16 de fevereiro de 2011

Notas práticas de Direito Militar para os que não atuam na Justiça Militar


1) Justificativa:

As tentativas de extinção da Justiça Militar estadual são recorrentes, por motivos ideológicos. No entanto, enquanto esta existir (já são mais de sessenta anos de previsão constitucional de sua existência), pela estrutura da organização judiciária do Espírito Santo o magistrado está sempre sujeito a atuar numa atribuição delegada dessa justiça especializada, o que ocorre, por exemplo, em plantões judiciários, na execução de penas, no cumprimento de cartas precatórias. Problema de relevo se coloca, também, quando o magistrado decide de sua competência no caso concreto, já que a atuação do juízo comum decidindo uma questão especializada é, a princípio, nula, por incompetência absoluta do órgão prolator.

2) Justiça Militar: idéias básicas que norteiam sua atuação:

A Justiça Militar estadual é prevista no art. 125, §§ 4.º e 5.º da CF e tem competência para julgar integrantes das corporações militares estaduais (Polícia Militar e Corpo de Bombeiros Militar) nos crimes militares definidos em lei e nas ações judiciais contra atos disciplinares militares. O crime se diz militar quando, previsto no Código Penal Militar, não esteja previsto em outra legislação (crimes militares próprios) e quando previstas da mesma forma no CPM e em outras legislações, desde que o agente a pratique nas situações previstas no art. 9.º do Código Penal Militar (crimes militares impróprios). Assim, pretende-se um controle sobre a atuação do agente militar; no caso específico das Corporações Militares estaduais, o controle é atribuído pela Constituição Federal a um órgão judiciário central, a Auditoria de Justiça Militar, e não aos órgãos judiciários a quem os agentes militares prestam o serviço, aquele de que emanam as detetminações e eventuais mandados a serem cumpridos.

Cabe, aqui, registrar algumas idéias básicas: a primeira é que a força policial é o braço armado do Estado que, em última análise, faz cumprir uma decisão judicial; assim, uma decisão afrontosa aos princípios informadores da Administração Militar pode reverter contra o próprio Poder Judiciário, já que a Polícia Militar tem, entre suas atribuições, a preservação da ordem pública (art. 144, § 5.º, da CF) - para isto, também, assegurando o exercício dos poderes constituídos (art. 3.º, alínea “a”, do Dec. Lei 667/69).

A segunda é que os militares, estaduais e federais, são servidores públicos diferenciados, e quem introduz essa diferença é a própria Constituição Federal, ao tratar de ambas as espécies de servidores em sedes distintas. Assim, a determinação judicial de isonomia formal entre uns e outros é, em última análise, inconstitucional, não sendo lícito ao Poder Judiciário afrontar a Constituição Federal.

A terceira é que as instituições militares, estaduais e federais, são organizadas com base na hierarquia e disciplina (com relação às primeiras, art. 42 da CF), que se traduzem, a hierarquia, na ordenação da autoridade em diferentes níveis dentro da estrutura da Força (art. 14, § 1.º, da Lei 6.880/80, Estatuto dos Militares) e a disciplina, na rigorosa observância e no acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que ordenam o organismo militar e coordenam seu funcionamento (art. 14, § 2.º, da citada legislação). Se estes pilares organizacionais são comuns a outras instituições estatais, por exemplo, a Polícia Civil, na organização militar, muito mais hierarquizada em graduações e postos, a sua observância é imprescindível para que a organização continue funcionando.

A quarta e última idéia básica que se deve lembrar é que é princípio geral de direito que o ato do agente ou do servidor público tem presunção juris tantum de validade. É esta presunção de validade que se traduz, em matéria criminal, na causa excludente do estrito cumprimento do dever legal, que determina a absolvição do policial militar sempre que se verifique não haver excesso na sua atuação, ou sempre que o Ministério Público não consiga provar esse excesso.

