Todo ano, vai entrando o verão, é a mesma coisa: os índices de precipitação pluviométrica aumentam assustadoramente no Espírito Santo. Chove em uma ou duas semanas tudo o que não choveu durante todo o ano.
Este ano foi particularmente assustador com relação ao nível das águas dos rios que cortam o Estado. Tenho contato quase que quinzenal com o Rio Santa Maria de Vitória, e nunca o vi em níveis tão baixos. Em agosto estive em Colatina, e o assoreamento no leito do Rio Doce assustou até a mim, que depois de me mudar de lá passei anos indo à cidade duas vezes por semana para lecionar. Em setembro deste ano o jornal digital Seis Dias, daquela cidade, dava notícia do racionamento da captação de águas para lavoura no Rio Santa Joana, afluente do outrora majestoso Rio Doce.
Os rios foram o caminho natural da colonização do Espírito Santo. De norte a sul do território, sua importância histórica e econômica foi inestimável. Da batalha entre portugueses e índios às margens do Rio Cricaré, em 1558, à proibição de penetração do litoral para o interior pelo Rio Doce, em defesa das riquezas do sertão das Minas Gerais; a saga da navegação pelo mesmo caudal, a partir de 1800, promovendo o transporte de pessoas e mercadorias da corredeira das Escadinhas, limite ocidental de sua navegabilidade, até a povoação de Regência Augusta, na foz, berço e palco da proeza do Caboclo Bernardo; a migração da população para o interior, desde as Imperiais Colônias, pelo rio Santa Maria, atingindo o Guandu para o oeste e o Santa Joana para o norte, até o mesmo Rio Doce - aliás como vaticinara Graça Aranha em seu Canaã; o transporte do café por barcos pelo Rio Santa Maria, escoando o produto desde as regiões produtoras centrais até o porto de Vitória, fazendo da cidade de Santa Leopoldina, a “filha do sol e das águas”, de Graça Aranha, riquíssimo entreposto comercial nas primeiras décadas do século XX; o escoamento de café pela via natural do Rio Itapemirim, no sul, fazendo o esplendor econômico daquela região até a construção da Estrada de Ferro Sul do Espírito Santo, que isolou aquele porto em detrimento da capital.
De fato, a importância das vias fluviais para a economia do Espírito Santo só cessou com o aperfeiçoamento da logística de transportes: a construção de ferrovias e de estradas de rodagem para escoamento da produção, processo este mais ou menos concluído no quarto inicial do século XX. Não existindo mais, hoje em dia, navegação comercial relevante economicamente, ficaram os nosso rios como fonte de irrigação das lavouras. O que demanda regras no desmatamento e poluição de nascentes, no desmatamento de encostas, na captação dos recursos hídricos. E se há regras, deve haver também fiscalização, e deve haver sanções pela prática de crimes ambientais.
Mas os problemas, nas cidades e no campo, se repetem a cada ano, nesta época do ano. A Defesa Civil desdobrando-se para atendimento das ocorrências, a população dando mostras de solidariedade - quem tem um pouco mais doando a quem perdeu tudo - o Corpo de Bombeiros supervisionando operações. Dramas pessoais, prejuízos financeiros, mortes, uma sensação de tudo se deve a fenômeno da natureza, nada disso poderia ser evitado.
Será verdade? Não totalmente. Se os índices de precipitação pluviométrica não se podem prever com precisão, no entanto os problemas causados pelas chuvas são sazonais. Todo ano temos estação chuvosa. O que é feito em termos de planejamento? Lêem-se manifestações de internautas no sentido de que o Poder Público não tem responsabilidade nisto, a culpa é da população. Que continua a desmatar encostas de rios e a não destinar corretamente o lixo doméstico, por exemplo.
