegou a ser implantada entre nós (conforme, a respeito, meu “A Justiça Militar Estadual do Espírito Santo” in Espírito Santo: Estudos Jurídicos. Vitória: s/n, 2005).

Estamos em que, a contrário do que por aí se comenta das recentes alterações constitucionais introduzidas pela Emenda Constitucional n. 45/2004, a denominação juiz auditor – denominação tradicionalmente dada ao juiz togado componente de um escabinato - se mantém quando o Juiz de Direito da Justiça Militar encontrar-se compondo o Conselho de Justiça Militar. Esta denominação, aliás, foi mantida pelo Supremo Tribunal Federal, que tem a missão de guarda da Constituição. Por exemplo, no julgamento do HC 85720/RO, em 14/06/2006, quando o relator, Ministro Eros Grau, decidiu que pode haver a acumulação de cargos de juiz auditor da Justiça Militar e juiz de direito da Justiça Comum Estadual.

As funções judicantes principais do juiz auditor são a de dirigir a atividade de produção de provas no processo penal militar durante a fase de instrução (incisos IV, V e VI do art. 30 da LOJMU), relatar os autos na sessão de julgamento e redigir a sentença (inciso VII do art. 30 da LOJMU). Além disso, tem competência decisória na fase de apuração, mantendo e relaxando prisão em flagrante do indiciado, bem como decretando, revogando e restabelecendo sua prisão preventiva (inciso III) e recebendo ou rejeitando a denúncia do Ministério Público Militar ou mandando arquivar inquérito policial militar (inciso I). Sua atribuição de diretor da atividade de produção de provas lhe comete, também, a decisão acerca de outras constrições judiciais, como a busca e apreensão e a quebra de sigilos, fiscal, telefônico e bancário.

Os arts. 132 e seguintes do CPPM lhe atribuem o processamento da argüição de suspeição, própria e dos Juízes Militares, para remessa, no caso do não reconhecimento, ao Tribunal de Justiça. No art. 138 do mesmo diploma, o processamento e decisão da argüição de suspeição do promotor de justiça militar, e no art. 140, as de peritos, intérpretes, funcionários e serventuários da Justiça Militar, que serão decididas, nos dois casos, de plano e sem recurso.

Mas dentre suas funções, a EC 45/2004 atribuiu-lhe a até então inédita de presidir o Conselho de Justiça Militar (o que veio diferençar, entre Auditorias federais e estaduais, a incidência da norma do art. 16 da LOJMU), cabendo-lhe, a partir de então, desempenhar também as funções atribuídas no art. 29 daquela legislação ao Presidente do colegiado. Ou seja, o Juiz Auditor passou de direito a presidir e conduzir os trabalhos nas sessões de instrução e nas de julgamento, abrindo-as, concedendo a palavra às partes e a cassando no caso de manifestação desrespeitosa, e proclamando o resultado do julgamento proferido pelo Conselho de Justiça Militar. Passou, também, a exercer a função de policiar a sessão, mantendo a ordem e regularidade dos trabalhos e mandando retirar do recinto pessoas que a perturbem ou estejam armadas (aliás, como em todos os outros ramos de atuação jurisdicional do juiz de direito).

Independente das disposições de direito até então vigentes, de fato a maioria dos oficiais Presidentes de Conselhos de Justiça Militar deixava estas atribuições a cargo do Juiz togado, mesmo mantendo de direito a função de presidir, que na prática só exerciam nos raríssimos casos de desentendimento mais grave entre as partes ou mesmo entre estas e o Juiz Auditor.

3) O Juiz de Direito da Justiça Militar:

A instituição, nas Auditorias de Justiça Militar estaduais, de dois órgãos judicantes – os Conselhos de Justiça Militar e os Juízes de Direito da Justiça Militar – se fez pela EC 45/2004 porque a referida Emenda Constitucional introduziu novo critério de classificação dos crimes militares, destacando: a) os praticados contra civis dos b) praticados contra militares ou contra a Administração Militar, bem como, introduziu uma competência cível até então inédita, a revisão judicial de punições disciplinares aplicadas administrativamente contra o servidor militar estadual. Até então, pela Organização Judiciária do Espírito Santo, esta competência era atribuída à Vara da Fazenda Pública Estadual.