3) Justiça Militar: problemas práticos de competência:

3.1 – Criminal:

A Justiça Militar não julga a pessoa do militar, mas a função militar. A única exceção a este princípio é, entre nós, de caráter constitucional: ao instituir a competência do Tribunal Popular do Júri sobre a do Conselho de Justiça Militar no julgamento do crime doloso contra a vida praticado por militar contra civil, a Constituição Federal determina o deslocamento de competência para o primeiro apenas e tão somente quando a vítima for civil. Demais critérios, como, por exemplo, o de estar ou não o agente em serviço (critério apenas jurisprudencial, tratando-se de interpretação da alínea “a” do inciso II do art. 9.º do Código Penal Militar, que dispõe de maneira diversa) são infraconstitucionais e assim não devem distinguir onde a própria Constituição Federal não distingue (a propósito, lição de Damásio de Jesus, in Competência para julgamento de Crime Militar doloso contra a vida, disponível no site http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10869, acesso em 02/03/2010, fundamentando-se o autor em v. Acórdão do STF no CC n.º 7.071/RJ, rel. Min. Sydney Sanches).

Em matéria de competência, aliás, a da Justiça Militar pode parecer complexa para o observador não atento. No entanto, toda a complexidade vem exatamente da interpretação jurisprudencial da alínea “a” do inciso II do art. 9.º do CPM, que dispõe, muito simplesmente, ser crime militar o praticado por militar da ativa contra militar da ativa. Ou seja, o que não é inativo, aposentado (na organização militar, o da reserva remunerada e o reformado – diferença de tempo de inatividade).

Critério jurisprudencial desenvolvido pelo STJ foi o de investigar se o militar atua em serviço, ou na função policial militar, para decidir sobre a competência da Justiça Militar. Mas o juiz de direito que decide, na prática, sobre competência para julgamento do caso concreto deve levar em conta um outro princípio de direito: o de que a competência comum é residual com relação à competência especializada. Ou seja, será de competência do juiz criminal comum o que não for de competência do juiz criminal especializado, seja o Tribunal Popular do Júri, seja o Juízo da Justiça Militar. Assim, e pela especialização, cabe à justiça especializada se pronunciar primeiro sobre sua competência, ouvido o Ministério Público – que tem atuação una, embora reconhecida a independência funcional de seus agentes.

Na prática, estando o militar em serviço (fardado, escalado), sem dúvida comete, a princípio, crime militar e deve ser julgado pela Justiça Militar (salvo situações e circunstâncias muito específicas, como ir tratar de assuntos particulares, p. ex.). Mas estas situações específicas, pelo motivo mesmo de sua especificidade, devem ser declaradas pela justiça especializada, devendo, mesmo na dúvida, haver a remessa a esta.

Aparentemente um pouco mais complicada é a situação do militar que, mesmo de folga, age na função policial militar. É o caso, por exemplo, do policial militar que, passando na rua com a esposa, presencia a prática de um delito e age por imposição legal, já que não se pode omitir nesta situação. Comete, a princípio, e por isto mesmo, crime militar, e deve ser julgado na Justiça Militar, salvo situações e circunstâncias muito específicas, exceções estas que, pela especificidade da situação, devem ser declaradas pela justiça especializada.

Com relação a inativos, qualquer que seja a situação em que cometa crime militar contra militar em serviço ou agindo em razão da função, deve ser julgado pela Justiça Militar.

Por outro lado, se o delito for cometido dentro de estabelecimento sob administração militar (quartel, uma viatura policial) não há qualquer dúvida da competência da Justiça Militar, em qualquer caso, à exceção do constitucional crime doloso contra a vida de civil.

Problema de competência que se coloca com regularidade é o da legislação especializada, como exemplos mais recentes, lei de tóxicos e lei Maria da Penha. Nestes casos, o critério de competência pelo local da infração (ratione loci), nunca pode ser ultrapassado: se o crime militar foi cometido em local sob administração militar, a exemplo de quartéis, ou durante operações policiais, a competência é da Justiça Militar. Não tendo sido cometido em local sob administração militar, o raciocínio é quanto ao agente estar ou não na função policial militar, ou estarem presentes no delito circunstâncias afetas à função, como graduações e patentes.