Esta constatação das pessoas vai ao encontro de uma reflexão óbvia: se a população é mal educada, este é um parâmetro a ser levado em conta no planejamento das políticas públicas. Não adianta querer implantar no Brasil, em termos de gestão pública, de mobilidade urbana, de política cultural, modelos tedescos, batavos, escandinavos, porque o usuário, o consumidor final, não está preparado para isto. Por outra, o povo não tem educação. É absurdo, por exemplo, o Poder Público ter que providenciar o conserto de orelhões depredados, recolher lixo em praias dotadas de caixotes para sua destinação, providenciar a limpeza de mananciais e cursos d´água no interior e nas periferias urbanas. Tudo isso depende de educação, mas é uma variável que deve ser – e é, creiam – levada em conta. Mas para outros fins, não o de gastos públicos.
Retornemos ao problema das enchentes sazonais. Geralmente os projetos municipais de desassoreamento de mananciais e de escoamento de águas pluviais custam alguns milhões de reais, a serem captados junto aos governos federal e estadual. O que, por contingências orçamentárias, não se consegue, e nos últimos tempos todo fim/início de ano o governo estadual destina milhões, emergencialmente e por decreto, para minimizar o estrago – já esperado – causado pelas chuvas. Então?
Então deve haver uma outra maneira de fazer frente aos problemas. “Educar a população”, conscientizando-a, é providência que demanda tempo, é discurso que serve para manter o status quo no tocante à realização periódica de gastos públicos de emergência. Deveria era haver mais soluções emergenciais: o incremento da fiscalização dos crimes ambientais na cidade e no campo; priorizar o Poder Judiciário a pena de multa, a particulares e empresas, na aplicação da sanção a eventual infração às leis ambientais; impedir a ocupação desordenada e sem planejamento de áreas sub-urbanas e providenciar sua desocupação, sem demagogias e sem permitir que manifestações demagógicas influam no planejamento e execução das ações; a fiscalização de entidades e organizações que eventualmente sobrevivam da perpetuação deste estado de coisas.
Por outro lado, a realização, pelas administrações públicas, de obras adequadas à solução dos problemas, sem maiores preocupações com preciosismos de engenharia: a previsão da existência de áreas de terra para escoamento natural da chuva às margens de superfícies asfálticas de uma dada extensão; a construção de pontes viáveis, levando em conta a elevação esperada do leito dos cursos d´água no período de cheias; a construção de sangradouros naturais, prestigiando os traçados dos cursos d´água, paralelamente à construção de galerias pluviais; a implantação de contenção de encostas utilizando-se de materiais recicláveis, como pedras e pneus. Tudo isto sem prejuízo das caríssimas e demoradíssimas obras de infraestrutura, geralmente definidas em período eleitoral e sempre em andamento na maioria das cidades brasileiras.
A chuva cai, sim, mas cai todo ano. Faz parte do ciclo do tempo, o que por milhares de anos foi observado pelos antigos, mas não é mais observado por nós, o homo tecnologicus. Alguém tem a obrigação de observar isso, por inexorável, e se na democracia as ações de governança são confiadas pelo povo aos representantes, não é difícil identificar responsáveis.
Assim, não é toda a culpa da população. Esta tem, sim, que fazer sua parte. Até como estratégia de sobrevivência, porque as forças da natureza vêem dando mostra nos últimos tempos de que esta não será vencida pela ação humana. Mas não há dúvida de que, no traçar de políticas públicas, as ações preventivas de caráter emergencial são atribuições dos governos, paralelamente à educação/conscientização da população. Não há dúvida de que estas ações preventivas não se podem confundir com a realização de obras destinadas à implantação de infra-estrutura, são coisas distintas. Repita-se, estas ações devem passar, também, pela assistência prévia à população, que em pleno século XXI não pode depender apenas do ciclo da natureza para não se tornar estatística na cobertura jornalística de catástrofes naturais.
Afinal, desde a Revolução Francesa não é mais razoável admitir-se “a plebe ajoelhar, esperando a ajuda de Deus”, do verso famoso da Plebe Rude. Porque a providência divina depende, também, da ação humana, no mínimo para a merecermos. Inclui-se aí, em primeiro lugar, e por motivos óbvios, a ação dos governos.