Em termos de competência criminal, essa modificação se fez na esteira do que aconteceu no caso dos crimes dolosos contra a vida praticados pelo servidor militar em função contra vítima civil. Em 1996 o conhecimento e o julgamento desses delitos foi retirado pela Lei 9.299/96 da alçada da Justiça Militar e passados para a do Tribunal Popular do Júri. Depois de muitos pronunciamentos incidentais de inconstitucionalidade daquela legislação pelos Tribunais de Justiça Estaduais, Militares ou não, esta disposição passou a ter “status” de norma constitucional com a EC 45/2004 (§ 4.° do art. 125), que da mesma forma dispôs com relação a todos os demais crimes militares praticados contra civis. Estes são, agora, conhecidos e julgados pelo Juiz de Direito da Justiça Militar, funcionando singularmente, isto é, sem o colegiado, como numa vara criminal comum. Portanto, a competência do Juiz de Direito da Justiça Militar, como órgão judicante, é residual, subsistindo se não restar firmada a competência do Conselho de Justiça.

Esta constatação é importante para possibilitar a operacionalização, na prática, da alteração constitucional introduzida pela EC 45/2004 com relação à tramitação de ações penais em que ocorre concurso de delitos. No que diz respeito à aplicação da pena, nos crimes militares o concurso formal e o concurso material de delitos são tratados de forma idêntica, como preceitua o art. 79 do Código Penal Militar. Ora, em se tratando de delito praticado pelo militar contra civil, em concurso com um outro praticado por este contra a Administração Militar, de um modo geral (caso, por exemplo, de lesão corporal e prevaricação, digamos pela liberação indevida da pretensa vítima – artigos 209 e 319, respectivamente, do CPM), haverá a necessidade de desmembramento da ação penal para que cada órgão julgador - vale dizer, cada juiz natural - conheça e decida daquele de sua própria competência. Estamos em que, sendo o órgão judicante original o Conselho de Justiça Militar, o desmembramento se dará com relação ao delito de competência do juízo singular, e não o contrário.

Em se procedendo a um exame das atribuições do juiz de direito da Justiça Militar não se pode deixar de fazer menção mais pormenorizada à competência cível que lhe foi cometida na nova ordem constitucional. Na forma do § 4.° do art. 125 da CF, na nova redação que lhe deu a EC 45/2004, à Auditoria Militar cabe também julgar “as ações judiciais contra atos disciplinares militares”, competente para tanto o Juiz de Direito da Justiça Militar, singularmente.

Como registrado no texto mais acima referido, de se esclarecer que a Auditoria de Justiça Militar não tem competência para conhecer de transgressões disciplinares, isto é, das infrações do servidor militar ao Regulamento Disciplinar, cuja apuração fica a cargo das Corregedorias das Corporações. O instrumento normativo citado, o Regulamento Disciplinar dos Militares Estaduais do Espírito Santo ora em vigor, foi aprovado pelo Decreto n.° 254-R/2000, em substituição ao anterior (aprovado pelo Decreto n. 1315-N, de 11 de junho de 1979 – portanto, sob a égide da ordem constitucional de 1967).

Com base nesse diploma eventuais punições lhes são aplicadas, administrativamente, pelos Comandantes de Unidades ou pelo próprio Comandante Geral da Corporação, inclusive a pena de demissão do serviço público. O que coloca em questão, diariamente, os limites da atuação do Poder Judiciário na revisão do ato administrativo, sob as balizas da separação de poderes, de um lado, e da inafastabilidade da jurisdição, de outro: é que, em face dessas penas disciplinares aplicadas administrativamente, podem ser intentadas ações judiciais visando ao seu cancelamento ou à reversão dos seus efeitos, já que nenhuma lesão ou ameaça a direito pode deixar de ser levada a conhecimento do Judiciário (art. 5.°, inciso XXXV, da CF).

