Há um ano fomos todos, em espírito, acompanhar Renato Pacheco a seu Porto Final. Não à pequena localidade de Baixo Guandu, terra natal de seu mestre Guilherme Santos Neves, e que emprestou título à antologia de sua obra poética publicada em 1998, mas aos portos do mar da baía de Vitória, a sua cidade que já há muito deixou de ser “só mar e morro”, como ele certa vez cantara em “Vista Geral de Vitória”, poema de 1948.
Vitória que desde 1928, ano do nascimento de Renato Pacheco, conheceu um desenvolvimento acelerado, como espelho do desenvolvimento acelerado que conheceu o estado do Espírito Santo nos últimos setenta anos. Observador e analítico, ele, como ninguém, observou e analisou a marcha da história nestas paragens. E observando e analisando, produziu obra ímpar, porque nem sequer ombreada, de compreensão e divulgação das coisas do Espírito Santo.
E como todas as coisas têm seu porto final, assim como a obra de uma vida é bom que também o tenha, Renato Pacheco pretendeu, resumindo lembranças, experiências e estudos realizados ao longo dos últimos cinqüenta anos, legar aos estudiosos das coisas da terra uma espécie de guia comentado do percurso deste Estado do Espírito Santo nessa seara que foi a sua constante área de cogitação e produção, que é a cultura capixaba.
Seu último trabalho, que ele, Presidente de Honra, desejou ver publicado pelo Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, é um apanhado do quanto se produziu aqui ao longo de quinhentos anos em termos de cultura. Não se trata de cultura no sentido antropológico do termo, mas num sentido mais amplo, de produção de bens “palpáveis”, e a cultura capixaba foi abordada por ele, seguindo a lição de Rossini Tavares de Lima, no ABC do Folclore, de 1952, subdividindo sua matéria de estudo em cultura erudita, de massa e popular.
Não era empreitada para qualquer um. Ao menos não para um simples cronista. Esta primeira sistematização de quanto se produziu em termos de cultura no Espírito Santo, e não só por ser a primeira, deveria ser empreitada para quem pudesse compreender e revelar os mecanismos de produção e assim analisar os resultados produzidos. Tarefa para verdadeiro intelectual. E seu derradeiro trabalho, “A CULTURA CAPIXABA: UMA VISÃO PESSOAL” se encerra com citação de Edward W. Said, o que é emblemático. Renato Pacheco foi um verdadeiro intelectual, e Said é um dos que, entre essa classe, vem se preocupando com o papel do intelectual na sociedade.
Como propugna Said - mas muito antes dele - Renato Pacheco foi um intelectual engajado. Cito, por exemplo, que sua crença no Direito como sistema mais perfeito de regulação social, como constatei em “Considerações à volta do Pensamento Jurídico de Renato Pacheco”, publicado n' O Reino Conquistado, pelo IHGES, em 2003, o leva ao resgate da história de Pedro Leppaus, ex-meeiro de vítima de um homicídio ocorrido em 1954, e que a ele foi injustamente atribuído. Assim, fez publicar em 1985 Pedro Leppaus: erro judiciário contado ao povo. Não se pode notar aqui uma certa inspiração no exemplo de Voltaire, na sua luta pela revisão dos processos Calas, em 1765, e Sirven, em 1771? Ou de Zola, na sua luta pela revisão do caso Dreyfuss, na célebre carta de 1898?
Renato Pacheco foi igualmente engajado nessa sua última obra, de resgate histórico, de análise histórico-sociológica e de crítica à atividade pública. No passado o fora, por exemplo, fazendo propostas de planejamento, em sentido amplo, para a cultura local, em sua passagem pela Fundação Cultural do Espírito Santo e pelo Conselho Estadual de Cultura. Não poderia deixar de sê-lo agora, e introduziu entre as páginas d’ “A CULTURA CAPIXABA” uma crítica ao papel do estado como fomentador de políticas culturais, e particularmente ao papel desempenhado pelo Estado do Espírito Santo na produção cultural da terra. E ao nos trazer ao “A CULTURA CAPIXABA” os resultados de sua meditação nessa seara específica de seu labor pelo Espírito Santo, essa passagem do livro pode ser tida pelos da área, os produtores culturais, como o ponto alto da derradeira obra de Renato Pacheco.
Mas a crítica séria deve fundar-se na compreensão do processo que é objeto dessa crítica. E ele tinha uma ampla compreensão desse processo, como já o dissemos, fundamento, aliás, de sua autoridade no criticar. E nos procurou legar essa compreensão, realizando síntese histórica da cultura produzida no Espírito Santo, desde os seus primórdios. O que, da mesma maneira, poderá ser considerado o ponto alto de sua derradeira obra pelos da área, os historiadores e os sociólogos da cultura.
Interessante é que, utilizando-se de seus famosos arquivos pessoais e de sua decantada memória, registra uma infinidade de fatos – e detalhes desses fatos – acontecidos na vida cultural do estado ao longo do século XX. E assim o leitor não comprometido com preocupações de cunho científico e literário pode ler a derradeira obra de Renato Pacheco como uma espécie de grande reportagem, a que não faltam, sequer, os detalhes afetos ao colunismo social - por exemplo, revelando que a miss tal do ano tal passou a ser a senhora fulano de tal. O que vai dar a estes leitores motivos para considerar essas passagens como o ponto alto da obra.