Conseqüência óbvia da especialização jurisdicional em matéria penal militar é a nulidade do julgamento de policial militar por crime militar nos Juizados Especiais Criminais. Ao que não se convence em contrário do fato da atribuição constitucional de competência à Justiça Militar (lesões corporais, constrangimento ilegal e ameaça, p. ex. são crimes militares definidos em lei, arts. 209, 222 e 223, respectivamente, do CPM), nem da disposição legal que impede expressamente este julgamento (art. 90 – A da Lei 9099/95), tenha em mente que não é lícito, à luz dos princípios constitucionais da hierarquia e disciplina que regem a instituição militar, que um soldado ou um cabo agrida um sargento, ou um tenente agrida um capitão ou coronel - o que, como se pode imaginar, repercute internamente de maneira muito desfavorável - sem qualquer conseqüência mais grave para ele que o cumprimento de um acordo.

Ainda que haja respeitáveis decisões em contrário, a atribuição de insignificância, de bagatela ou de menor potencial ofensivo a crime militar – decisões estas que cabem sempre à Justiça Militar, pelo princípio da especialização - é uma exceção, pena de inviabilização do funcionamento da organização. De qualquer maneira, sempre que cabível existe previsão legal expressa para tanto (p. ex., o § 6.º do art. 209 do CPM, que determina que a lesão corporal levíssima poderá ser considerada mera transgressão disciplinar)

3.2 – Cível:

A Emenda Constitucional n.º 45/2004 ampliou a competência da Justiça Militar estadual, atribuindo-lhe, também, pelo juiz singular, o julgamento das ações judiciais contra atos disciplinares militares (art. 125, § 4.º). A decisão de qualquer pedido sobre esta matéria pela justiça comum estadual é nula, por incompetência absoluta – como vem sendo decidido pelo Egrégio TJES (p. ex., na Apelação Cível 024.990.106.692).

Ato disciplinar militar é o que impõe sanção disciplinar ao militar, nos termos dos Regulamentos Disciplinares respectivos. Assim, e na prática, se o pedido posto na inicial for de anulação ou de declaração de nulidade de pena de detenção ou de pena de demissão do serviço ativo (reforma) ou das fileiras da Corporação (licenciamento ou exclusão), ou seja, se a inicial se referir a processo administrativo disciplinar militar (de que são espécies o PAD/RS, PAD/RO, Conselho de Disciplina e Conselho de Justificação) a competência para conhecer do feito é da Justiça Militar.

Com relação a improbidade administrativa, trata-se de uma outra esfera legal de responsabilização do servidor, esfera esta não atribuída expressamente pela Constituição Federal à Justiça Militar porque não há punição imposta ao militar por seu Comando, não há ato disciplinar militar. Entre nós o Egrégio TJES já teve oportunidade de decidir várias vezes conflitos negativos de competência envolvendo esta matéria (p. ex. nos CC 100070011398 e 100080021981), sempre determinando a competência da Vara da Fazenda Pública Estadual. Dúvida, aliás, já não pode persistir a respeito, ante o recente julgamento, pelo STJ, do CC 100682 / MG, em que a competência da justiça comum foi expressamente determinada.

4) A prisão em flagrante de militar por crime militar:

Vez ou outra ocorre, nos plantões judiciários da Capital, a comunicação de prisão em flagrante delito de militar pela prática de crime militar, o que, na forma da Constituição Federal, deve ser levado a conhecimento do Poder Judiciário. Na maioria das vezes, virá também o pedido de liberdade.

A prisão será desde logo relaxada pelo juiz se verificar que esta não é legal (art. 224 do CPPM). Incluem-se aí entre as ilegalidades possíveis não só requisitos formais do Auto de Prisão em Flagrante Delito, mas também estar ou não o agente em situação de flagrância (art. 244 do CPPM), a manifesta inexistência da infração penal militar ou a manifesta não participação do conduzido na infração (art. 247, § 2.º do CPPM).

Mantido o flagrante, a liberdade provisória será concedida nos casos do art. 270 do CPPM, a saber: a) no caso de infração culposa, salvo nos crimes contra a segurança externa do País; b) no caso de infração punida com pena de detenção não superior a 02 anos, exceto casos de crime contra a autoridade e disciplina militar, listados no dispositivo.