Na forma da disposição constitucional, essas ações se passaram a intentar, desde dezembro de 2004, perante a Auditoria de Justiça Militar, e desde a edição da Resolução n. 33/2005 do Egrégio Tribunal Pleno, as ações já em curso nas varas com competência em Fazenda Pública estadual, versando sobre punições administrativas disciplinares a servidores públicos militares estaduais, devem ser remetidas à vara especializada castrense.

Também no texto referido acima apontei vantagens a esta alteração constitucional, pois toda matéria afeta a controle da atividade militar passa a ser decidida num só lugar, por um juiz de direito especializado. A desvantagem que também apontei, a demanda de serviço assim criada, foi absorvida pela montagem de uma estrutura adequada, com a criação de rotinas eficientes e treinamento dos serventuários (na AJMES, todos militares, na forma da Lei de Organização Judiciária) para se desincumbirem do aumento na quantidade de serviço e sua grande diversificação. O Cartório da Vara da Auditoria de Justiça Militar do Espírito Santo compõe-se presentemente um setor cível e um setor criminal independentes, com servidores responsáveis pelo andamento dos feitos respectivos, sob a supervisão geral do Escrivão-Secretário, na forma da Portaria n.° 02/2005, devidamente recepcionada pela Corregedoria Geral de Justiça.

4) Uma Demanda Jurisdicional Diferenciada:

Como de resto em todas as demais, cabe ao Juiz de Direito em atuação na Vara da Auditoria de Justiça Militar a superintendência e a fiscalização dos serviços cartorários, que lhe é cometido na Lei Orgânica da Magistratura Nacional e na Lei de Organização Judiciária do Espírito Santo. Para se ter idéia das necessidades específicas, oriundas da peculiaridade do funcionamento da Justiça Militar, foi necessário baixar, a pedido destes, Portaria regulamentando o fardamento dos Juízes Militares para participação nos diversos atos processuais, bem como o dos militares estaduais que compareçam em juízo como acusados ou testemunhas, já que o fardamento incompleto ou em desalinho constitui transgressão disciplinar.

Acrescendo complexidade às demais já oriundas dessas peculiaridades no seu funcionamento, o reflexo direto da ampliação de competência e consequente diversificação de lides passíveis de serem conhecidas na Auditoria de Justiça Militar estadual foi o se passar a fazer o processamento de ações cíveis e criminais, por vários ritos diferentes: 1) o rito ordinário do Código de Processo Civil, nas ações para revisão de punições disciplinares; 2) o rito do Mandado de Segurança, idem; 3) o rito do Habeas Corpus, também em matéria disciplinar; 4) o rito ordinário do CPPM, nas infrações penais militares de competência dos Conselhos de Justiça Militar e do Juízo singular; 4) o rito do processo por crime de deserção (art. 187 do CPM).

Esta diversificação, como já referido acima, determinou a princípio - e continua a desafiar - uma demanda constante de treinamento de serventuários (cuja lotação, emprego, permanência e transferência, diga-se, fica dependente da disponibilidade de efetivo das Corporações Militares estaduais) e de aperfeiçoamento de praxes e rotinas cartorárias, de resto não previstas nas recomendações ordinárias da Corregedoria de Justiça, pela apontada especificidade do serviço nesta Vara. Tal circunstância impõe ao Juiz de Direito Titular ou em exercício na Auditoria de Justiça Militar estadual uma carga constante de estudo aliada a uma dose considerável de espírito prático, de molde a facilitar procedimentos e tarefas sem nunca atropelar as convenções legais e pôr em risco os direitos das partes e jurisdicionados em geral.

(publicado na Revista Direito e Trabalho, Vitória, abril de 2007)