O Brasil vai seguindo firmemente no caminho da consolidação da democracia - entendendo-se aí que, se o governo é do povo, todos podem querer dele participar igualmente. Lembra-me agora meu pai, a quem rendo homenagem por isto: observador atento, quando da fundação do Partido dos Trabalhadores reconheceu a importância histórica do fato e numa conversa chamava-me a atenção para que seria inevitável que o país passasse por tudo quanto realmente veio a passar depois. Sinto muito não poder mais trocar idéias com ele hoje, aproveitar-lhe a inteligência e a desconcertante vivacidade.
Mas era a propósito da consolidação da democracia no Brasil. Retomando o raciocínio, vimos deixar o Palácio do Planalto pela porta da frente, como entrou, um presidente da República proletário, “povão”, como em seu tempo foi vendido aos eleitores, sucedido por uma ex-militante de esquerda contra o governo militar. Desta forma se fechará um ciclo na redemocratização do país, para que finalmente possamos nos livrar do passado e avançar sem culpas rumo ao futuro.
A que culpas me refiro? Àquelas construídas de forma paciente e obstinada pela propagando dita de esquerda, que desde o final dos anos sessenta vem fazendo a nação acreditar que o país na verdade não pertenceria à população, mas sim a uma parcela minúscula e não muito bem definida de seres, chamados indistintamente “elites”. Esses seriam os inimigos naturais do país, a que exploram impiedosamente, impedindo seu desenvolvimento pleno e fazendo sofrer a população. “Elites” seriam, nos termos dessa propaganda, tanto o representante da política tradicional (que dentro do jogo político não dava vez aos neófitos), quanto aquele que herdasse uma posição social por acumulação anterior de bens e/ou prestígio, quanto os ocupantes dos altos escalões do serviço público.
Tratava-se, sim, de uma estratégia de ascensão ao poder, muito bem planejada e muito bem executada ao longo das últimas décadas. Num esforço de simplificação, esta estratégia acabou resultando na eleição do presidente Luis Inácio da Silva em 2002, guindando ao poder juntamente com ele uma massa de militantes, “despossuídos” da política tradicional, que vieram oxigenar todos os escalões da máquina pública. Pacificando aquela sede enorme de protagonismo político de quem dificilmente teria chance, se assim não tivesse sido.
Agora assume o poder uma ex-militante contra o governo militar que esteve à frente dos destinos do país entre os anos de 1964 e 1985. Utilizando-me da definição da propaganda vitoriosa, é da História recente do Brasil que uma parcela da “elite” contemporânea, formada em sua grande parte por estudantes universitários, alienou-se por conta própria do jogo político tradicional, por decidir que não o jogaria sob as regras postas na mesa, regras estas traçadas pela força. Os movimentos ditos de “resistência” ao regime jogaram, então, sob suas próprias regras, e saíram derrotados.
Mas não perderam a guerra. Ou senão os ditos vencedores, que acabariam devolvendo o poder anos depois, planejaram tudo para que assim acontecesse. E assim, menos surpreendentemente do que parece, acabou se dando que uma das correntes integradas ao grupo que em 2002 ascendeu ao poder pelo voto com o presidente Luis Inácio da Silva era aquela formada pelos pseudo-derrotados de então.
Ora, é interessante notar que grande parte da “elite” jovem da época da redemocratização do país, meados dos anos oitenta, formada em sua maioria também por estudantes universitários, da mesma forma alienou-se, por conta própria, mas por outros motivos, do jogo político. Abdicou de seu espaço natural. Abriu, então, espaço para segmentos que, nos termos daquela propaganda vitoriosa, que vimos utilizando, não se enquadrariam na definição de “elites” (por não integrarem os grupos antes referidos), autodenominando-se “povo”.
Assim o “povo”, segmento de protagonistas que não tinha vez dentro do esquema tradicional da política, por seu turno representados dentro dos partidos pelas “lideranças”, aliou-se aos alienados voluntários da geração contemporânea ao governo militar e finalmente chegaram todos ao poder - resgatando, assim, o espaço que não lhes foi possível, por motivos diferentes, ocupar antes. Neste sentido é que a passagem do poder simbolicamente do “povo”, na pessoa do proletário, aos “revolucionários”, a “elite” auto-retirada do jogo político de há décadas, na pessoa da militante de esquerda, vem preencher um hiato que tornava capenga a evolução da democracia brasileira.
Após o governo de Dilma Roussef, a tendência é que esta evolução histórica venha a se desenrolar de uma maneira mais natural. É que a partir de sua posse resta claro que nenhum segmento da população, nenhuma geração de ativistas, ficará de fora do jogo político, desde que o jogue da maneira democrática. Da maneira que a democracia brasileira, com todos seus erros e acertos, vem consolidando como sendo o melhor para o país. Esta a importância histórica do advento do governo que ora se empossa.
Dentro do que esteve e do que está em jogo no Brasil, a circunstância de se tratar de uma mulher a nova presidente, mesmo carregada esta circunstância de todo um simbolismo e de um forte apelo emocional, é menos importante que o fato do resgate político de uma geração ex-alijada, que só agora vê chegada a hora de recuperar o tempo que perdeu - se se considerar que política é a arte de alcançar e se manter no poder.
Uma vez resgatada esta geração, guindada ao poder de dentro do segmento a que se aliou num dado momento histórico, espera-se que as condições de “minoria”, de “perseguido pela ditadura militar”, vão deixando naturalmente de constituir o cacife político que hoje constituem. É que, equilibradas as forças dentro do jogo democrático, com o consequente arrefecimento da propaganda, o amadurecimento dos protagonistas e do eleitorado tenderá a levar em conta, em primeiro lugar, os méritos pessoais de cada um. O que é desejável, já que, dentro do melhor espírito republicano, não se devem reconhecer privilégios a tribos, tanto quanto historicamente não se os reconhecem a origem. Cotas e demais ações afirmativas são uma outra coisa.