Não existe, na legislação processual penal militar, a liberdade provisória por não estarem presentes os requisitos que levariam à decretação da preventiva. Para os que consideram ser direito do acusado este exame, em nome do princípio constitucional da liberdade, os requisitos a serem observados serão, então, os dos arts. 254 e 255 do CPPM, pela especialização da matéria, e não os do CPP comum.

Assim, o militar terá sempre residência fixa, porque não o tendo, ou não a informando a seu Comando, cometerá transgressão disciplinar. O militar, via de regra, terá bons antecedentes, porque sua condenação criminal o submeterá a Conselho de Disciplina (se praça) ou de Justificação (se oficial). Assim, os regulamentares “bons antecedentes, radicado no distrito da culpa” muito pouco significam para formar o convencimento do julgador, sendo, mesmo, inerentes à condição de militar.

Os requisitos para decretação da preventiva, expressos no art. 255 do CPPM são: a) garantia da ordem pública; b) conveniência da instrução criminal; c) periculosidade do indiciado ou acusado; d) segurança da aplicação da lei penal militar; e) exigência de manutenção das normas ou princípios de hierarquia e disciplina militares, quando ficarem ameaçados ou atingidos com a liberdade do indiciado ou acusado.

De se comentar que a prática de ilícito por policial militar é, a princípio, atentatória, por si só, à ordem pública, simplesmente porque é seu dever constitucional preservá-la, não atentar contra ela. Sobre a conveniência da instrução, possível intimidação de testemunhas por militares significa, em tese, ameaça muito mais palpável ao civil que a praticada pelo réu comum, por motivos óbvios. Quanto à periculosidade do agente, é de ser aferida no caso concreto, com informações reais, e, se não documentais, devidamente submetidas ao contraditório. A aferição quanto à segurança da aplicação da lei penal militar, como a comum, depende, também, do exame de critérios objetivos, sendo muito mais difícil, aqui, a presunção pelo julgador de que o acusado possa se evadir do distrito da culpa. Por último, sendo a Administração Militar sujeito passivo, mediato ou imediato, no crime militar, a prática do delito pode ser atentatório, pelas circunstâncias, às normas de hierarquia e disciplina na Corporação.

5) A deprecata de atos à justiça comum:

A deprecata de atos processuais está expressamente prevista no Código de Processo Penal Militar (citatória, arts. 283 e 284; inquiritória, arts. 359 e 360). Algumas questões práticas:

Em primeiro lugar, e no atual estágio dos debates a nível nacional, a Lei 11.719/2008, que altera o rito no processo penal comum, não introduziu alteração no rito do processo penal militar. É que, nada dispondo a legislação respeito, vige aí também o princípio da especialização, não se podendo utilizar subsidiariamente normas do processo penal comum no processo penal militar a não ser em caso de lacuna neste, e a teor do art. 3.º do CPPM (neste sentido, aliás, da não utilização das disposições do processo penal comum na Justiça Militar, já decidiu a Egrégia 1.ª Câmara Criminal do TJES, nos autos da Apelação Criminal n.º 024070662242);

A segunda é quanto à competência do juízo deprecado para interrogar o acusado, à vista do disposto no § 5.º do art. 390 do CPPM: com a alteração introduzida na Justiça Militar pela EC 45/2004, apenas metade, aproximadamente, das ações penais são decididas pelo Conselho de Justiça Militar, não fazendo sentido se utilizar o dispositivo acima no caso de ação penal a ser decidida pelo juízo singular da Auditoria de Justiça Militar. Ainda nas ações penais de competência do Conselho de Justiça Militar, não existe óbice ao cumprimento da deprecata, porque o Conselho de Justiça terá oportunidade de reinterrogar o acusado, se considerar necessário, por ocasião da sessão de julgamento, a que este último obrigatoriamente comparecerá, constando a deliberação em ata;

A terceira, quanto ao cumprimento da diligência em si, o fato de que, a teor do art. 352 do CPPM, a testemunha não se poderá limitar à simples declaração de que confirma o depoimento que prestou na esfera policial. Depoimentos assim lavrados, em que as partes não se dispõem a fazer outras perguntas, podem acarretar a absolvição do acusado por insuficiência de provas, ante a deficiência na instrução do feito.

(publicado na Revista In Limine, Vitória, agosto de 2010, p. 04/08)