Ele mesmo romancista, poeta, ensaísta - escritor, enfim - traz às páginas de “A CULTURA CAPIXABA” um resumo do estudo sobre a história do livro no Espírito Santo, que anteriormente fizera em “Introdução à História do Livro Capixaba”, publicado na coletânea Estudos Espirito-santenses, pelo IHGES, em 1994. Aliás, aqui pode-se ver um exemplo acabado da forma de atuação do intelectual Renato Pacheco: ao lado do investigador, foi também o empreendedor que, inconformado com um comentário jocoso de Monteiro Lobato (para quem o Espírito Santo, nos idos de 1919, parecia “uma ficção geográfica”, onde não havia uma só livraria), tentou iniciar aqui, em 1951, uma editora comercial que chegou a publicar cinco livros, mas logo encerrando as atividades, por falta de adequada estrutura empresarial. E da mesma forma os interessados na pessoa humana de Renato Pacheco, nos seus traços de caráter e na sua biografia deverão considerar esses trechos como o ponto alto de sua derradeira obra.
Isto é, pode-se ler sua derradeira obra sob vários enfoques, e com interesses diversos. Intelectual multifacetado, homem de múltiplos interesses como o chamei ao dar notícia de sua passagem pelo IHGES, em “50 anos de presença de Renato Pacheco no IHGES”, publicado no n.° 58 da Revista, de 2004, sempre teve a capacidade de atrair a atenção do estudioso tanto quanto a do homem do povo, a quem falava de perto. Tanto que, como os estudiosos, o homem do povo fez também questão de homenageá-lo por ocasião de seu falecimento, na bela reunião dos grupos de cultura popular que para isto vieram se apresentar no Parque Moscoso em plena Quaresma.
É fato que, como estudioso e ele próprio engajado no processo de produzir cultura entre nós, Renato Pacheco teve seu porto seguro nesta Casa do Espírito Santo. O Instituto cuja feição ajudou a moldar, cujos destinos ajudou a dirigir, cuja produção científico-literária ajudou a elevar, é o repositório maior de sua obra, como constatei no referido “50 Anos de Presença de Renato Pacheco no IHGES”. Grande parte de seus estudos e de sua produção cultural como objeto saiu daqui, e aqui está guardada. Sua atuação generosa nesta casa foi imprescindível para o atual momento por que passamos, e esta constatação dispensa maiores fundamentações. Não poderia ser de outro editor que não o IHGES a publicação da derradeira obra de Renato Pacheco.
A visão pessoal que Renato Pacheco nos deixa da cultura capixaba é da mesma forma generosa. Racionalista, levando ao extremo a concepção do cogito que opôs Descartes a Santo Tomás de Aquino, que opôs duas maneiras opostas de pensar o mundo, Renato Pacheco era também o agnóstico que nos recomendava a Deus sempre que saíamos em excursão pelo interior para algum compromisso pelo Instituto. Da mesma forma crítico, desmistificador, o livre pensador até certo ponto iconoclasta que se nos revelou n’ O Macaco Louco, publicado pelo IHGES, em 2000, é o mesmo que não se furtou a listar todos quantos se ocupam de alguma maneira da atividade de produção cultural neste estado. E isto nas mais diversas áreas, denotando sua incansável curiosidade, seu rigoroso método e seu cuidadoso conhecimento dos acontecimentos contemporâneos.
Cito exemplo: ao lado de juristas de escol nestas terras, como o foram um Afonso Cláudio, um Carlos Xavier Paes Barreto, um Eurípides Queiroz do Valle, de historiadores renomados, como Léa Brígida Rocha de Alvarenga Rosa e Miguel Depes Tallon, Renato Pacheco não teve pudor na inclusão do meu nome na referida obra. É o seu traço de generosidade sobressaindo ao do crítico, de incentivo constante aos que de alguma forma tentam fazer alguma coisa. Conhecedor das dificuldades, tratava de estimular, de ajudar, de elogiar e de criticar – tudo isto já tendo visto acontecer comigo próprio, ao levar até o mestre algum trabalho para sua apreciação.
A visão pessoal que Renato Pacheco nos deixa da cultura capixaba é uma visão generosa, repito. Consciente das fragilidades desta terra, fruto dos condicionamentos históricos que lhe foram impostos, demonstra saber lidar com estas fragilidades ao fazer análise de conjunto. Consciente da fragilidade humana demonstra saber lidar com elas, fazendo críticas impessoais às pessoas. Consciente de suas próprias limitações nos dá testemunho de desprendimento ao pretender, de maneira despretensiosa, simplesmente nos indicar um caminho a seguir. O que considero o derradeiro exemplo de seu engajamento como intelectual, de sua vontade de interferir ativamente no melhoramento da sociedade em que viveu.
A produção de Renato Pacheco chegou a seu porto final. O seu legado não, porque sua produção passará a ser cada vez mais estudada, dissecada, analisada. E dessa investigação é que nascerão novas vertentes de estudo, novas facetas de interpretação, sem dúvida novas maneiras de ver e de compreender a cultura capixaba. Como também não há dúvida de que essa tarefa será em grande parte facilitada por ter-nos deixado o mestre, mais uma vez, como ao longo dos últimos cinqüenta anos, sua visão pessoal a respeito.
É o início de nosso percurso, agora sem ele para levar o farol, até a um porto que, longe de ser final, seja seguro, aliás, como ele sempre foi para nós pelo seu exemplo. Na “Oração Anarquista”, poema que compõe as “Lamentações de Antão Reis”, um de seus três heterônimos, propugnou: “Senhor, é preciso passar meio século/ sem nada, mas nada mesmo, escrever/ deixando virgens toneladas de papel.” Não dando ouvidos ao velho Antão Reis, não o fez o ortônimo Renato Pacheco. Felizmente para todos nós, os admiradores de sua obra.
Praia da Costa, março de 2005
(texto de palestra proferida no IHGES em abril/2005; publicado originalmente em Estudos de Cultura Espírito-santense. Vitória: IHGES, 2006)